quarta-feira, 31 de julho de 2024

O Trump esquisitão e o poder das palavras

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

As palavras têm poder e o uso estratégico da linguagem não é novidade na política. Os ciclos eleitorais têm o condão de revelar a semântica como uma arma poderosa. Uma palavra bem escolhida ou uma expressão bem articulada podem influenciar opiniões, direcionar narrativas e, em última instância, afetar o voto dos eleitores. Os norte-americanos são craques nisso. Quem não se lembra do “Yes, We Can”, na campanha de Obama? Ou o “sem medo de ser feliz” de Lula? São dois clássicos. 

 Os últimos dias foram pródigos em reviravoltas nos EUA. Saiu Joe Biden, entrou Kamala Harris. E tudo mudou, inclusive o uso da linguagem. Um exemplo recente é a tática dos democratas, que passaram a chamar Donald Trump de “weird” (estranhão) nas suas intervenções. A escolha da palavra não é aleatória. Há uma estratégia bem pensada por trás da ideia. Porque Trump é mesmo esquisitão. Ao longo dos últimos anos, os norte-americanos conviveram com o estilo doidão do ex-presidente. Mas lá em casa, sentados no sofá, os eleitores pensavam:
- Este tipo é mesmo estranhão.

O fato é que a coisa pegou. Porque só cola se houver alguma razão. O mais formidável é que a ideia da esquisitice contaminou também os eleitores de Trump (que, vale dizer, não são menos esquisitos). O fato é que a termo carrega conotações que podem dar uma chacoalhada na imagem do republicano. “Estranhão” sugere que ele é imprevisível, fora do comum e, de certa forma, desconectado da realidade convencional. E é fácil acreditar. O epíteto é muito eficaz em contrastar Trump com a imagem de estabilidade e normalidade que o país precisa.

No ambiente político, em especial nos EUA, as palavras são cuidadosamente escolhidas de forma a evocar reações emocionais e cognitivas específicas no eleitorado. Kamala Harris traz uma imagem de competência, firmeza e inovação. Ou seja, é o oposto de um Trump “estranhão”. Quando os democratas dizem que o opositor é esquisitão, a crítica não é apenas às suas políticas ou comportamentos específicos. A ideia é criar uma narrativa que “infantiliza” o candidato republicano.

A semântica das eleições é um campo de batalha onde cada palavra conta. Na era da comunicação instantânea e das redes sociais, a capacidade de capturar a atenção do público com uma palavra ou frase pode ser decisiva. A caracterização de Trump como “estranhão” pelos democratas é uma jogada calculada para dominar a narrativa e influenciar as conversas nas mídias sociais, nos debates e nas discussões cotidianas dos eleitores.

É o que faz lembrar do caso Bolsonaro. Talvez os seus opositores não tenham encontrado as palavras certas para criar uma narrativa desmoralizadora. Ou talvez a culpa seja da seriedade de políticos que ainda não perceberam uma coisa elementar: em tempos de comunicação digital, a semântica é tão importante quanto a substância. E por vezes é preciso sair das vestes vetustas. Porque em ambiente político as palavras podem moldar percepções.

É a dança da chuva.




















terça-feira, 30 de julho de 2024

O mundo precisa de mitoclastas

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Poucos intelectuais desenvolveram um pensamento tão refinado quanto Roland Barthes. A sua obra é tão extensa quanto densa e um dos conceitos mais instigantes é o de “mitoclastia”. Ou seja, destruir mitos. Para situar o leitor menos familiarizado com os escritos do pensador francês, o mito é uma distorção que resulta da des-historicização dos signos. Trocando em miúdos, são aquelas coisas que todos nós entendemos como “naturais”, mas que na realidade são históricas, portanto socialmente construídas (é mais complexo do que isso, claro). 

Um mitoclasta duvida, quer ver o mundo pelo viés da história. E por isso questiona todas as verdades, em especial aquelas que parecem mais afirmativas. Para ficar mais claro, vamos a um exemplo prático do nosso dia-a-dia (já escrevi sobre isto antes). O Brasil tem um presidente da República sem diploma. O pequeno-burguês torce o nariz. Porque ele acredita no mito, construído ao longo dos tempos, que divide os homens entre diplomados e não-diplomados, cultos e não-cultos, apesar de diploma e cultura nem sempre viverem na mesma casa.

