quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Depredação da Rio dos Peixes é sintoma de degradação social

POR RAQUEL MIGLIORINI
Recentemente, a sede do Instituto Sócio-Ambiental Rio dos Peixes, uma OSCIP que tem como objetivo a Educação Ambiental e preservação da Bacia Hidrográfica do Rio Piraí, foi depredada e muito material foi destruído. Toda a fiação elétrica foi roubada, o telhado foi danificado (o que provocou infiltração em muitas salas) e paredes foram pichadas. Nas pichações, aparece o nome do responsável: PGC – Primeiro Grupo Catarinense.

Parece claro que traficantes e milícias que ocupam alguns bairros da cidade não se preocupariam em roubar e vender fios por uns trocados. É necessário fazer um exercício e ampliar o olhar. Esses grupos aliciam menores, moradores da periferia. Sem acesso a Cultura, Esportes e Educação Integral de qualidade, essas crianças e adolescentes são presas fáceis por não terem nada de valor ao seu redor e por não terem a alma alimentada por coisas que não estão na cesta básica. Esse vazio é preenchido com a promessa de status e dinheiro fácil que o crime organizado proporciona. O começo desse processo é o vandalismo e o roubo e venda de materiais de pouco valor.

Não há novidade aqui. Esse processo aconteceu na maioria das grandes cidades brasileiras. Chegamos ao caos extremo do Rio de Janeiro mas, proporcionalmente, Joinville não se encontra tão distante.

Existe uma receita que, se feita corretamente, nunca desanda: 
manter essas crianças com a alma tão alimentada por música, dança, teatro e todas as outras formas de arte, de modo que elas falem NÃO ao convite dos traficantes. 
Oferecer diversas modalidades esportivas para que esses jovens desenvolvam habilidades e se sintam valorizados.
Oferecer Educação de qualidade para que os pais tenham suporte e possam trabalhar seguros de que seus filhos não estão à mercê de qualquer indivíduo na rua.
Pensar a cidade da periferia para o Centro, e não o contrário. Embelezar o bairro e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos faz com que eles tenham orgulho e cuidem do lugar onde moram.

Ao compararmos essa lista com a reforma administrativa recente e com o “enterro” dos planos municipais de cultura, esporte, de meio ambiente, de saneamento básico, temos um panorama claro e triste do que acontece na cidade, longe das ruas com nomes ilustres. A atual Câmara de Vereadores chancela todos os pedidos do Executivo sem discussão e sem responsabilidade pela queda vertiginosa da qualidade de vida dos habitantes da cidade.

Pior do que os governantes não exercitarem esse olhar e adotarem essas medidas, é a fala generalizada de que só é vândalo e ladrão quem quer. Que se a pessoa quiser, ela se torna um “cidadão de bem”. E ainda, pensar no crescimento da cidade com a oferta de subempregos, sem mobilidade e moradia adequadas.

Joinville cresceu e não se deu ao trabalho de aprender com os erros seculares de outras cidades. A depredação da sede Rio dos Peixes é um pequeno sintoma que a degradação social já está em andamento na Cidade das Flores (sic).

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O Brasil e a suruba ideológica

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Pobre Brasil. Os efeitos do golpe podem ser comparados ao bêbado que, ao descer uma escada, erra o primeiro degrau. E se errou o primeiro... erra todos. O fato é que o país mergulhou numa espiral de insanidade que parece não ter hora para acabar. As estocadas não foram apenas políticas (a queda de Dilma) ou econômicas (a imposição de um modelo neoliberal). O buraco é mais em baixo.

A grande mudança foi cultural. Mas de forma negativa. O Brasil está a ser transformado numa enorme suruba ideológica, onde escroques e todos os tipos de aproveitadores estão empenhado em açambarcar a sua parte do butim. A coisa virou uma bandalheira. A moral e a ética despencaram para o grau zero e muitas pessoas do círculo do poder atual perderam a noção de ridículo. Não é teoria. Há fatos e personagens para comprovar. 

O analfabeto-mirim Kim Kataguiri divulgou uma lista de pessoas que se recusaram a “debater” com ele? Fico por um dos nomes: Jânio de Freitas. É um crime de lesa-inteligência. Será que ele pensa mesmo ser capaz de debater com o velho jornalista. Ah ah ah. Aliás, é bom lembrar que ele foi atropelado pelo senador Roberto Requião num debate na Guaíba.

E o que dizer da ex-futura-quase-ministra Cristiane Brasil que, cercada por genéricos de Alexandre Frota num barco de luxo, pôs a circular nas redes sociais um vídeo onde diz nada com coisa alguma. E para completar o nonsense, os brucutus ainda acham relevante para a história o planeta que façam depoimentos a defendê-la. Sério?

A coluna Painel, da Folha, divulgou que o juiz Marcelo Bretas foi inquirido por receber auxílio moradia, junto com a mulher. O que é proibido, segundo o jornal. Diante do fato, o juiz, muito conhecido pelo seu moralismo e fervor evangélico, argumentou ser tudo legal.  É moral? Claro que não. Mas os moralistas têm uma moralidade muito volátil.

O “presidente” Michel Temer vai ao programa Sílvio Santos, numa tentativa de fazer a reforma da previdência ficar mais palatável para o povão. De fato, quis mesmo foi dar um cagaço na população. Para fechar a coisa, tentou fazer humor: “eu vou passar um dinheiro para você”. E deu 50 reais ao apresentador em mãos. Mas todos sabem o que significa, né?

Enfim, são apenas alguns exemplos a mostrar o grau de descaramento que tomou conta do país. Perdeu-se a noção de ridículo. As esferas de poder estão mergulhadas num lodaçal e, com as atuais peças em jogo, não parece que um dia seja possível dar um xeque-mate aos malfeitos. Pobre Brasil.

É a dança da chuva.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O jeito chileno de fazer bem versus o jeito sambaquiano de fazer nas coxas

POR JORDI CASTAN
Aproveitei as férias para visitar Santiago de Chile e cheguei à conclusão que estes chilenos estão loucos. Endoidaram. Insistem em fazer as coisas bem feitas, em manter as cidades limpas e bem conservadas. E, imaginem, em priorizar as pessoas sobre os veículos e o verde sobre o cinza do concreto. 

As praças, parques e as árvores que vicejam nas ruas da cidade estão bem cuidadas. Há equipes de jardineiros profissionais que cuidam, plantam e podam as plantas com conhecimento e cuidado. Tudo bem diferente das roçadas de mato por apenados e outros trabalhadores desqualificados, sem conhecimento ou formação adequadas para o trabalho e a função. 

