Mostrando postagens com marcador escola sem partido. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador escola sem partido. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O ano foi de Bolsonaro

POR CLÓVIS GRUNER
Outro dia alguém me sugeriu em tom de chacota, no Facebook, que eu superasse Bolsonaro. Não há motivos, obviamente: se tanta gente – a começar por boa parte dos comentaristas anônimos desse blog – ainda não superou Lula, preso há meses em Curitiba, ao ponto de não conseguir comentar uma receita de bolo sem dar um jeito de meter o nome do ex-presidente no meio, por que deveria eu superar um presidente, que nem posse tomou ainda?

Começo citando essa pequena anedota, típica das redes sociais, porque o ano foi mesmo de Bolsonaro: desde fevereiro, quando sua candidatura não estava ainda formalizada, foram oito textos que o tiveram por tema. Alguns falaram dele mais tangencialmente, ao abordar a produção e difusão das fake news e da homofobia, ou o “kit gay”, uma das muitas mentiras perversas propagadas por Bolsonaro em sua campanha.

Mas a partir de agosto, falar do candidato Bolsonaro se tornou uma obrigação. Em outubro, quando a eleição de um candidato fascista já era praticamente certa, quatro textos abordavam o assunto: as razões de sua vitória, além de eleitoral, simbólica; uma análise de seu discurso após o primeiro turno; a eleição de Bolsonaro como um retrocesso democrático; e, enfim, o caráter fascista de sua candidatura.

Os impasses e os equívocos da esquerda também mereceram algumas linhas. Falei da indicação no mínimo problemática de Guilherme Boulos à presidência pelo PSOL, e extrapolando os limites nacionais, desenvolvi uma breve digressão sobre o caráter autoritário dos governos de Maduro e Ortega, na Venezuela e na Nicarágua, em uma polêmica com meu colega de blog, José Antóio Baço.

E sim, também falei de Lula. E em pelo menos dois textos – sobre a concepção frágil de cidadania dos governos petistas e os impasses eleitorais após decretada a sua prisão – sob perspectivas bastante críticas. Obviamente elas não foram percebidas pelos nossos comentaristas anônimos porque bem, se fossem, não seriam os nossos comentaristas anônimos. 

Mas no balanço de 2018, há outros assuntos igualmente desagradáveis além de Bolsonaro (não foi um ano fácil): a intervenção no Rio de Janeiro e o assassinato, ainda sem solução, da vereadora Marielle Franco, abordaram a violência e seus vínculos com a política e o Estado. Nas últimas semanas, o avanço da ideologia reacionária do “Escola sem Partido”, um dos efeitos deletérios da eleição de Bolsonaro, foi tema de alguns textos, onde abordei a escolha dos docentes como os novos inimigos, e a “ideologia de gênero”, outra das grandes mentiras propagadas por Bolsonaro.

E enfim, não seria possível um balanço de 2018 sem falar dos cinco anos de Junho de 2013. O texto que faz uma leitura das manifestações saiu no dia 20, exatos cinco anos depois que mais de dois milhões de pessoas ocuparam praças e ruas de cerca de 400 cidades em todo o país. Em um ano que deixará tantas lembranças ruins, a memória das Jornadas de Junho pode servir como um sopro de esperança: ainda que as expectativas para 2019 não sejam as melhores, seguiremos. E como só merece consideração e paciência quem perturba, minha escolha está feita: sigo perturbando.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A “ideologia de gênero” e a legitimação da violência

POR CLÓVIS GRUNER
A América Latina, de acordo com relatório da ONU Mujeres, é o local mais perigoso para as mulheres fora de uma zona de guerra: em 2017 foram cerca de 2,5 mil mortes causadas por violência de gênero. Com 1.133 assassinatos – uma média de três por dia – o Brasil contribuiu com quase metade dessa cifra. Poucos desses crimes mereceram alguma cobertura midiática; a maioria ficou relegada às estatísticas.

O mesmo levantamento reitera o que já é de conhecimento mais ou menos comum: na maioria dos casos de violência física ou sexual contra mulheres, o responsável é alguém conhecido ou mesmo íntimo – vizinho, namorado, noivo, marido, padrasto, pai – e o abuso acontece dentro de casa ou em ambientes familiares, não raro com a conivência de pessoas próximas.

É o caso, por exemplo, do estupro. No Brasil, foram mais de 60 mil registrados no ano passado, uma média de 164 por dia, um a cada dez minutos. Mas é bastante provável que a incidência seja maior porque, por diferentes razões, o estupro é um dos crimes com o maior índice de subnotificações, e boa parte deles nem mesmo chega ao conhecimento das autoridades policiais.

Não é muito diferente quando o assunto é pedofilia. Em 2016, cerca de 13 mil menores foram vítimas de abuso sexual, a maioria, como nos casos de estupro, dentro de casa ou em ambientes conhecidos, perpetrados por familiares ou pessoas próximas. Apesar da campanha de difamação promovida pelos milicianos do MBL, o senador Magno Malta e por pastores fundamentalistas, não há registros de pedofilia em exposições, performances artísticas e em museus.

As violências homofóbicas – Além disso, seguimos sendo, entre os países considerados democráticos, um dos que mais mata sua população LGBT. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2011 – ano do último levantamento do órgão federal – cerca de 19 violações aconteceram diariamente em todo o pais. As estatísticas se referem às agressões notificadas, mas é provável que a incidência seja maior.

