POR CLÓVIS GRUNER
O assunto é incontornável: a prisão de Lula, decretada pelo juiz Sérgio Moro na quinta (05) e efetivada no sábado (07), quando o ex-presidente se entregou à Polícia Federal, mobilizou o país. Apesar das muitas paixões despertadas, de um lado e de outro, não se trata ainda de um desfecho, mas de mais um capítulo de uma narrativa cujo fim, me parece, não está próximo nem, tampouco, é previsível.
Das inúmeras imagens produzidas a partir do evento, duas são emblemáticas. Uma delas, a de Lula sendo conduzido por uma multidão na sua saída da sede do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo. Outra, a do empresário e cafetão Oscar Maroni, simulando o estupro em uma “performance” com uma prostituta, em frente ao Bahamas Hotel Club, um bordel de luxo na capital paulista, sob o olhar grave de dois juízes, Carmem Lúcia e o próprio Moro, cujos retratos adornavam a comemoração.
Como quase tudo que envolve o nome de Lula, elas são carregadas de um forte caráter simbólico, seja ele o reconhecimento pelos feitos dos governos Lula (em seu ex-blog, “Desafinado”, o historiador Murilo Cleto publicou, em 2014,
um dos mais completos balanços das duas primeiras gestões petistas), ou os desejos perversos de subjugação violenta alimentados pela elite brasileira e parte da classe média – além, óbvio, dos milicianos do MBL –, que pensa e age como se fosse parte dela.
Mas é também interessante que, por caminhos opostos, ambas reforçam o caráter algo mítico de Lula em relação ao seu partido, em grande medida reafirmado a partir dos acontecimentos que culminaram com sua prisão. Principalmente depois que a Lava Jato e o juiz Moro decidiram sacrificar, abertamente, mesmo a mais pálida imagem de isenção, surfando na onda do antipetismo e ampliando seu apoio e base social, uma das linhas de defesa do PT e de Lula tem sido reforçar o caráter parcial e seletivo da operação.
O argumento é que a operação mira, mais que o próprio partido, sua principal liderança, o “sonho de consumo” de Moro. Há alguma razão nisso. Desde março de 2016, quando vazou a conversa telefônica entre Lula e Dilma, interferindo diretamente nos rumos da vida política do país, o juiz curitibano deixou de agir apenas como magistrado, confundindo o papel de julgador que se pretende imparcial com o de inquisidor –
e sua sentença é uma clara demonstração disso.
Além disso, desde o impeachment, em agosto do mesmo ano, todos os indícios evidenciam que está a se cumprir a profecia de Jucá, a do aparelhamento da Lava Jato em um “grande acordo com o STF com tudo” para “estancar a sangria” e salvar quem realmente importa da cadeia. Nada estranhamente, práticas que foram condenadas e provocaram escândalo em governos petistas, mereceram o silêncio e a indiferença, inclusive da PF e da justiça, quando praticadas por Temer, ele próprio blindado de duas denúncias em troca de alguns bilhões distribuídos aos deputados da base aliada.
Sem crítica, nem projeto – Mas se o quadro geral justifica o discurso de Lula e do PT, ele serviu também como pretexto para que ambos não fizessem, nem uma autocrítica, nem tampouco um igualmente necessário
mea culpa, seja pelo desastre que foram a gestão e meia de Dilma Rousseff – incluindo o estelionato eleitoral de 2014 –, ou pelos deslizes cometidos durante os 12 anos de governos petistas, aí incluídas as denúncias de corrupção.
Na narrativa do golpe, que ganhou força e impulso à medida que o verdadeiro desastre ético e político do governo Temer ficou mais claro, os muitos erros das gestões petistas foram obliterados na figura cada vez mais mítica, e na devoção quase religiosa, criada em torno à imagem e ao nome de Lula. A sua prisão reiterou esse caráter personalista, e em ambos os espectros que orbitam passionalmente ao seu redor, com prejuízos políticos a ambos, ao menos no médio prazo, e ainda que com resultados distintos.
À direita, a prisão de Lula pode diminuir a força do discurso antipetista, que tem sido a tônica desde as manifestações de 2015. Com Dilma deposta e Lula preso, os partidos de direita conseguiram atingir sua meta mais imediata, a retomada das instituições e a redistribuição de poder no interior delas, blindando a quadrilha que tomou de assalto o governo depois do impeachment.
Mas o empenho em estancar a sangria, mobilizando recursos na criação e demonização de um inimigo único e fonte de todo o mal, dificultou o surgimento de um nome e projeto alternativos. Dito de outra forma, se o problema começava e terminava em Lula, e com ele fora do páreo, o que sobra para a direita? O carisma de Geraldo Alckmin? Ou os delírios autoritários de Bolsonaro, disposto a transformar o Brasil em uma versão reacionária da Venezuela ou em um Irã tropical?
A situação não é mais confortável para a esquerda. É verdade que a prisão de Lula unificou parte dela, levando para o mesmo palanque Guilherme Boulos e Manuela D'Ávila. Mas seria melhor se essa unidade fosse construída também em torno a um projeto ou um programa mínimo – a auto proclamada “Frente Antifascista” não existe de fato –, o que a esquerda tampouco tem, porque nos últimos dois anos salvar Lula se tornou o único projeto que realmente importa.
A imagem da multidão a conduzi-lo em São Bernardo e a reação apaixonada de militantes dentro e fora das redes virtuais, parecem deixar claro que, se as forças e grupos de esquerda viviam um impasse e um vazio programáticos, seu encarceramento não os resolveu mas, antes, os aprofundam e estendem sua solução talvez indefinidamente. E em um ano eleitoral isso pode ser um problema a mais a ser contornado. Mas isso é tema para outro artigo.