Calçadas e praças têm pisos adequados, acessíveis e seguros. Nada de pavers e outras soluções que se utilizam nas terras sambaquianas, que envelhecem rápido demais e mal. Ou seja, soluções que priorizam o barato sobre a qualidade e a durabilidade. Mas são critérios. Os chilenos insistem em escolher materiais duráveis, de qualidade melhor e de trabalhar com profissionais que conhecem o seu trabalho e gostam de fazê-lo bem feito. 

Porque as coisas não duram, quebram antes do que deveriam e têm um acabamento tosco e de baixa qualidade? Ou pior: por que insistimos em projetar mal, executar pior e não prever nenhuma manutenção que aumente a durabilidade e acabe custando menos. Ora, toda esta inépcia custa muito cara a toda a sociedade.

Difícil achar uma resposta que sintetize a diferença entre o modelo seguido com persistência por chilenos e pela maioria dos países desenvolvidos e os países e sociedades que preferem a opção de fazer coisas pelo método que no Brasil é conhecido, desde a época colonial, pela expressão: "feito nas coxas". Há uma cultura estabelecida e bem consolidada de fazer as coisas nas coxas. E o resultado, aqui por estas bandas sambaquianas, é uma cidade que se esfarela, obras públicas pagas a peso de ouro que não duram e que precisam ser reformadas antes de prazo. 

A ideia de fazer bem feito nem passa pela cabeça dos administradores públicos. Projetos sem detalhamento, sem definição de materiais e sem especificações técnicas adequadas permitem que sejam usados materiais de qualidade inferior, que não se cumpram nem prazos, nem se respeitem orçamentos. Um bom exemplo de coisas feitas nas coxas é o projeto e a execução da duplicação da Avenida Santos Dumont. Ou alguém tem outra expressão que sintetize melhor a falta de planejamento, a péssima qualidade dos projetos elaborados e a forma como é mal gasto o dinheiro público. Lembremos que essa obra se alastra por anos a fio,  já causou dezenas de acidentes, alguns mortais, e quando fique pronta será só um remendo medíocre do que foi anunciado.

A insistência dos chilenos em querer fazer as coisas bem e em mantê-las para que sigam bem e não precisem ser refeitas antes do prazo é a maior prova que os chilenos estão loucos. Certos estamos nós.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Dia da Infâmia: ditadura da toga cassa o direito de Lula ser presidente

POR DOMINGOS MIRANDA
O 24 de janeiro de 2018 será conhecido como o Dia da Infâmia. Nesta data, três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), por unanimidade, aprovaram a condenação de Lula, em sentença dada pelo juiz Sérgio Moro, e aumentaram a sua pena para 12 anos de prisão. Isto significa que o candidato do PT, líder nas pesquisas, não poderá ser candidato a presidente neste ano. Na edição do dia 23, o jornal americano The New York Times, publicou uma extensa matéria e seu título sinalizava o nosso futuro: “Democracia do Brasil empurrada para o abismo”.

O analista político Mark Weisbrot, bem diferente da nossa grande imprensa que faz parte da Ditadura da Toga e deturpa os fatos, disse que “um judiciário politizado pode excluir um líder político popular de se candidatar a cargos. Isso seria uma calamidade para os brasileiros, a região e o mundo”.

A elite do atraso arquitetou o plano para retirar a presidenta Dilma do poder usando artifícios jurídicos fajutos, chamados de pedaladas fiscais e utilizados também pelos presidentes anteriores para regularizar contas das empresas estatais. Mas os golpistas não esperavam que Lula sobreviveria politicamente ao maior ataque midiático contra um político. Como o “sapo barbudo” se preparava para dar um salto por cima de todos os outros candidatos da direita durante as eleições, anteciparam o julgamento.

A condenação de Lula foi feita na base de convicções do juiz Moro, onde ele não apresentou nenhuma prova concreta de que o apartamento triplex do Guarujá pertencia ao ex-presidente. A atitude dos desembargadores no TRF4 parecia uma ação entre compadres, com elogios orgásticos aos procuradores e ao juiz de Curitiba. O ex-guerrilheiro e ex-deputado gaúcho Flávio Koutzii comenta este momento aziago: “Parece que estamos nos alinhando com as trevas que estão avançando no mundo, não tem saída fácil para isso”.

Montesquieu, célebre filósofo francês do século 17, autor do livro “O Espírito das Leis”, que propunha a separação dos poderes, deve estar se contorcendo na tumba ao ver o que acontece no Brasil. Diante da desmoralização do Executivo e Legislativo, envolvido até o pescoço em falcatruas, o Judiciário assumiu um protagonismo que eclipsou os outros dois poderes. Juízes constrangem o presidente da República e as lideranças do Legislativo com sugestões que beiram a petulância. Melhor do que chamar a farda é colocar o poder de fato nas mãos dos togados. As aparências enganam. O que é mais incrível, juízes que desrespeitam o teto salarial, estabelecido pela Constituição, condenam acusados  pelo crime de corrupção.

Como diz o jornalista Luiz Nassif: “São tempos bicudos, nos quais se misturam o atrevimento dos corruptos, a irresponsabilidade dos deslumbrados e o temor dos legalistas”. A direita avança, mas nesta hora difícil a esquerda deve centrar suas forças em um único candidato sob o risco de chegar ao segundo turno dois candidatos do retrocesso, um deles fascista. Aqui vale a citação de Bernie Sanders, senador socialista dos EUA, que serve para nós também: “Eles têm o dinheiro, mas nós temos as pessoas”. De pé famélicos da terra, bem unidos façamos a nossa revolução.

Coxinha alegre


POR SANDRO SCHMIDT

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Deu no NY Times. Maldito jornal petralha!

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
E chegou o dia do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Muita coisa poderia ser dita sobre o evento, mas como santo de casa não faz milagre a ideia é publicar um metatexto (um texto sobre outro texto). E como os conservadores brasileiros adoram pagar pau para gringo, a fonte vai ser um jornalão da terra do Tio Sam. Afinal, só no Brasil a expressão “deu no NY Times” podia virar um bordão. 

Então, vamos lá. Na edição de ontem, um texto do analista político Mark Weisbrot, economista norte-americano, co-diretor do CEPR - Center for Economic and Policy Research, em Washington, que faz um overview sobre a situação brasileira. A coisa começa a pegar logo no título, que define o atual momento do país como grave: “a democracia do Brasil está a ser empurrada para o abismo”.