Os números são também assustadores no que se refere ao assassinato de LGBTs: em 2011, foram registradas 266 mortes; levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia para 2014, registra um aumento significativo, totalizando 326 assassinatos. No ano passado, esse número saltou para 445 vítimas. O número é maior entre a população gay masculina, seguida de perto pelos travestis. Confundidos com gays, nos últimos anos cerca de 20 homens heteros foram assassinados.

Apesar da posição oficial de entidades como a OMS e o Conselho Federal de Psicologia, a homossexualidade ainda é vista e tratada como doença por alguns profissionais de saúde, e não é tão incomum encontrarmos quem faça carreira alardeando e vendendo a “cura gay” em consultórios e clínicas particulares. Não me parece despropositado afirmar que o índice desalentador de suicídios entre jovens gays seja, em parte, resultado dessas muitas formas de violência simbólica.

E elas são, de fato, muitas: LGBTs são preteridos ou demitidos de empregos; constrangidos em lugares públicos e hostilizados quando demonstram afeto; expulsos do convívio familiar e de amigos; ridicularizados por programas de humor e humoristas politicamente incorretos; desrespeitados em ambientes públicos. Pesquisas recentes mostram que o bullying homofóbico nas escolas colabora para elevar os índices de repetência, evasão escolar e suicídio entre adolescentes.

Problemas de gênero – Diminuir essas estatísticas não é tarefa fácil, e demanda um esforço coordenado e articulado de diferentes grupos e instituições, a começar pelo Estado. Um ambiente onde discussões sobre gênero vicejassem de forma aberta e em espaços públicos como as escolas, deveria ser condição fundamental. Mas se avançamos muito pouco mesmo em governos considerados progressistas, com a eleição de Bolsonaro e o fortalecimento de movimentos reacionários como a “Escola sem Partido”, estamos a trilhar o caminho de volta.

Na semana passada, um deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro – o mesmo que, nas eleições, rasgou uma placa em homenagem a Marielle Franco – invadiu uma escola em Petrópolis e ameaçou sua diretora. Em Minas Gerais, a Promotoria de Defesa dos Direitos das Crianças entrou com um processo contra o Colégio Santo Agostinho, de Belo Horizonte, por suposta adoção da “ideologia de gênero” no currículo escolar. Na segunda (26), o MP pediu a suspensão da ação, sob a justificativa de que a atribuição caberia à Promotoria de Defesa do Direito à Educação.

Na prática, a suspensão é provisória, válida até que a Procuradoria-Geral decida se a ação deve ou não ser objeto de intervenção do MP e, se for o caso, qual promotoria será responsável por ela. O texto da PDDC, uma peça em que o obscurantismo e a ignorância caminham juntos, serve apenas como o exemplo mais recente de uma sequência de ataques desferidos contra a escola, a educação e os docentes; mas não será o último.

Contra direitos e liberdades – Mentiras repetidas inúmeras vezes não viram verdade, mas atendem e cumprem propósitos e objetivos perversos. Com a “ideologia de gênero” não é diferente. Ela é o pretexto para desviar a atenção de problemas que de fato afetam a educação e demandam medidas e investimentos urgentes. Com professores equiparados a abusadores e estupradores – a analogia é de Miguel Nagib, criador e ideólogo da “Escola sem Partido” –, não é preciso encontrar outras razões, que não os próprios docentes, para explicar a suposta falência de nosso modelo de ensino.

Mas há outras razões além dessa mais imediata. Surfando na onde do anti-intelectualismo mais grosseiro, e desconsiderando e depreciando estudos científicos e acadêmicos sobre o tema, a propagação da “ideologia de gênero” funciona como uma espécie de slogan que catalisa manifestações contrárias a ações pedagógicas de promoção dos direitos sexuais, ao enfrentamento dos preconceitos, a prevenção de violências e o combate à discriminação de gênero.

Um dos objetivos é recuperar o espaço e o poder das igrejas em sociedades que atravessam processos de secularização, e ao mesmo tempo conter o avanço de políticas de garantia ou ampliação de direitos e buscando restaurar, por um discurso que os naturalizam, os modelos ditos tradicionais de família e sexualidade. Que isso seja feito tendo como base um pânico moral que recrudesce a violência contra grupos socialmente marginalizados, pouco importa. A ordem, afinal, é que eles se submetam à maioria. Ou desapareçam.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

“Escola sem Partido”, uma ideologia de classe

POR CLÓVIS GRUNER
Por sugestão de um amigo, visitei o site de uma escola particular, fundada originalmente em New York e que, ano passado, abriu sua primeira unidade brasileira, em São Paulo. Com mensalidades na casa dos oito mil reais, a instituição é obviamente voltada a um público de elite, a quem oferece uma educação integrada, concebida para desenvolver, em seus alunos, diferentes competências. Pedagogicamente, nada muito diferente de outras escolas privadas, mas com estrutura e corte de classe mais “exclusivos”.

Na apresentação, lê-se que “todos os alunos participam do programa World Course, uma combinação de estudos de História, Geografia e Temas Globais, que ultrapassa as perspectivas ocidentais”. E segue: “a História é introduzida, não como uma sequência interminável de fatos e datas, mas como uma longa história de acontecimentos inter-relacionados, porque esse é o conceito de historicidade”. O objetivo é que crianças e adolescentes tenham “uma síntese integrada de Geografia Global, História, Economia e Futurismo”.

