POR MARIA ELISA MÁXIMO
Enquanto pensava sobre o tema para meu post de estreia nesse coletivo, um desejo se atravessava a todas as ideias: o de escrever sobre algo que fosse relativo às mulheres. Não apenas por ser eu a única mulher entre os demais que aqui escrevem - até mesmo porque eu não acredito que apenas nós, mulheres, devemos pensar e escrever sobre assuntos que nos dizem respeito -, mas porque tenho percebido que, em Joinville, alguns temas têm sido relegados ao segundo plano pelos movimentos sociais e, sobretudo, pela esquerda (se é que hoje é possível, ainda, dividir o cenário político entre esquerda e direita).
Logo pensei em falar sobre o abor
to, mais especificamente sobre a descriminalização do aborto, aproveitando que dia 28 de setembro, próxima quarta-feira, é o
dia latino-americano pela descriminalização do aborto. Penso que este assunto revela várias de nossas mazelas, para além daquelas que sempre foram alvo das lutas feministas. Hoje, aqueles que um dia colocaram este tema nas pautas de lutas, muitas vezes se encolhem diante do assunto, sobretudo quando enfrentá-lo pode resultar em perda de eleitorado. Lembremos das últimas eleições presidenciais e da posição escorregadia que a Dilma precisou assumir diante daquilo que ela teria dito, outrora, sobre o aborto. Antes disso, aqui em Joinville, o então deputado Carlito Merss se viu obrigado a espalhar
outdoors pela cidade afirmando ser "contra o aborto e a favor da vida".
O tema da descriminaliação do aborto transita nas pautas do movimento feminista e do Congresso Nacional desde os anos 70, 80. Nesta época, a discussão ficava entre a descriminalização total do aborto, a descriminalização regulamentada ou a ampliação dos permissivos legais do Código Penal (casos de risco de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro). Segundo Leila Barsted, decidir entre estas três possibilidades representava, para as feministas, optar pela estratégia mais eficaz para que o Estado brasileiro aceitasse como comportamento lícito a interrupção voluntária da gravidez (BARSTED, 1997). Cada uma destas três propostas incluia a luta pela garantia do atendimento gratuito, na rede pública de saúde, dos casos já previstos em lei (inciso II, artigo 128, Cód. Penal).
No entanto, nos anos 90, este debate perdeu sua centralidade no âmbito dos movimentos feministas ou, como coloca Barsted, perdeu sua "radicalidade". Manteve-se o foco nas reivindicações pelo atendimento na rede pública de saúde aos casos de interrupção de gravidez já previstos por lei, enquanto que as demandas pela descriminalização e/ou pela ampliação dos permissivos legais foram relegadas ao segundo plano. E, segundo a autora, isso possivelmente se deve à postura conservadora do Estado brasileiro em relação ao tema, mesmo após a redemocratização consolidada na Constituição Federal de 1988. É aí que se manifesta, principalmente, a dificuldade de construirmos e consolidarmos um Estado verdadeiramente laico, sem a influência de grupos religiosos e fundamentalistas, que se volte à construção de uma sociedade realmente pluralista.
Além disso, Barsted nos fala da ressonância que há no Congresso Nacional dos movimentos conservadores na área do Direito, sobretudo a face repressora do direito penal, que colabora na construção de uma legislação cada vez mais repressiva, "sem criar mecanismos preventivos para a segurança do cidadão, sem buscar soluções alternativas à dramática ineficácia do sistema penitenciário e sem enfrentar as mais diversas causas geradoras da violência" (BARSTED, 1997, p. 2). Essa onda repressora que domina a dinâmica legislativa brasileira, respinga muitas vezes nos próprios movimentos sociais, que acabam defendendo medidas igualmente repressoras e criminalizantes em defesa dos direitos humanos. Neste ponto, a autora nos dá como exemplo as propostas de criminalização do assédio sexual, com o apoio de alguns setores dos movimentos sociais e feministas: o que antes se restringia ao exercício de poder que cerceia e constrange sexualmente a vítima das relações empregatícias, entre médico e paciente, entre professor e aluno, passou a caracterizar qualquer tipo de molestamento sexual, desde o mais grave (indicando estupro) até a mais simples "cantada" em uma mesa de bar (idem, p.3).
Essa descaracterização do assédio sexual leva à chacota, banalizando, junto à opinião pública, a verdadeira intenção do movimento de mulheres de denunciar e dar visibilidade às relações de poder revestidas de constrangimento sexual (BARSTED, 1997).
É possível traspormos esta crítica a várias frentes dos movimentos sociais que, atualmente, centram-se mais na defesa de propostas criminalizantes do que pela busca da liberdade e da garantia dos direitos fundamentais do ser humano. É preciso refletir sobre até que ponto não estamos, em alguns casos, nos deixando capturar pelas armadilhas ideológicas do movimento conservador no Direito.
Para tirar o aborto do rol dos crimes é preciso, portanto, aprofudar os argumentos éticos-jurídicos a partir de uma interlocução mais estreita com as frentes democráticas e críticas do Direito, fundadas principalmente numa proposta reformadora do direito penal que vise o esvaziamento de medidas criminalizantes e repressoras em termos gerais e, consequentemente, a aplicação de normas jurídicas de normas não-penais. Antes disso, ainda nos falta garantir a plena incorporação do "aborto legal" (nos casos previsto em lei) pelo SUS. Nem nesse ponto conseguimos avançar totalmente.
Na década de 80, o então Conselho Nacional dos Direitos da Mulher aliou-se ao movimento feminista na organização do Encontro Nacional de Saúde da Mulher (1989), onde se produziu a Carta da Mulheres em Defesa do seu Direito à Saúde. Nesta carta, o aborto era considerado um problema de sáude da mulher e, que por isso mesmo, deveria ser retirado do Código Penal. Já naquele momento, contestava-se o poder do Estado em legislar sobre a intimidade do indivíduo e reivindicava-se a liberdade reprodutiva. E é nesse ponto que eu gostaria de chegar, como forma de fomentar o debate. Antes de qualquer coisa, o aborto deve ser tratado como direito da mulher, acolhido pela lei e livre de argumentos moralizantes. Os movimentos sociais, não só os feministas, deveriam retomar este debate no âmbito das discussões acerca dos direitos humanos. É importante termos em mente que "o direito de nascer não necessariamente significa uma real garantia de vida" (
Helena Máximo, 2006).
Finalmente, é crucial que se entenda, de uma vez por todas, que defender a descriminalização do aborto não significa "ser a favor do aborto" e, menos ainda, "ser contra a vida". Aliás, da vida de quem está se falando? As mulheres que já fizeram um aborto - ainda mais de forma clandestina, como criminosas, sob circunstâncias muitas vezes insalubres, são elas as primeiras a testemunharem o quão difícil e dolorosa é esta decisão, envolta sempre em tantos tabus, tendo que ser tomada em situações de insegurança e sofrimento.
Ref. Bibliográficas
BARSTED, Leila. O movimento feminista e a descriminalização do aborto. Revista de Estudos Feministas, v. 5, n. 2, Florianópolis, 1997. Disponível em:
http://www.ieg.ufsc.br/revista_detalhe_volume.php?id=189. Acessado em: 24/09/2011.
MÁXIMO, Helena. O crime do Padre Amaro. Uivemos, 28/09/2006. Disponível em:
http://uivemos.blogspot.com/2005/09/o-crime-do-padre-amaro.html. Acessado em 24/09/2011.