Mais palavra, menos palavra, o colunista diz que os dois últimos anos desviaram o Brasil dos eixos da democracia. “Esta semana a democracia pode ser mais corroída quando um tribunal de apelação de três juízes decidir se a figura política mais popular do país, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, será impedido de competir nas eleições presidenciais de 2018, ou mesmo preso”.

Mark Weisbrot, que está longe de poder chamado de petralha, lembra o que se passou na relação entre política e o poder judiciário. “O que poderia ter sido um avanço histórico – o governo do Partido dos Trabalhadores concedeu autonomia ao judiciário para investigar e processar a corrupção oficial – acabou por tornar-se o contrário. A democracia brasileira agora é mais fraca do que tem sido desde que o governo militar acabou”.

Sérgio Moro está em foco. Diz Weisbrot que ele “demonstrou seu próprio partidarismo em numerosas ocasiões”. E acrescenta que “as evidências contra o Sr. da Silva estão muito abaixo dos padrões que seriam levados a sério, por exemplo, no sistema judicial dos Estados Unidos”. E, acrescento eu, muito abaixo do que seria levado a sério em qualquer país da Europa Ocidental. E está todo o mundo de olho.

O texto do NY Times, jornal de referência em todo o planeta, não passa ao lado do golpe. “O estado de direito no Brasil já havia sido atingido por um golpe devastador em 2016, quando a indicada do Sr. Silva, Sra. Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014, foi acusada e demitida do cargo”. Não por corrupção, mas por uma manobra contábil, diz o analista, ao lembrar que “o próprio promotor federal do governo concluiu que não era um crime”.

Enfim, não sou eu a dizer. Deu no NY Times. Maldito jornal petralha!

É a dança da chuva.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Lula: antes de melhorar, ainda vai piorar bastante

POR MURILO CLETO
Faltam poucas horas pro julgamento que deve sacramentar o destino do ex-presidente Lula. Na quarta-feira, 24, o TRF4 avalia recurso da defesa que contesta a sentença do juiz Sergio Moro, proferida no ano passado. Moro condenou Lula a 9 anos e 6 meses de prisão por lavagem de dinheiro e corrupção passiva por considerar que a empreiteira OAS lhe presenteou com um apartamento triplex no Guarujá.

Há muita gente bem mais qualificada juridicamente do que eu pra dizer se a sentença está correta ou não e se Lula é realmente culpado. Tenho pra mim que não, mas nesse mérito eu não entro nem por decreto. O que mais chamou a minha atenção, observando com muito cuidado o comportamento das militâncias polarizadas ao longo desses meses todos, foi a relação meramente utilitarista que se desenvolveu com o julgamento.

De um lado, a esquerda que, à exceção do PCO, não tem coragem de – nesse contexto moralista e punitivista – se assumir contrária à Lei da Ficha Limpa e só quer que, independentemente do que decidir o colegiado, Lula seja candidato à presidência em outubro. De outro lado, o antipetismo que enxerga o julgamento de Lula como a oportunidade de barrá-lo nas eleições e de colocá-lo na cadeia.

No interior dessa dinâmica, absolutamente ninguém quer saber o que cada juiz vai dizer pra embasar sua decisão. Foi assim quando Moro julgou. Em instantes as 218 páginas da sentença já estavam rechaçadas de um lado e aplaudidas de outro.

É evidente que decisões judiciais não são absolutas (a própria existência de recursos prova isso) e que o debate em torno delas é saudável pra qualquer democracia. O problema é que o Brasil pós-2013 já não se vê reconhecido em quaisquer instituições. E o que é resolvido por elas serve apenas pra, de qualquer forma, validar uma posição já de antemão estabelecida na performance discursiva.

Se elas decidiram contra a minha causa, é porque estão comprometidas com os poderosos. “Se até elas” decidiram em favor da minha causa, é porque eu estou tão certo que nem elas são capazes de negar. Isso acontece o tempo todo com o Ministério Público, por exemplo. Dia desses ele era, para a esquerda, parte ativa do golpe reacionário que atropela garantias constitucionais mínimas. Depois a posição do MP serviu pra fundamentar a posição de progressistas contra o fechamento da exposição Queermuseu.

De novo, o trauma aqui não está na desconfiança nas instituições. É – insisto também nesse caso – saudável que elas tenham sido dessacralizadas. Acontece que no lugar delas não se colocou nada. E a principal função das instituições, que é a de mediar os sujeitos, desapareceu. Não se media nada num país polarizado como o nosso. Natural que em condições assim a sociedade responda com violência, sob a forma de mais justiçamentos e censura. Nesse cenário, o argumento de uma condenação ou de uma absolvição, sujeito à posição que se ocupa nesse front, não significa nada. Porque aqui o argumento também não significa nada. O total de brasileiros que vai mudar de opinião sobre Lula depois de quarta-feira é 0. Como foi em julho.

O cenário eleitoral de 2018 não é catastrófico apenas porque tem tudo pra ser uma versão caricatural de 1989, como muitos têm sugerido depois do anúncio da pré-candidatura de Collor. Mas porque até aqui ninguém, da classe política ou dos movimentos sociais, apresentou alguma alternativa suficientemente viável pra uma crise desse porte, muito maior do que a que é exibida pelos indicadores econômicos. E pior, a essa altura do campeonato é difícil achar alguém que não seja parte significativa dela.

Pode ser que melhore. Mas tudo indica que, antes de melhorar, ainda vai piorar bastante.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Sérgio Cabral e o canibal que come a própria carne

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
A transferência do ex-governador Sérgio Cabral, algemado, com os tornozelos presos por correntes e exposto aos cliques dos fotógrafos, foi um espetáculo repugnante. E que fique claro: não se trata de defender o ex-governador (a sua culpa ou inocência é atribuição da Justiça), mas sim de abordar um episódio indigno e que, visto de fora, empurra o Brasil para o estatuto de uma republiqueta das bananas.

É preciso também lançar um olhar para a reação dos indivíduos. É inquietante ver pessoas que, movidas por um moralismo revanchista, até comemoraram essa exposição medieval do ex-governador. “É bandido e bandido tem que estar algemando mesmo”, escreveu nas redes sociais uma apoiadora de Aécio Neves. É como se a sociedade voltasse aos tempos em que se humilhava publicamente as pessoas com piche e penas.