O programa é complementado com condicionamento físico e a oferta de diferentes práticas esportivas; a sensibilização artística; a aproximação às linguagens tecnológicas e um cardápio equilibrado que privilegia opções orgânicas. Além disso, desde o início da adolescência alunos são orientados à vida universitária; um dos objetivos é garantir que possam cursar o ensino superior em qualquer universidade brasileira ou norte-americana, independente da área e carreira escolhidas.

Os valores institucionais, aplicados no cotidiano escolar, são sustentados em três princípios: acolhimento, segurança e respeito. Basicamente, “cada membro (...) é valorizado como um indivíduo único e (...) ninguém deve ser excluído; todas as pessoas são iguais”. A intenção é que “tanto os alunos, quanto o corpo docente têm a responsabilidade de assegurar suas integridades físicas e emocionais durante todas as atividades escolares”. E enfim: “(...) no convívio com os colegas deve prevalecer a dignidade e a honra de ser membro de uma comunidade educacional íntegra”.

Além de assegurar uma formação conteudística ampla e sólida, e o respeito à diversidade, a escola pretende preparar discentes para que consigam pensar o futuro e verem-se como parte integrante dele. Em resumo, e em se tratando de uma instituição voltada à formação das futuras elites dirigentes, a intenção é que crianças e adolescentes percebam o mundo a sua volta não apenas a partir do imediatismo presente – escolher entre continuar os estudos ou encontrar um emprego, por exemplo –, mas como um constante devir, aberto a mudanças e inovações. 

Escola e reprodução social – Publicado nos anos de 1970, “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”, dos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, argumentava a respeito do papel da escola e da educação na reprodução das hierarquias sociais. Grosso modo, Bourdieu e Passeron mostravam como, por meio de políticas supostamente meritocráticas, se reproduziam na escola as condições que favoreciam a manutenção dos desequilíbrios e desigualdades sociais e de classe, naturalizando-as.

O diagnóstico não era exatamente novo: anarquistas como Sébastien Faure e Ferrer i Guàrdia (executado pelo Estado espanhol) já o haviam feito décadas antes. Sugeriam, como alternativa, uma educação integral que abordasse diferentes habilidades – físicas, técnicas, humanísticas e estéticas –, em um ambiente baseado na gestão compartilhada não apenas de conteúdos e programas, mas também das decisões políticas e econômicas. No Brasil, Paulo Freire propôs algo semelhante. No horizonte, uma escola responsável não apenas pela transmissão de conteúdos formais, mas capaz de formar indivíduos intelectual, ética e politicamente autônomos.

Nada mais distante dos projetos para a educação pública brasileira, agora mais que nunca à mercê das pressões políticas da bancada evangélica, aliada de primeira hora do governo Bolsonaro. Foi ela a responsável por vetar, para o Ministério da Educação, um nome considerado moderado por educadores, e pela indicação, em seu lugar, de um ministro cujas principais credenciais para o cargo são seus delírios anti-marxistas, seus discursos contra a “ideologia de gênero” e a “doutrinação cientificista” nas escolas, e sua afinidade com o movimento “Escola sem Partido”.

Volto à escola de elite cuja descrição abre esse texto. Há uma contradição perversa e flagrante no modo como nossa educação se constitui. De um lado, o ensino público, responsável pela esmagadora maioria dos estudantes (cerca de 73%), sucumbe cada vez mais ao discurso e às políticas conservadoras e reacionárias, que limitam o acesso a uma educação mais ampla, integral e autônoma, subtraindo conteúdos, atacando e desqualificando escolas e docentes.

Em um universo à parte, a educação privada, que atende estratos da classe média e as elites, aposta em um ensino integral, valorizando disciplinas humanísticas e um ambiente de respeito às diferenças. Não é difícil imaginar de quais escolas sairão adultos mais capazes e bem formados, inclusive para disputar as melhores vagas no mercado de trabalho. BNCC, reforma do Ensino Médio, “ideologia de gênero” e “Escola sem Partido”? Não nas salas de aula dos filhos das elites.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A escola e os docentes são os novos inimigos

POR CLÓVIS GRUNER
No começo de outubro, livros sobre direitos humanos apareceram rasgados em biblioteca da UnB. Naquela mesma semana, pais e mães de um colégio particular no Rio de Janeiro solicitaram a censura, e a direção acatou, de um livro sobre a ditadura militar, “Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel. No pedido, a alegação de que o título, publicado originalmente em 1981 na coleção “Vaga Lume”, “doutrina crianças com ideologia comunista” e promove um “discurso esquerdopata”.

Os casos de docentes intimidados aumentam a cada dia. Em um dos episódios mais recentes, um vereador invadiu uma escola em São Carlos, interior de São Paulo, e arrancou cartazes de uma atividade sobre intolerância religiosa. No Paraná, uma professora e o diretor de um colégio estadual em Cambé, chegaram a ser afastados de suas funções após a repercussão de uma exposição realizada por turmas do Ensino Médio, que abordava temas como o aborto, o estupro e o suicídio.

Não chegamos a isso por acaso. São anos de agressões à atividade docente, usando professoras e professores como bodes expiatórios, espalhando mentiras, destruindo reputações e desqualificando anos de trabalho. A eleição de um fascista para ocupar a presidência da República é, a um só tempo, resultado e salvo conduto para que a violência, simbólica ou não, contra livros, bibliotecas, museus, escolas, universidades, artistas, professoras e professores aumente.