As "verdades absolutas" são aquelas noções que, de tão arraigadas no pensamento coletivo, são aceitas sem questionamento. Essas verdades estão também na história do cotidiano. Outro exemplo mundano? Os padrões de beleza. Muitos acham que não universais. Mas não. A beleza também é histórica. Nos tempos da peste, as pessoas mais “cheinhas” podiam ser consideradas as mais belas, porque resistentes. O pintor flamengo Peter Paul Rubens ficou conhecido por suas representações de mulheres mais fofinhas, um ideal de beleza daquela época.

O mitoclasta é um destruidor de certezas. Porque ao desafiar as convicções absolutas, o mitoclasta força a reconsiderar crenças. Mais do que isto, obriga a ver que muitas delas são produtos de contextos históricos específicos e não verdades universais. Outro exemplo daquilo que se insiste ser natural: hoje é comum, em especial entre os políticos de direita, dizer que um casal é formado por um homem e uma mulher. É uma “verdade” destes tempos, mas que logo será engolida pela tempestade da história. Porque tudo passa. Tudo é histórico. 

A função do mitoclasta é desconstruir as ideias de “normalidade” e “naturalidade”, noções quase sempre moldadas por forças históricas e culturais. O mitoclasta é inimigo daqueles que se apegam a simplificações e generalizações, seja à esquerda, à direita ou ao centro. Enfim, nas sociedades hodiernas, tomadas por logros, mistificações e desinformações, o mitoclasta tem o papel de tentar trazer a clareza. É um trabalho difícil. Mas o mundo precisa deles.

É a dança da chuva.


Anna e os Anciãos, de Rubens



quarta-feira, 17 de julho de 2024

Soldado caído ou o fotógrafo caído?

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

“Soldado Caído” (“Falling Soldier”) é uma das imagens mais icônicas e controversas da história da fotografia de guerra. Feita por Robert Capa, um dos mais importantes fotojornalistas do século XX, a imagem foi supostamente tirada em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola. A imagem é de um soldado republicano no momento exato em que parece ser atingido por um tiro e cai para trás.

A fotografia foi publicada pela primeira vez na revista francesa “Vu” e depois em outras publicações. Muito rápido virou um símbolo do conflito e do sacrifício humano na guerra. Mas a imagem enfrenta uma controvérsia sobre a veracidade e desde a sua publicação tem sido alvo de debates intensos sobre sua autenticidade.

Qual é a controvérsia? Para começar, a localização e as circunstâncias, porque originalmente ela teria sido feita perto de Cerro Muriano, na Espanha. No entanto, alguns estudos e investigações sugerem que a localização poderia ser outra, como Espejo. A principal questão é se a foto realmente captura o momento exato da morte de um soldado ou se foi encenada.

Robert Capa afirmou que a imagem era genuína, mas a ausência de documentação sólida e testemunhas diretas alimentou as dúvidas. Muitas análises foram conduzidas ao longo dos anos, incluindo estudos forenses e históricos. Algumas sugerem que a posição do soldado e o contexto da foto não são consistentes com um ferimento fatal. Além disso, foram encontradas fotos adicionais de soldados em posições similares que sugerem que poderiam estar posando.

Relatos de pessoas próximas do fotógrafo durante a Guerra Civil Espanhola, incluindo outros jornalistas, às vezes contradizem a narrativa oficial. Há quem afirme que Robert Capa frequentemente pedia aos soldados que posassem para ele. Mas mesmo com a controvérsia, “Falling Soldier” teve muito impacto. A foto se tornou um ícone do fotojornalismo de guerra, simbolizando a brutalidade e o sacrifício inerentes aos conflitos armados.

A controvérsia levantou questões importantes sobre a ética no fotojornalismo, incluindo a responsabilidade dos fotógrafos em representar a verdade e a linha tênue entre documentário e encenação. Há um fato importante: a imagem ajudou a consolidar a reputação de Robert Capa como um dos grandes fotojornalistas do século XX, embora a controvérsia tenha, em parte, manchado o seu legado.





quarta-feira, 3 de julho de 2024

Corpos negros são frutos estranhos

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há fotografias que capturam um momento e que acabam por marcar a história das sociedades. Algumas, de tão poderosas, acabam até por originar canções. É o caso de "Strange Fruit" (Estranhos Frutos), célebre na voz da inigualável Billie Holiday. Composta por Abel Meeropol (sob o pseudônimo de Lewis Allan) em 1937, é uma música de protesto contra o linchamento de negros nos Estados Unidos. E acabou por se tornar um marco cultural e um hino do movimento pelos direitos civis.