O ressurgimento da palavra “medieval” não é obra do acaso. Afinal, houve tempos em que as execuções públicas funcionavam como entretenimento para as populações. O que mudou? Apenas o lugar. As praças, espaço público de outros tempos, apenas foram substituídas pelas redes sociais. Mas o tempo passou. E se antes um ser humano podia ser exibido com troféu, hoje isso é apenas barbárie. 

O contrassenso que salta aos olhos. Os que embarcam nessa febre punitivista são os mesmos que vivem a reclamar um país moderno. Cegos pelo moralismo e pelo desejo de vingança, nem percebem que é exatamente este tipo de atitude que empurra o Brasil para o terceiro mundo. Ou alguém duvida que esse episódio jamais seria possível numa democracia madura?

Há uma clara sede de vingança. E o argumento é o dente por dente. Como salientou Barthes, é uma questão de “iludir os valores qualitativos, em opor aos processos em transformação a estática das igualdades (olho por olho, efeito por causa, mercadoria por dinheiro, vintém por vintém, etc.)”. Quer dizer, se ele roubou ou desviou dinheiro da saúde, da educação ou do saneamento básico, então merece ser degradado desta maneira. 

Tornar a transferência de um preso num espetáculo para massas famintas de vingança é um perigo. Já disse alguém que se começamos a usar a lógica do olho por olho, o risco é que um dia acabem todos cegos. Mas infelizmente o aviso parece não convencer os conservadores (reacionários) brasileiros. É que eles são como o canibal que come a própria carne e acha que está a se alimentar.

É a dança da chuva.


PS1: Se o ex-governador pegar 342 anos de cadeia, para mim é igual ao litro. Se os crimes forem inequivocamente comprovados, nada mais justo que ele pague por isso.


PS2: Segundo a lei “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Bandidos daqui e de outros países. Será que somos melhores?

POR DOMINGOS MIRANDA
Em minha adolescência gostava de ler histórias sobre os maiores bandidos dos Estados Unidos, tais como Al Capone, Bonnie e Clyde, Butch Cassidy e Sundance Kid, entre outros. Confesso que ficava intrigado como Al Capone que, com a ajuda de bons advogados, conseguia escapar das acusações de assassinatos, contrabando e venda de bebidas durante a Lei Seca. Mas acabou sendo preso por causa da sonegação de imposto de renda. Meio século mais tarde a mesma estupefação me acompanha ao ver o presidente Michel Temer escapar de tantas acusações contra ele.

Nunca na história deste país, um presidente em exercício do poder esteve envolvido numa série de falcatruas, junto com toda a alta cúpula política de seu governo. São nove ministros e ex-ministros alvos de inquéritos ou que já estão presos. A Polícia Federal diz que Temer é o líder de uma organização criminosa chamada de “Quadrilhão” do PMDB. A Procuradoria Geral da República apresentou duas denúncias contra o presidente da República, que foram engavetadas depois de repasse de verbas para deputados ou anistia de dívidas para a bancada ruralista. Não faltam provas, desde vídeo com mala de dinheiro até conversas telefônicas.

Mas será que somos um caso único neste quesito de governo malfeitor? Não. Pesquisando, descobrimos que na Bolívia da década de 80 houve um caso de criminosos que tomaram o poder. Em 17 de julho de 1980, o general Luiz Garcia Meza deu um golpe de Estado para derrubar a presidenta Lídia Gueiller Tejada, que era sua prima. O objetivo maior desta ação foi impedir a posse do recém-eleito presidente Hernan Siles Suazo, de esquerda.

Com a ajuda da CIA, do departamento antidrogas americano (DEA), do empresariado e da mídia boliviana, o golpe foi tramado. Durante os 13 meses de governo do ditador, houve uma série de violências, inclusive o assassinato de líderes políticos de oposição e sindicalistas. Em 1995, Luiz Garcia Meza foi levado a julgamento e condenado a 30 anos de prisão. Também pegou 30 anos de cadeia o seu ex-ministro do Interior, o coronel Luiz Arce Gomez. Ambos foram acusados por desaparecimentos de pessoas, assalto a recursos público e tráfico de cocaína a partir da própria presidência.

Os Estados Unidos sabiam do envolvimento do general com o narcotráfico, mas mesmo assim seus governantes não tiveram pudores em ajudá-lo na derrubada de uma presidenta da República. Em seu livro “The Big White Lie”, o ex-agente da DEA e escritor americano Michael Levine, descreve como a DEA e a CIA trabalharam para levar Meza e os produtores de coca ao poder.

Nesta história comparativa, o que nos anima é saber que os dois maiores responsáveis pelo governo narcotraficante da Bolívia estão mofando na cadeia. Vamos esperar que aqui aconteça o mesmo, pois temos certeza que estes traidores de nossa pátria amanhã pagarão por todos os seus crimes. Para que isso aconteça basta que cada brasileiro cumpra o seu dever nas eleições de outubro. Como dizia a canção “Aroeira”, de Geraldo Vandré:  “É a volta do cipó de aroeira/no lombo de quem mandou dar”.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Os buracos de merda de Donald Trump

POR LEO VORTIS
Shithole. Você sabe o que significa? É literalmente “buraco de merda”. Lugar que, todos sabemos, é um cu. A palavra foi usada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, para dizer que desprezava os imigrantes de “shithole countries” como o Haiti, El Salvador e alguns países africanos. A expressão caiu mal, a notícia correu mundo e o presidente foi logo tachado de racista (dá para acreditar?).

O pessoal do staff da Casa Branca, como tem feito repetidamente ao longo do último ano, tentou reverter a situação. Mas às vezes a emenda sai pior que o soneto. E os tipos decidiram criar uma versão para lá de bizarra: Trump não teria dito “shithole countries”, mas sim “shithouse countries”. Ou seja, em vez de “buracos de merda” teria dito “casas de merda”. Ficou a merda. É ridículo, mas estamos a falar de um presidente que faz do ridículo o seu dia a dia.

Donald Trump reclamou daquilo que considera falta de qualidade dos imigrantes. E perguntou: por que não são os noruegueses a ir para os Estados Unidos? Ora, é só olhar para alguns dados acerca da Noruega para saber. O sistema público de saúde. A maior expectativa de vida. A maior prosperidade econômica. O sistema público de educação. A igualdade de gênero. A liberdade política e de imprensa. As 46 semanas para mulheres que dão à luz. O índice de felicidade.