A cruzada moralista começou antes das eleições. Bolsonaro não era candidato quando, em vídeo, citou nominalmente, em tom entre a ameaça e o deboche, professoras e professores da Fundação João Pinheiro. Já eleito, publicou outro, em que estimula discentes a gravarem seus professores, a quem ameaça com uma “surpresinha”. Alguns dias antes, a deputada eleita Ana Caroline Campagnolo, que em suas aulas envergava orgulhosamente camisetas de Bolsonaro, fez o mesmo em suas redes.

No Brasil, cerca de 56 milhões de crianças e adolescentes frequentam a educação básica. São aproximadamente 180 mil escolas, mais da metade (79%), públicas. O número de docentes ultrapassa os 2,2 milhões. No ensino superior, são cerca de 2,4 mil instituições, 34 mil cursos de graduação, aproximadamente oito milhões de estudantes e 384 mil docentes, considerando instituições publicas e privadas.

Ao eleger a educação e os docentes como inimigos, Bolsonaro sugere estarmos a enfrentar militantes empenhados no que chama de “doutrinação ideológica”, seja ela política (o tal “marxismo cultural”) ou de gênero. O bom senso deveria ser suficiente para jogar na vala comum do ridículo suposições como essa. Afinal, estamos a falar de dois espantalhos retóricos: o “marxismo cultural” não é mais que um amontado de citações desconexas, e “ideologia de gênero” simplesmente não existe.

Desonestidade e ignorância – Mas mesmo o bom senso é mercadoria rara, e não por acaso, além do próprio Bolsonaro, governadores e deputados estaduais e federais foram eleitos surfando na onda da “Escola sem Partido”. Cortejado por inúmeros políticos, o movimento saiu das eleições ainda mais fortalecido, e não surpreenderá ninguém se, a partir do próximo ano, a ideologia conservadora e a sanha persecutória que o caracterizam avancem ainda mais dentro das escolas e universidades.

Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, a principal estratégia da EsP é apostar na ignorância não apenas intelectual de seu público – a esmagadora maioria dos que denunciam a “doutrinação ideológica” ou vociferam contra Paulo Freire não fazem a mais pálida ideia do que dizem –, mas também empírica. Não há, da parte dos seus ideólogos, a preocupação em mostrar dados que corroborem afirmações como “um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra (...) para impingir-lhes [aos alunos] a sua própria visão de mundo”.

Tampouco há evidências de que a “instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários” é um “problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras”. As “provas” apresentadas são sempre fragmentos descontextualizados: um recorte de revista utilizada em uma aula; uma ementa, unidade ou tópico de um programa disciplinar; o depoimento de um ou uma estudante que se sentiu prejudicado.

Não há contexto, verificação, acompanhamento, tampouco diálogo. A EsP não é apenas desonesta, mas perversa: ela fabrica a exceção que tratará, em seguida, de apresentar como regra; regra que servirá de evidência a justificar e sustentar seu empreendimento policialesco, moralizante e ideológico. Trata-se de criar um clima generalizado de paranoia, insegurança e medo. E nesse caso, quanto mais genérica a afirmação, mais eficiente ela será.

Os argumentos brandidos são igualmente espúrios: na tentativa de defender que discentes são reféns de seus docentes, por exemplo, Nagib chegou a compará-los a estupradores; no site do movimento, um longo texto sobre “Síndrome de Estocolmo” apresenta estudantes como vítimas de um “sequestro intelectual”. Como desenvolvem “em relação ao professor/doutrinador, uma intensa ligação afetiva”, eles não apenas negam que são manipulados, como defendem seus sequestradores, os professores.

A cidadania não é neutra – Esse tipo de discurso, que contribui diretamente para a onda de violência contra professores que grassa nas escolas, e que coloca o Brasil na vergonhosa posição de lanterna em um ranking que avalia o status de profissionais da educação em diferentes países, encontra respaldo no temor, alimentado especialmente entre grupos e indivíduos religiosos e conservadores, de que a escola desvie seus alunos das condutas e educação familiares.

De acordo com essa argumentação, estimulada pela EsP e que repercute nos discursos de partidos e políticos oportunistas e de extrema direita, pais e mães têm o direito de exigir que docentes não ensinem aos discentes nada que contrarie os valores ditos familiares. Mas eles não têm. Pais e mães têm o direito de exigir o acesso universal à sala de aula e de que a educação seja, de fato, um direito de todos e todas, por exemplo.

Eles têm, igualmente, o direito de reivindicar e exigir escolas equipadas e habitáveis; profissionais (professores, pedagogos, técnicos, pessoal administrativo e de apoio) valorizados e bem pagos; uniforme, material escolar e merenda garantidos pelos governos; esportes e atividades culturais; escolas em período integral e abertas à comunidade nos finais de semana, etc... Mas pais e mães não têm o direito de exigir que a sala de aula seja uma extensão do espaço doméstico, e principalmente por uma razão.

Escolas são parte da esfera pública, e seu papel, além de apresentar o aluno ao chamado saber formal, é ampliar o conhecimento e a compreensão que ele tem do mundo, complexificar e não simplificar a sua existência. O convívio no espaço público favorece e estimula a interação e a sociabilidade com indivíduos, grupos, valores e crenças que não os familiares, e isso é fundamental para o amadurecimento ético, o desenvolvimento intelectual e a um exercício mais pleno, livre e crítico da cidadania.

A EsP e seus ideólogos sabem disso, e é isso que combatem: em um país de cultura democrática tão débil como o Brasil, a educação se tornou uma trincheira de resistência às muitas formas de autoritarismo e violência. A precarização da escola e do ensino nunca foi um problema a ser denunciado e combatido, mas a ampliação dos direitos, liberdades e igualdade civis, sim.