A letra foi inspirada por uma fotografia de 1930, feita por Lawrence Beitler, onde são mostrados os corpos de dois negros, linchados e pendurados em árvores no Mississipi. A imagem chocante e brutal comoveu Meeropol, que a incorporou nos seus versos poéticos. Inicialmente, ele escreveu a letra como um poema, publicado na revista marxista "The New Masses". A canção utiliza uma linguagem carregada de simbolismo.

Os "estranhos frutos" do título são metáforas para os corpos dos negros linchados, pendurados em árvores como macabros frutos da árvore do ódio e da violência racial. A letra denuncia a brutalidade e a injustiça dos linchamentos, expondo o racismo sistêmico e a crueldade da segregação racial nos EUA da época (e que ainda durou por muito tempo). A voz de Billie Holiday, que popularizou a canção em 1939, transmite a dor profunda e o sofrimento causados pela violência racial. 

A performance de Billie Holiday, sempre muito intimista e pesarosa, é poderosa. Mas gerou reações negativas do público branco, principalmente nos estados do sul dos EUA. A canção era frequentemente proibida em clubes e casas noturnas, especialmente em locais onde ainda havia segregação (lugares interditados aos negros). As autoridades também atuaram para censurar a performance de Holiday, pressionando-a a não cantar a música. A insistência em incluir a peça nas suas aparições custou muito à cantora.



terça-feira, 2 de julho de 2024

A inteligência artificial já consegue criar o banal

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há muita gente respeitável a dizer que, em tempos de tecnologias digitais, em consequência do uso intensivo dos telefones móveis, os jovens estão a usar apenas 800 palavras para comunicar no dia a dia. É muito pouco se tivermos em consideração que o VOP – Vocabulário Ortográfico do Português refere 210 mil entradas, enquanto o dicionário brasileiro Houaiss, talvez o mais robusto, tem quase 400 mil palavras. Se mantivermos a análise no plano estrito dos números, isso significaria o uso de menos de 1% de todas as possibilidades da língua portuguesa.

É de lembrar que o ponto de partida para a análise não vem de um país lusófono. A tese foi popularizada há mais de uma década pela linguista Jean Gross, conselheira do governo britânico para o discurso das crianças. Ela usou como referência um trabalho do pesquisador Tony McEnery, professor de linguística da Universidade de Lancaster. Uma reportagem do “Daily Mail” contribuiu para difundir a ideia por todo o mundo. A análise de Gross tem um dado interessante: ela diz que, aos 16 anos, um jovem deveria ter um vocabulário próximo das 40 mil palavras.

Importante salientar que a teoria é contestada por outros estudiosos, que apontam precariedades na análise da pesquisadora. Não interessa aqui discutir a fiabilidade ou não dos dados, mas sim presumir que há um problema. Afinal, onde há fumaça há fogo. E se alguém decidiu lançar um número para cima da mesa, é sinal que devemos estar atentos à questão da precariedade linguística dos jovens. Porque, nas palavras de Wittengstein, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Ou seja, uma linguagem pouco sofisticada leva a uma interpretação pouco sofisticada do mundo.

Mas o que isso tem a ver com a criação publicitária? Tudo. Criar é fazer sinapses. E as sinapses estão alicerçadas nas palavras. É importante repetir: pensamento é linguagem. O encolhimento do vocabulário das novas gerações de publicitários – em todas as linhas – só pode produzir um encurtamento da capacidade criativa. Afinal, as sinapses já não conseguem ir tão longe. Tudo isso explica a mudança nos padrões criativos nas últimas décadas. A tecnologia liberta, mas também oprime. Se por um lado o digital facilita a vida, por outro tira capacidade analítica.

A linguagem é elemento constituinte do sujeito e das subjetividades. E se as pessoas vivem num estágio lúmpen-linguístico, o resultado só pode ser o aplainar das capacidades criativas. E o risco vem daí. Porque a inteligência artificial já consegue criar o banal.