Hoje em dia as ferramentas digitais permitem fazer coisas interessantes, por vezes até driblar o poder. E foi o que fez o artista Robin Bell que, munido com um projetor de luz, projetou a palavra “shithole” num lugar emblemático: a fachada da Trump Tower, em Manhattan. As imagens, transmitidas para todo o mundo pelas redes sociais, foram motivo de gáudio para aqueles que não aturam o atual inquilino da Casa Branca.


A projeção na Trump Tower

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Por onde andam os "heróis" do pré-golpe (vídeo)

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO


(pode ver o filme, em vez de ler, porque o conteúdo é o mesmo)
A fase do pré-golpe produziu cenas e figuras caricatas e muita gente ganhou fama nacional. Eram conhecidas de norte a sul do país. O motivo dessa gente era sempre o ódio de classe e o ódio ao Partido dos Trabalhadores. É certo que alguns até tentavam disfarçar. Diziam que era contra a corrupção, por causa do preço da gasolina e havia até os que diziam que bandeira do Brasil jamais seria vermelha.

Bem… passado um ano do golpe, todos sabemos o que aconteceu. Deu chabu. E essas pessoas, que eram protagonistas, simplesmente desapareceram. E hoje todo mundo pergunta: por onde andam?

Uma das figurinhas é Taís Helena Galon Borges. Todos lembramos dela. É aquela senhora que aparece a gritar num posto de gasolina a dizer para os motoristas não abastecerem os seus carros. Nessa época a gasolina custava R$ 2,80. E hoje, depois de tantos reajustes, com o preço a rondar os R$ 5 reais, cadê a mulher? Nem um grito, nem um protesto, tomou chá de sumiço.

Outra figura divertida é Rosangela Elisabeth Muller. O nome não diz nada? É aquela senhora que confundiu a bandeira do Japão com a futura bandeira comunista do Brasil. Vocês lembram, com certeza, desse episódio caricato. Aliás, se derem olhadinha no Facebook da senhora, vão ver que ela e outros do time batem continência para o nada. Todos adoram essa coisa do “militar”. E, claro, elogiam Jair Bolsonaro. Só que depois das notícias das últimas semanas, quando Bolsonaro foi apanhado em contrapé,  esse pessoal deve estar com uma tremenda dor de cabeça.

Mas entre todas essas criaturas estranhas que surgiram nos últimos tempos, os meus preferidos são aqueles que fizeram a micareta do “Fora Dilma, Fora Lula, Fora PT”. Se eu ainda estivesse no jornalismo diário, essa seria uma pauta obrigatória: tentar encontrar essas pessoas e tentar saber o que passava pela cabeça delas. Se bem que a resposta não deve ser difícil. Elas não têm nada na cabeça, portanto passa tudo. Entra por um lado sai por outro. Mas mesmo assim gostaria de saber quem são, quais as motivações e onde elas se escondem hoje em dia, porque ninguém sabe onde estão. Não é estranho.

Enfim, no frigir dos ovos parece que era mesmo apenas ódio contra um partido. Ou duvidam disso?

É a dança da chuva.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Fraude


O currículo escolar: que tal discutir o que as escolas ensinam?


POR JORDI CASTAN
Faltam ainda algumas semanas para o recomeço das aulas. Fiquei pensando, agora que os filhos já estão formados, sobre o que ensinam nas escolas. Nem quero entrar no tema da Escola sem Partido, sobre o qual a minha abordagem é muito mais prosaica. O que aprendi na escola? O que aprenderam os meus filhos? E o que poderemos esperar desta geração que está hoje em idade escolar.

Percebi que na escola não se aprende nem a ter consciência que se devem pagar impostos, nem como se calculam. Menos ainda o que são e quais são os impostos, taxas e contribuições que pagamos e como retornam a sociedade. Fiquei na duvida se teríamos professores para isso e que tipo de formação seria necessária para poder abordar o tema com conhecimento e isenção.

Tampouco lembrei de ter tido aula de como votar. O que são e como funcionam os partidos políticos. Achei que os alunos poderiam aproveitar muito uma boa aula sobre a matéria. Neste ano seria especialmente útil entender como os partidos escolhem os seus candidatos, porque os bons candidatos têm tão poucas chances de se eleger ou porque há tão pouca renovação entre os candidatos.

Me faltaram também aulas sobre como escrever ou preparar um resumo, uma carta ou qualquer coisa relacionada com pedir emprego. E estas coisas teriam sido mais úteis que conhecer a fórmula química do permanganato de potássio ou do nitrato de amônia.

Em matemática, não vi qualquer aula sobre como fazer e acompanhar um orçamento doméstico, sobre como calcular o preço real de uma geladeira paga em 12 meses "sem juros". Fui me dando conta de como teria sido importante que estes temas formassem parte do currículo escolar.

Acrescentaria ainda aulas sobre todos os temas relacionadas com o sistema bancário: pagamento de contas, cálculo de empréstimos e serviços oferecidos pelos bancos. E ainda uma introdução ao cálculo simples dos juros e dos custos embutidos nas operações básicas que, como cidadãos, estamos  obrigados a realizar, nesta relação quase obrigatória que todos os cidadãos temos ou teremos um dia com o sistema bancário.

Em lugar de ter aprendido o teorema de Pitágoras, que até agora nunca utilizei no meu quotidiano, teria preferido receber aulas sobre como sair de um carro em caso de acidente ou como fazer frente às emergências do dia a dia das pessoas normais. Até aprender como comprar um carro ou uma casa me parecem temas que deveriam formar parte do currículo escolar de todas as escolas do Brasil.

Olhando para a diferencia entre o que se ensina hoje nas escolas e o que deveria se ensinar, temo que vão seguir por mais algumas décadas penando por desenvolver o país, governados por uma trupe de ignaros que não terão o menor interesse em que o modelo atual mude.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Em Santa Catarina, índio bom é índio morto

POR DOMINGOS MIRANDA
Em sociedades civilizadas há uma preocupação em resguardar os interesses das pessoas marginalizadas e que sofrem abusos. Em Santa Catarina isto não vem ocorrendo há muito tempo. O caso mais recente destas agressões foi a morte de um professor universitário indígena na cidade de Penha, na madrugada de 1º de janeiro deste ano. Marcondes Namblá, da Terra Indígena Laklãnõ-Xokleng, caminhava calmamente quando foi agredido, pelas costas, com várias pauladas desferidas por Gilmar César, que continua solto.