Eles temem uma sociedade mais plural e sensível às diferenças e a diversidade, sejam elas étnicas, religiosas, de classe ou gênero, e sabem que uma escola e uma educação de qualidade são condições imprescindíveis para a construirmos. Por isso a “Escola sem Partido”, seus ideólogos e defensores, querem uma escola precarizada, sucateada, abandonada e “neutra”. A ideologia por trás desse discurso é perversa, autoritária e violenta. A quem preza e deseja a democracia e a liberdade, resta resistir a ela.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Alunos sem partido
















POR FILIPE FERRARI

O projeto da “Escola sem Partido” continua com suas safadezas. Apesar de meio sumido da mídia, sabemos que as discussões ainda estão nos espaços públicos, e nas redes sociais há diversos incautos que continuam a defender o mesmo. A maioria desses, provavelmente nunca entrou numa sala de aula.

O projeto apresenta uma série de furos e bobagens. Há professores que fazem propaganda partidária? Sim. Há professores que tendem à esquerda? Sim. Entretanto, há professores que defendem a Ditadura Militar? Sim. Há professores que se comportam de maneira homofóbica, sexista, misógina e machista? Tem também! A sala de aula talvez hoje seja um dos ambientes mais plurais da sociedade, onde perfilam todos os tipos de ideologias. A questão principal é: quais discursos a “Escola sem Partido” cerceará?

Entretanto, não é do professor que quero falar, mas dos alunos. Os proponentes do projeto devem enxergar os alunos como meros receptáculos vazios, como se o professor fosse capaz de moldar os estudantes com as suas ideias e eles as aceitassem sem nenhum tipo de crítica. Bom, saibam que não é assim. O mais gratificante da vida de um professor é conseguir também aprender com os alunos. Certamente o professor molda, mas também é moldado. O que falta compreender nesse “projeto”, é que a educação é um processo dialético, onde há a troca de saberes em diferentes graduações.

Existem sim professores que entram em sala, despejam seu conteúdo e não ouvem os alunos (e são professores assim que a “Escola sem Partido” quer), mas esses são professores mortos, que entendem o educar como um fardo. Não vou ser romântico e dizer que ser professor é um mar de rosas. É cansativo, é pesado (especialmente pelas condições de trabalho e reconhecimento), mas em algum lugar reside a “cachacinha da educação”, que uma vez provada, vicia. 

Tenho um exemplo prático disso. Durante toda minha adolescência e parte da vida adulta, execrei o Rap. Carregava comigo esse preconceito cultural e musical. Agora, fazem algumas semanas, tenho ouvido, por influência e insistência de alguns alunos, e hoje percebo o quanto tempo perdi ao não conhecer as rimas pesadas e poderosas de Brown, Criolo e Emicida. Estou me aventurando pelos latinos, e em breve quero chegar no Sabotage. 

Parece bobagem, mas é um exemplo de como a transformação tem duas vias. Como querer professores “neutros”, se os alunos, graças a Deus, não o são? Que cada um tenha os seus partidos (e quem acha que eu estou falando de partido político, que vá procurar um dicionário), e que as transformações diárias estejam em todos os lugares.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

A “Escola sem Partido” é uma farsa












POR CLÓVIS GRUNER

No dia 26 de janeiro deste ano, Miguel Nagib, advogado, fundador, presidente e um dos principais ideólogos da organização “Escola sem partido”, entrou com representação na Procuradoria Geral da República contra o presidente do INEP por “crime de abuso de autoridade e ato de improbidade administrativa”. O motivo alegado foram as ilegalidades contidas no edital do ENEM/2015, mais especificamente das regras pertinentes à redação, cujo ponto foi a violência contra a mulher. Hábil, Nagib optou pela dissimulação: ao longo das pouco mais de 12 páginas da peça jurídica, dirigiu sua argumentação contra a afirmação do presidente do INEP de que seria atribuída nota zero à redação que desrespeitasse os direitos humanos, segundo o ideólogo, um “crime de abuso da autoridade, previsto na Lei 4.898/65”. Nenhuma menção direta à redação e seu tema. 

Na página da ESP, a notícia de que o Ministério Público determinou o arquivamento da representação vem ilustrada com a imagem icônica de representação da censura: visivelmente à força, mãos silenciam uma boca que não pode falar e impedem, também violentamente, os olhos de ver. A mensagem não podia ser mais clara: de acordo com a ideologia da ESP, o respeito aos direitos humanos – no caso específico, o repúdio à violência de gênero – é um ato de cerceamento à “liberdade de consciência e de crença”, que obrigou candidatos a vagas nas universidades a “dizerem o que não pensam”, como por exemplo – e é lícito supor –, que a violência contra a mulher é aceitável.

Há inúmeros exemplos como esse no site da entidade cujo propósito é lutar contra o que chama de “doutrinação ideológica” em curso nas escolas brasileiras. Entre as medidas sugeridas, além da ideologia policialesca que pressupõe ser todo professor um criminoso potencial, a organização oferece um modelo de Projeto de Lei a ser reproduzido sem muito esforço – na verdade, sem esforço algum – por qualquer legislador Brasil afora, bastando inserir ao texto original data e lugar. É este molde padrão que a vereadora e pastora Léia (PSD) usou para apresentar, na Câmara de Vereadores de Joinville, o Projeto de Lei 221/2014, que institui na cidade o “Programa Escola sem Partido”.

O assunto já foi discutido aqui em textos assinados por José António Baço e Thiago Corrêa, mas é preciso voltar a ele não apenas mais uma, mas quantas vezes forem necessárias. A inconsistência do PL 221/2014 aparece já na argumentação que o justifica: de acordo com a proponente, o objetivo é “garantir a neutralidade política, religiosa e ideológica” e, ao mesmo tempo, “a pluralidade de ideias nas escolas municipais de Joinville.”. Bom, ou bem se é neutro, ou bem se é plural, porque morno eu vomito, parafraseando aquele barbudo em nome de quem a vereadora Léia legisla. Ser ao mesmo tempo duas coisas antagônicas e excludentes é bastante difícil. Mas a contradição não é o único nem o maior problema do projeto e da escola que ele pretende parir.

Alguma grana e muita ideologia – Pouco se fala da enorme coincidência entre a criação da ESP e uma verdadeira batalha travada em torno ao negócio de livros didáticos, em meados da década passada. Mas ela é uma das peças fundamentais para se entender a visibilidade adquirida pela entidade e seus ideólogos nos últimos anos, e que surge na esteira do interesse de grandes editoras, como a nativa Abril e a espanhola Santillana, em abocanhar uma fatia de um mercado altamente lucrativo, responsável por aproximadamente 50% do faturamento da indústria editorial brasileira. Lucro, aliás, em parte garantido graças aos vultosos investimentos públicos: iniciativas como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), respondem por cerca de 25% das receitas do setor. 

Como sói acontecer em nosso liberalismo tão singular, também o mercado de livros didáticos se configurou, principalmente nas últimas duas décadas, excessivamente dependente do Estado, além de monopolizado por grandes grupos econômicos. Entre outros meios de pressão cujo objetivo era tirar do mercado as pequenas editoras, tais grupos passaram a se valer das mídias a eles associadas para questionar a qualidade dos livros didáticos e, em seguida, a co-participação dos governos no financiamento de material “ideológico” e “doutrinário”. Não sei se fruto ou não de uma ação coordenada, mas a criação da ESP, em 2004, amplia esse debate, ao mesmo tempo em que desloca o foco dos interesses mercadológicos e econômicos para uma iniciativa de caráter civil e autônoma de “estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”. Nada mais enganoso.

A principal estratégia da ESP é apostar na ignorância não apenas intelectual de seu público – a esmagadora maioria dos que denunciam a “doutrinação ideológica” ou vociferam contra Paulo Freire não fazem a mais pálida ideia do que dizem –, mas também empírica. Não há, da parte dos ideólogos por trás da entidade, a preocupação em mostrar dados estatísticos que suportem afirmações como “um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra (...) para impingir-lhes [aos alunos] a sua própria visão de mundo”; ou “a imensa maioria dos educadores e das autoridades, quando não promove ou apoia a doutrinação”; ou ainda que “a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários” é um “problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras”.

Não há informações precisas porque elas não são necessárias. Trata-se de criar um clima de paranoia generalizada e, nesse caso, quanto mais genérica a afirmação, mais eficiente ela é. E se já é duvidoso apresentar o excepcional como normal, tática amplamente utilizada, a ESP vai mais longe. As “provas” de que estamos diante de “um exército organizado de militantes travestidos de professores” a deturpar seus alunos são sempre fragmentárias: um recorte de revista utilizada em uma aula; uma ementa, unidade ou tópico de um programa disciplinar; o depoimento de um ou uma estudante que se sentiu prejudicado. Não há contexto, nem verificação, nem acompanhamento, tampouco diálogo. Nada. A ESP não é apenas desonesta, mas perversa: ela fabrica a exceção que tratará, em seguida, de apresentar como regra; regra que servirá de prova a justificar e sustentar seu empreendimento policialesco, moralizante e ideológico.

Uma escola plural não pode ser neutra – No começo desse texto anotei a contradição na justificativa da vereadora Léia, querer ao mesmo tempo uma escola “neutra” e “plural”. Na verdade, me enganei: há nesse desejo duas contradições. A primeira de ordem, diríamos, ontológica: não é possível ser neutro porque o simples ato de estar no mundo já pressupõe uma tomada de posição. A contradição é maior porque, justamente, a legisladora pretende uma escola “neutra” como condição à afirmação da “pluralidade de ideias”. No bojo dessa reivindicação está o temor, alimentado especialmente entre grupos e indivíduos religiosos e conservadores, de que a escola desvie seus alunos das condutas e educação familiares. 

De acordo com essa argumentação, pais e mães tem o direito de exigir que professores e professoras não ensinem aos seus filhos e filhas nada que contrarie seus próprios valores. Mas eles não tem. Pais e mães tem o direito de exigir a qualidade no ensino, o acesso universal à sala de aula e de que a educação seja, de fato, um direito de todos e todas, por exemplo. Pais e mães tem o direito de reivindicar e exigir escolas estruturadas, equipadas e habitáveis; profissionais (professores, pedagogos, técnicos, pessoal administrativo e de apoio) valorizados e bem pagos; uniforme, material escolar e merenda garantidos pelos governos; esportes e atividades culturais no espaço escolar; escolas em período integral e abertas à comunidade nos finais de semana, etc... 