Marcondes, casado e pai de cinco filhos, estava na cidade litorânea para vender picolé e reforçar sua renda. Ele lecionava e divulgava a cultura Xokleng e também era juiz indígena na aldeia Barragem, na cidade de José Boiteux, onde vivia.  Dois anos antes, em 30 de dezembro de 2015, o menino Vítor Pinto, de dois anos, da etnia Kaingang, foi morto no colo de sua mãe, debaixo de uma árvore, ao redor da rodoviária de Imbituba, no Sul do Estado.  Mateus Ávila Silveira, 24 anos, se aproximou da mãe, passou a mão no rosto do bebê e em seguida cortou o pescoço de Vítor com um estilete, provocando sua morte instantaneamente.

Estes dois casos demonstram um grande preconceito e um ódio latente contra os indígenas. A repercussão destas mortes na imprensa sempre é menor do que quando as vítimas são pessoas brancas, como a do assassinato do surfista Ricardo dos Santos, em janeiro de 2015. O delegado Douglas Teixeira Barroco, que investiga a morte de Marcondes, deu uma explicação um tanto estranha para a razão do crime. Ele disse que o índio teria mexido com o cachorro do agressor, mas as imagens da câmera não mostram isso. No entanto, a imprensa aceitou esta versão sem maiores indagações.

A violência contra os indígenas é um fato constante desde a chegada dos colonizadores brancos. Em Santa Catarina, o conflito entre brancos e índios se acirrou a partir do final do século 19, quando os imigrantes ocuparam as terras dos Xokleng e Kaingang.  O etnólogo tcheco Alberto Vojtech Fric, que esteve no Estado em 1906, a convite do governo, para verificar as condições dos índios, voltou à Europa e fez um relato dramático. Perante  o XVI Congresso Internacional de Americanistas, que aconteceu em Viena, em 1908, afirmou que “a colonização se processava sobre os cadáveres de centenas de índios, mortos sem compaixão pelos ‘bugreiros’, atendendo os interesses de companhias de colonização, de comerciantes de terras e do governo”.

Diante da repercussão internacional, o governo federal decidiu criar o Serviço de Proteção aos Índios (SPI),  cujo primeiro coordenador foi o Marechal Rondon. Houve alguns avanços em Santa Catarina, principalmente com a criação da primeira reserva indígena, em Ibirama, na década de 20. Hoje, existem 25 Terras e Reservas Indígenas em todo o Estado, mas muitas delas ainda dependem de demarcação, paradas por determinação judicial.

Um exemplo da precariedade da situação dos indígenas é a aldeia Piraí, em Araquari, onde estão apinhadas 150 pessoas da etnia Guarani numa área de dois hectares. O cacique Ronaldo Costa conta que o preconceito contra o índio está muito arraigado entre a população. Muitos afirmam que o índio é preguiçoso, mas não entendem que a sua mentalidade não é capitalista, onde só tem valor quem tem dinheiro. Eles viviam da caça e da pesca, mas como o branco alterou o meio ambiente, muitos vão para a cidade vender artesanato. “O desmatamento prejudica. Sem mato a gente não vive”, lamenta.

Os índios vão sobrevivendo no meio de uma sociedade que não os quer. De vez em quando surgem crimes escabrosos que chamam a atenção para a sua triste realidade. Mas, em um momento em que campeia o ódio para todos os lados, muitos continuam achando que índio bom é índio morto. Cabe aos defensores de uma sociedade justa lutar para evitar que isto se concretize. Aqui vale citar a frase de Rondon: “Morrer se preciso for, matar nunca”.


Marcondes Namblá foi morto em Penha

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Ficamos mais inteligentes ou mais burros? O que diz a filosofia...

POR LEO VORTIS
A tecnologia impõe um contrassenso: ela tanto pode ser amiga quanto inimiga. É só pegar no exemplo das plataformas digitais para comprovar essa tese. Sempre que precisamos de uma informação, mesmo que seja uma simples memória, ela está na ponta dos dedos. O sujeito vai à internet e pronto. Esse é o lado bom. O lado mau é que as pessoas deixam de exercitar o cérebro e acabam por perder qualidades intelectuais.

O mais interessante é que o tema não vem de hoje. As pessoas familiarizadas com a filosofia sabem que Platão era um crítico da escrita. Para ele, a memória era mais importante. Ou seja, a escrita parecia um benefício, quando de fato era um venefício. Não é preciso fazer uma arqueologia para encontrar uma referência. A resposta está no texto “Fedro”, no qual Platão narra uma história sobre Tamuz, o rei de uma grande cidade do alto Egito. Eis...

“Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados, e, finalmente, fica sabendo, os carateres gráficos (escrita).

Nesse tempo, todo o Egito era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egito, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más.

Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth:
– “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória.
 – “Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer!

Ela tornará os homens mais esquecidos pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração.

Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos não a sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por consequência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!”.

Que tal trazer a questão para os nossos dias? Esta narrativa propõe muitas reflexões sobre a relação das pessoas com a tecnologia. Afinal, é certo que não estamos a ficar mais inteligentes. Como podemos ver nos comentários que surgem aqui no blog, por exemplo, a doxa vale mais que a episteme.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Aguinaldo Silva e o burro carregado de livros

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
O maior problema do Brasil é aquilo que podemos chamar “apartheid social”. O quê? É o fosso que foi sendo escavado entre os ricos e os pobres, ao longo da história. Em termos culturais, o resultado é a negação do outro pelas elites. O rico é, o pobre não é. O condomínio é, a favela não é. A escola privada é, o ensino público não é. O carrão é, o ônibus não é. O diplomado é, o sem diploma não é.

Este preâmbulo é apenas para introduzir um episódio que, um dia destes, fez sentir uma certa vergonha alheia. O dramaturgo Aguinaldo Silva, autor de novelas da Rede Globo decidiu, do nada, mostrar ao país o lustro da sua “superioridade” intelectual. Como? Ora, voltando ao velho e surrado tema do Lula analfabeto. O empregado dos Marinho publicou um tuíte acintoso, onde nem tentou disfarçar o seu ódio de classe. Eis...

“Hoje é o Dia do Leitor. E eu quero aproveitar para perguntar ao favorito nas pesquisas para futuro Presidente do Brasil: que livro o Lula está lendo neste momento? Qual foi o último livro que ele leu e quando foi? Ou para ser mais preciso: alguma vez na vida ele leu algum livro?”, regurgita o autor noveleiro. Haveria muito a dizer, mas fico por dois temas: o pedantismo típico das elites e o culto do livro num país pouco dado à leitura. 