Mas não, pais e mães não tem o direito de exigir que a sala de aula seja uma extensão do espaço doméstico e por uma razão, entre outras. As escolas, mesmo as privadas, são parte da esfera pública, e seu papel, além de apresentar o aluno ao chamado saber formal, é ampliar o conhecimento e a compreensão que ele tem do mundo, complexificar e não simplificar a sua existência. O convívio no espaço público favorece e estimula a interação e a sociabilidade com indivíduos, grupos, valores e crenças que não os familiares, e isso é fundamental para o amadurecimento ético, o desenvolvimento intelectual e a um exercício mais pleno, livre e crítico da cidadania.

Não é casual que nenhuma das exigências acima está na pauta da ESP. À entidade, seus ideólogos e defensores a precarização da escola e do ensino nunca foi um problema a ser denunciado e combatido. Mas a ampliação dos direitos, liberdades e igualdade civis, sim. Eles temem uma sociedade mais plural e sensível às diferenças e a diversidade, sejam elas étnicas, religiosas, de classe ou gênero, e sabem que uma escola e uma educação de qualidade são condições imprescindíveis para a construirmos. Por isso a Escola sem Partido, seus ideólogos e defensores, querem uma escola precarizada, sucateada, abandonada e “neutra”. A ideologia por trás desse discurso é perversa, autoritária e violenta. A quem preza e deseja a democracia e a liberdade, resta resistir a ela. 

terça-feira, 14 de junho de 2016

Escola sem partido, um crime de lesa-inteligência


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

É impressionante o tantão de gente que puxa o Brasil para o atraso. Parece que há um certo prazer em sabotar o país. E nem é preciso ir longe para constatar. A obtusidade fez ninho na Câmara de Vereadores de Joinville (ok... não é de agora), onde está em discussão a ideia de implantar a tal “escola sem partido”. Uau! Agora já se tenta impor a ignorância por decretos. Ou seja, usar a "legalidade" para cometer um crime de lesa-inteligência.

É difícil imaginar as razões que levam a ver mérito numa proposta tão retrógrada. Mas  a vereadora-pastora Léia encontra virtudes e, segundo o site da CVJ, até fez da “escola sem partido” uma bandeira do seu mandato. Aliás, antes de prosseguir permito-me um parêntese. As palavras “vereadora” e “pastora” numa mesma frase provocam comichões. Tudo remete para rebanhos e para a velha expressão “curral eleitoral”.

Parece ser uma questão de fé na iliteracia. A proposta parte de uma visão canhestra do ensino, em que o professor é visto como o inimigo capaz de fazer a cabeça dos estudantes. E o que propõe a tal “escola sem partido”? Ora, uma doutrinação reversa na qual a doutrina passa pela transformação dos estudantes em autômatos abúlicos. Ortogênese dos corpos dóceis, diria Foucault. Parem de brincar com coisas sérias, senhores vereadores.

A vereadora-pastora Léia propõe, em texto no site da CVJ, evitar que os estudantes sejam influenciados (ou doutrinados) em temas mais candentes. “Questões políticas, religiosas e ideológicas são muitos pessoais e familiares. Esse tipo de educação doutrinária pertence aos pais. As crianças e adolescentes têm o direito de ter suas ideias e suas ideologias e não ser influenciados nisso nas escolas”, afirmou.

Errado, pastora. Aliás, como diria Chaves, “dá zero para ela”. Chaves... o outro, porque não quero ser acusado de doutrinação bolivariana. Podemos até deixar a religião de barato, uma vez que a sua essência é ser doutrinária. Mas no plano familiar o prosélito defendido pela vereadora não se aplica aos temas da “política” e “ideologia”. Porque estes obrigam ao embate de ideias. É esse um dos muito papéis da escola.

A vereadora-pastora e seus sequazes demonstram um entendimento canhestro dos processos de subjetivação. Ou seja, esse pessoal acredita que o sujeito, no seu processo de construção, é um receptáculo vazio, pronto a ser preenchido com ideias que lhe são impostas de fora. Isso é besteira. A subjetividade resulta de um processo negocial. Para isso são necessários interlocutores capazes de produzir dissensos, antíteses, oposições.

Mais debate, melhores cidadãos. Mas é exatamente isso o que se propõe retirar com o decreto. Aliás, o nome “escola sem partido” é um slogan político inserido numa velha estratégia: apontar um mal inexistente e depois apresentar a "solução". É capaz de convencer os que pensam em slow motion, mas qualquer pessoa com dois dedinhos de testa sabe que slogans não fazem programas educacionais.

Nem vale a pena discutir a questão pedagógica (os especialistas têm feito um bom trabalho), porque o atraso é evidente. O ideário escondido por trás do slogan “escola sem partido” é obscurantista. Aceitá-lo é um erro grosseiro. E que põe o Brasil a andar na contramão da civilização. Por fim, há um fator incontornável: a educação é coisa séria demais para ser deixada nas mãos de vereadores cuja literacia é questionável.


É a dança da chuva.


sexta-feira, 3 de junho de 2016

Uma caixa preta chamada CVJ


POR THIAGO LUIZ CORRÊA


Nesta segunda feira, acessando o Chuva Ácida, fui surpreendido pelo post do José António Baço sobre o tal "escola sem partido". Apesar de já ter ouvido falar deste tipo de projeto de lei rodando por aí não tinha ideia de que esta sandice já tivesse embarcado aqui em Joinville.

Bateu a curiosidade de saber mais detalhes sobre o projeto e, sobretudo, saber se esta iniciativa da Vereadora Léia (na verdade Pastora Léia, mas me recuso a chamá-la de pastora quando ela toma decisões que não afetam apenas a sua comunidade religiosa mas a toda a sociedade) tem alguma novidade ou invenção sua ou não passa de uma cópia do projeto já apresentado em outras esferas públicas Brasil afora.