Aguinaldo Silva está a ser preconceituoso, arrogante e presunçoso. Uma atitude que nada tem a ver com as luzes, com o esclarecimento ou com a condição do intelectual. Apenas tem um papel deplorável. Aliás, neste plano específico Lula parece ser muito mais culto que Aguinaldo Silva. Não adianta ler livros se não se aprende a ler o mundo. E na arte de ler o mundo parece que o analfabeto é o autor da Globo.

E também temos o culto ao livro. No Brasil, ler livros ainda é um fator de distinção social. Eu leio, por isso sou melhor. Deveria ser um não-assunto, mas infelizmente não é. Mas os verdadeiros analfabetos são os que sabem ler e não aprendem com isso. Porque as pessoas são o resultado das suas leituras (ou não). Aliás, o meu pai, que só faz a escola primária, repetia uma frase exagerada, mas com algum sentido: um doutor é apenas um burro carregado de livros.

Aguinaldo Silva sente-se à vontade para ser pedante e apontar o dedo cheio de preconceito ao ex-presidente Lula. E isso é sinal de que não sabe ler ou de que tem lido as coisas erradas. E se o episódio passa batido no Brasil, isso nunca aconteceria num país desenvolvido. Enfim, como sempre digo, o terceiro mundo não é um lugar, mas um estado da mente.

É a dança da chuva.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O que esperar de 2018? Que em 2019 tudo se resolva...


POR JORDI CASTAN
Janeiro é sempre tempo de fazer promessas, criar expectativas e de até mesmo previsões para o ano que inicia. E 2018 tem tudo para ser um ano emocionante. O mês começou com a nomeação de uma ministra do Trabalho que não cumpre a legislação. E ainda trará o julgamento, no dia 24 de janeiro, do ex-presidente Lula, em Porto Alegre. Lula pode sair de lá para a cadeia ou para o Planalto.

Fevereiro é tempo de carnaval, de festa, de alegria e de esquecer tudo. Como todos os anos, o Brasil será o pais de faz de conta, o País de Alice. Depois seria o tempo de começar a trabalhar. Mas essa é outra historia.

Março e tempo de celebração em Joinville. Talvez celebrar que ainda temos pela frente mais três anos de inépcia e incompetência. Ninguém deve esperar novidades por estes lados. O que não aconteceu até agora, continuará sem acontecer.  

Abril traz novos feriados. E nada melhor para um ano eleitoral que começar a conhecer os candidatos que estarão no páreo. Começa o período de desincompatibilizações. E  seguiremos com os mesmos nomes de sempre. Quem viver verá. Pouca chance de mudanças.

Maio já é tempo de começar a falar de futebol. A Copa do Mundo esta aí e nada melhor para o Brasil do que uma abundância de pão e circo. Aliás, cada vez mais circo e menos pão.

Junho é tempo de deixar a bola rolar. O planeta vai parar para ver o maior espetáculo da terra. A CBF deverá ter um novo presidente e é curioso imaginar quem poderá ser o candidato eleito. Como dizia um velho conhecedor do mundo da bola: "não há virgens na zona".

Em Julho, acabada a Copa, é tempo de falar de política. A campanha já estará a pleno vapor, mesmo que tecnicamente não tenha começado. De fato, há candidato que está em campanha faz mais de dois anos. Em Joinville, não devemos ter nenhuma mudança significativa e tudo deve seguir como até hoje.

Agosto é o mês do cachorro louco e tempo de alianças improváveis, de ver inimigos de ontem se abraçarem e compartilharem cama e mesa.

Setembro é tempo de festas e nada melhor para dar uma relaxada depois de tanta tensão e emoção. A campanha seguirá e a promiscuidade aumentará um ou dois degraus.

Outubro será o ápice de momento político. O clímax, o suprassumo do onanismo. Ainda que para os melhor classificados reste ainda uma segunda rodada em novembro.

Novembro, enquanto Joinville prepara a Festa das Flores, o Brasil vive um momento histórico. O grande dia chegou e o resultado das urnas garante que nada vai mudar. A máquina política funcionou, a perfeição o pais segue com passo firme em direção a um futuro incerto. Porque seja qual for o resultado das urnas, a única certeza é que nada vai mudar e que seguiremos escutando os mesmos discursos, as mesmas falácias e as mesmas mentiras.

Dezembro é hora de pensar em 2019, tempo de fazer novas promessas e acreditar que as coisas mudarão, sem entender que o Brasil, Santa Catarina e Joinville não vão mudar nunca se a mudança não começa por nós mesmos. 

E que venha 2019

Nem sempre as coisas são o que parecem

POR ET BARTHES
Na vida, como ensinam os filósofos, é preciso tomar cuidado com as verdades... porque elas podem ser apenas uma questão de perspectiva.



sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

30 anos sem Henfil: o humor ajudou a derrubar a ditadura


POR DOMINGOS MIRANDA
Há momentos em que o humor é a única arma contra a opressão. O mineiro Henrique Souza Filho, o Henfil, foi quem encarnou isto de forma mais apurada. Numa época de controle absoluto da imprensa, durante a ditadura militar, ele conseguiu driblar a censura e passar para os leitores, através de seus personagens, aquilo que estava engasgado na boca dos brasileiros. Os fradinhos Cumprido e Baixinho, a ave Graúna, o bode Orellana, Capitão Zeferino e Ubaldo, o paranóico, são alguns dos seus personagens mais marcantes. Infelizmente, no dia 4 de janeiro de 1988, Henfil morreu, aos 43 anos de idade.

Até na morte ele contribuiu para denunciar o descaso do governo para com a saúde. Henfil e seus dois irmãos, o sociólogo Betinho e o músico Francisco Mário, eram hemofílicos. Nas transfusões de sangue, os três foram contaminados pela Aids, numa época em que não havia tratamento para a doença. A vontade de viver era enorme, mas a doença foi implacável com os irmãos. Chico Mário morreu em 14 de março de 1988 e Betinho em 9 de agosto de 1997.  Diante da repercussão destes casos, a coleta de sangue passou a ser mais rigorosa.

Henfil era cartunista, jornalista e escritor. Trabalhou nos principais veículos de comunicação do país, mas se sobressaiu no jornal alternativo O Pasquim. Numa entrevista com o senador Teotônio Vilela ele perguntou: “E as eleições diretas, quando?” A resposta “diretas já” transformou-se no nome da maior campanha popular da história do Brasil e título de um de seus livros. O cartunista sempre usava uma crítica ácida para denunciar os abusos das autoridades, a fome, a hipocrisia e a falta de liberdade.

Como escritor também angariou fervorosos leitores, principalmente com a coluna “Cartas da mãe”. Ao escrever para a tradicional matriarca mineira sofredora, que tinha um filho no exílio e o outro correndo o risco de ser preso por causa de suas diabruras na imprensa, falava de assuntos que continuavam na penumbra. Foi através destes escritos que a maior parte da população tomou conhecimento que 10 mil brasileiros estavam exilados e proibidos de retornar ao país. Com a anistia, lá estava toda a família para receber Betinho, que iria criar a Ação da Cidadania contra a Fome, Miséria e pela Vida, sendo indicado para o prêmio Nobel da Paz.

Um gênio da literatura, Guimarães Rosa, que entendeu como ninguém a alma humana, disse: “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Henfil nos trouxe alegria misturada com denúncia e conscientização. Ficou pouco tempo entre nós, mas nos ajudou a ter esperança em um dos momentos mais trágicos da vida política nacional. Por causa deste seu belo trabalho ele continua presente na nossa mente, não morreu. Mas, faz uma enorme falta para todos aqueles que amam a liberdade e a justiça. 



quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Noivas de preto? Sim... essa já foi a cor

POR JANDIRA FERRAZ
Tudo é histórico. Portanto, a moda também. E hoje – a convite do blog - trago uma curiosidade que pode interessar aos leitores: alguma história dos vestidos de noiva. Sabem a tradição de que o branco significa pureza? Talvez não tenha sido sempre assim.

Há relatos de que a cor preferida das noivas até o século 19 era o preto, apesar de elas também usarem o azul, o marrom e o cinza. Se a família da moça tivesse dinheiro, não havia dúvida: era um vestido preto de seda. E tinha uma explicação. Era possível usar o vestido em outras ocasiões festivas. Havia noivas que escolhiam vestidos em preto, mas com tom opaco, porque estes podiam ser reutilizados para a missa, enterros etc.

É que naquela época, antes da Revolução Industrial, ter um vestido para usar uma única vez era um desperdício imperdoável. O problema com o branco – e as cores claras – é que sujava rápido e era pouco prático para usar em outros lugares. E não vamos esquecer que os casamentos naquela época não tinham muitos “eu-te-amos”, porque eram arranjados pelos pais como um negócio.

A coisa só mudou por volta de 1940, por causa da Rainha Vitória que, no seu casamento com o príncipe Albert, decidiu usar um vestido branco. E se a monarquia usa, então vira moda. Todos vocês, leitor e leitora, já devem ter ouvido falar em moral vitoriana, que prega a contenção sexual. Talvez seja daí a origem dessa crença: o vestido branco é sinal de pureza. Ou seja, um fato em sintonia com a “valorização” de virgindade.

E por falar em aristocracia e roupas negras, não foi a primeira vez que a cor esteve na moda. Um pequeno recuo no tempo permite encontrar o famigerado rei Felipe II, todo-poderoso na Espanha no século XVI. Era a época dos grandes descobrimentos marítimos e, por causa da riqueza do império, a corte espanhola vivia a esbanjar. Mas apesar do clima de prosperidade, as cores desapareceram do mapa.

Tudo por causa de Felipe II, um fanático religioso que deixou a Inquisição como grande marca para a história. E na hora de se vestir, adivinhem a cor escolhida: o monarca só se vestia de preto, para ficar parecido com os monges. Nessa altura os espanhóis mandavam no mundo e a cor virou uma moda mundial.

Tem outra coisa curiosa. Se o leitor e a leitora forem dar uma olhada nos retratos dos espanhóis da época vão perceber que todos usam cavanhaque. Também tem explicação. É que os homens usavam uma gola tão apertada e alta que quase chegava às orelhas. Se tivesse barba, os movimentos ficavam difíceis porque os pelos enroscavam. Foi o que fez com que os espanhóis abrissem mão da barba e passassem todos a usar só costeleta e cavanhaque.

Coisas da história e da moda.
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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

A meritocracia é uma questão de cultura

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Um dia destes vi um documentário onde era feita uma comparação entre as expectativas de vida dos jovens nos Estados Unidos e na Dinamarca. O filme procurava mostrar as aspirações, projetos e desejos em cada um dos países. Lembro especialmente de uma comparação entre dois jovens universitários. As diferenças eram gritantes e põem em questão o conceito de meritocracia.

O estudante dinamarquês, que parecia encarar a vida de forma mais tranquila, tinha a sua própria noção de sucesso. Queria um emprego legal, mas não um emprego qualquer. Disse não estar disposto a ser um workaholic, porque valorizava muito a vida para além do trabalho. Em resumo, queria viver bem mas sem que a obsessão de ser rico ou milionário – coisa que não rejeitava – lhe desviasse o olhar.

O universitário norte-americano era água de outra pipa. Para começar, a entrevista foi feita numa marina, onde ele dizia que sonhava ter um daqueles barcos luxuosos. O objetivo de vida era ganhar o primeiro milhão de dólares. Parece que a coisa do primeiro milhão é uma espécie de milestone do sucesso lá por aquelas bandas. E ao contrário do europeu, para ele não isso de ter uma vidinha tranquila era roubada.

Esta pequena descrição é apenas para mostrar que também o sucesso é uma coisa relativa. Para uns é um objetivo, para outros é consequência. Imagino que no Brasil a maioria esteja das pessoas esteja mais inclinada para a fórmula norte-americana. Porque em sociedades como a brasileira – ainda muito marcada pelo apartheid social – o sucesso parece ter um padrão: é ter coisas que o dinheiro pode comprar. E que os outros possam ver, claro. É a tal meritocracia.

É uma questão cultural. Tem gente que confunde sucesso com dinheiro. Ou seja, você só será considerado um sucesso se isso estiver traduzido num casarão, um carrão ou viagens. O importante é ter a grana. O problema é que para muitos importam os fins e não os meios. E esse um campo fértil para aquilo que Richard Sennet chama corrosão do caráter (e que também gera o fenômeno da corrupção).

Mas para outros, como o jovem dinamarquês, o mérito reside em viver de forma tranquila. E isso faz com que a Dinamarca seja um dos países com menores índices de corrupção no planeta (o fenômeno quase inexiste) e tenha uma das melhores posições nos índices de desenvolvimento humano. Uma coisa que muitos brasileiros – em especial os defensores da tal meritocracia – têm muita dificuldade em entender.

É a dança da chuva.