Pois bem, na minha busca pela íntegra do projeto acessei a notícia que o projeto havia passado pela Comissão de Legislação formada pelos vereadores Maurício Peixer, Claudio Aragão, James Schroeder, Manoel Francisco Bento e Sidney Sabel. Na mesma matéria há um link que redirecionaria o cidadão ao documento em questão para apreciação. Qual a minha surpresa quando ao acessar este link me deparo com a informação de que o site está em manutenção (imagem no início do texto).

Em uma época em que pensamentos complexos são reduzidos a memes com imagens fora de contexto e um texto com não mais de três linhas, esta página resume como o poder público de Joinville não tem interesse algum em prestar contas de sua atuação à sociedade agindo como uma caixa preta para defender os seus próprios interesses.

Eu realmente ainda estou avaliando o que mais me revolta nesta imagem, se o fato de parecer que o site foi feito por uma criança de 7 anos que acabou de sair da terceira aula de programação web, se a imagem no canto direito de uma pessoa dormindo em uma cadeira de escritório, se o fato que esta página exibe ao centro, quase que como a se orgulhar de não servir o seu propósito há mais de um ano ou se a imagem de uma mesa de reunião em que todos estão olhando pra mim, como se fossem os próprios vereadores constrangidos por terem sido pegos depois de tanto tempo de pernas pro ar.

O conjunto da obra debocha da minha cara como que dizendo "cuide da sua vida" ou "não pense em críticas, trabalhe".

terça-feira, 31 de maio de 2016

A escola sem partido ensina até dedo-durismo


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO 

O aparecimento da tal “escola sem partido” (em minúsculas) deve ser um dos episódios mais sombrios da história recente do Brasil. E olhem que o páreo é duro, porque nos últimos tempos o país tem caminhado a galope para o obscurantismo. Os conservadores alegam a existência de uma suposta “doutrinação ideológica” de esquerda nas escolas. E o que propõem em substituição? Ora, uma doutrinação ideológica da direita mais atrasada.

Os conservadores vivem um transe que os leva rejeitar tudo o que aponte para a razão, para as luzes, para o esclarecimento (por iliteracia política, confundem pensamento racional com “esquerda”). Não vamos esquecer que os modelos de ensino atuais são, em grande medida, herdeiros do ideário do Iluminismo, que, no seu momento original, falava no uso da razão para fazer evoluir a vida das pessoas. “Tem coragem para fazer uso da tua própria razão”, disse Kant.

Há muita gente a rejeitar a proposta de “escola sem partido”, sob o argumento de que é uma tentativa de impor o pensamento único. Discordo. O que está em jogo é a simples rejeição do pensamento. Ou, passe o trocadilho, a tentativa impor um único pensamento: atacar o que consideram ser a tal doutrinação de esquerda. Mas não estamos a falar da esquerda corporificada num conjunto de ideias. A esquerda dos conservadores é apenas um monstro criado pelas suas mentes supersticiosas.

O “escola sem partido” tem um site muito completo. Não é preciso aprofundar a navegação porque as coisas saltam aos olhos. Há uma rubrica chamada “flagrando o doutrinador” que, com quase duas dezenas de “ensinamentos”, estimula o espírito delator dos estudantes. Ou seja, ensina a ser dedo-duro. Mas quem pode criticar algo que está em plena sintonia com a realidade brasileira? A delação é premiada e os delatores viram heróis nacionais. Faz sentido. É quase um ensinamento de carreira.

Mas não estamos a falar de dedos-duros quaisquer. O site tem outro link chamado “planeje sua denúncia”, onde ensina uns truquezinhos que permitem aos alunos denunciar professores com método. E o mais importante: em segurança e sem correr riscos de passar por um acareamento. “Esperem, se necessário, até sair da escola ou da faculdade. Não há pressa”, ensina o site. O dedo-durismo é um prato que se come frio. Enfim, a “escola sem partido” parece propor uma versão tupiniquim da Caça às Bruxas.

Mas o ponto alto do site é mesmo o filme apresentado como o “tema musical da educação brasileira” (no final do texto). E qual é a música? Uma paródia de “A Banda”, de Chico Buarque (ironia das ironias). Mas a coisa fica ainda mais emocionante. Porque o argumento é de autoria do grande pedagogo Danilo Gentili. O refrão é suficiente para mostrar o que se passa pela cabeça desses grandes intelectuais: “estava à toa na classe o professor me chamou, pra me lobotomizar, me transformar num robô”.

A coisa continua, com frases que servem apenas para ironizar – e rejeitar – nomes como Marilena Chauí, Mikhail Bakunin, Michel Foucault, Paulo Freire ou o próprio Chico Buarque, que não levou nada de direitos autorais (“o autor da paródia se isenta de qualquer remuneração sobre os direitos autorais da mesma”, explica o texto). Enfim, é um daqueles casos em que só cabe uma definição: é a ignorância petulante em ação. O problema é que muita gente leva a sério.

O CASO FROTA  - A desgraça nunca acaba. Eis uma prova factual – e cabal – da rejeição do pensamento no Brasil. Em que sociedade civilizada Alexandre Frota poderia ser considerado conselheiro para a área da Educação? É uma descarada tentativa de doutrinação. Só que a doutrina é o que há de mais atrasado.


É a dança da chuva.