POR CLÓVIS GRUNER
A manchete de segunda-feira (16), do caderno “Educação” da Folha de São Paulo, não deixa muita margem para dúvidas: “Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática” soa como uma sentença, tamanha a certeza contida em uma única frase. O que vem depois tampouco ajuda. Trata-se de resultados parciais de uma investigação conduzida por dois pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Thais Waideman e Adolfo Sachsida, cujas conclusões finais ainda serão publicadas.
A manchete de segunda-feira (16), do caderno “Educação” da Folha de São Paulo, não deixa muita margem para dúvidas: “Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática” soa como uma sentença, tamanha a certeza contida em uma única frase. O que vem depois tampouco ajuda. Trata-se de resultados parciais de uma investigação conduzida por dois pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Thais Waideman e Adolfo Sachsida, cujas conclusões finais ainda serão publicadas.
De acordo com o trabalho, a inclusão obrigatória das duas disciplinas no ensino médio, em 2009, prejudicou o desempenho dos estudantes em três outras – além de matemática, são citadas redação e linguagens, mas não se explica porque apenas a primeira virou manchete. Não é o único nem o maior problema da matéria. Ela omite, por exemplo, que um dos responsáveis pelo levantamento, Adolfo Sachsida, é conselheiro econômico de Jair Bolsonaro, o presidenciável que despreza não apenas as Humanidades, mas uma parcela da humanidade.
Os dados foram extraídos das notas do ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio, mas o texto não diz, entre outras coisas, se a pesquisa levou em conta as mudanças implementadas no exame – a estrutura das provas foi modificada e o uso do ENEM como critério de acesso à universidade foi gradativamente expandido desde sua criação, gerando entre outras coisas uma enorme ampliação no número de inscritos – foram cerca de 6,7 milhões no ano passado. Outras variáveis ficaram de fora, ao menos da reportagem, e elas são importantes em pesquisas dessa natureza.
Exemplos: as condições de ensino e das escolas eram adequadas? O número de professoras e professores suficiente e elas/es suficientemente preparadas/os? Quais métodos de ensino foram empregados? Havia a preocupação em integrar o ensino de matemática a outras disciplinas do currículo escolar? Fica a impressão de que os autores chegaram a conclusões que, se servem de argumento à guerra cultural, carecem de rigor analítico. Afinal – e isso se aprende em aulas de Sociologia –, correlações não implicam necessariamente em causalidade.
A ideologia como método – A pesquisa tem um viés clara e abertamente ideológico, e não me parece despropositado vê-la como mais uma peça arremetida contra o nosso campo. A ofensiva contra as Humanidades não é exatamente nova, mas recrudesceu nos últimos anos e escapou ao ambiente virtual, orientando e dando forma à políticas públicas na Educação, tais como a nova Base Nacional Curricular Comum e a Reforma do Ensino Médio. Ela se sustenta em basicamente duas premissas.
A primeira, a de que elas são um antro de “esquerdopatas”, doutrinadores que usam as salas de aula para macular ideologicamente jovens inocentes, sua “audiência cativa”. Brandido particularmente por trogloditas mentais para quem qualquer defesa dos Direitos Humanos ou das chamadas minorias é sintoma de “esquerdopatia” – como os anônimos comentaristas desse blog –, é o tipo de argumento que, de tão espúrio, não merece crédito, nem paciência. Mas há um segundo, ao menos aparentemente mais sofisticado, e que demanda alguma atenção: o de que não produzimos um “conhecimento prático”, e estamos em descompasso com as exigências do “mundo contemporâneo”.
A expressão, não raro, é empregada como eufemismo para “mercado”. Sob essa ótica, a produção e transmissão do conhecimento devem adequar-se, necessariamente, às exigências do “mundo prático” e estarem conectados ao “real”. Logo, disciplinas como Filosofia, Sociologia, História ou Geografia, além de consumirem, no ensino superior, recursos valiosos que poderiam ser investidos, por exemplo, em áreas como as engenharias, obrigam estudantes do ensino básico a aprenderem inutilidades ao invés de coisas realmente úteis, como matemática.
A tendência é objetar essa crítica argumentando que as matérias de Humanas produzem um “pensamento crítico”, objeção legítima, mas insuficiente. Primeiro, porque nem sempre fica claro o que se entende por “pensamento crítico”. Além disso, a existência por si só das disciplinas humanísticas não garante nada, porque é preciso levar em conta – assim como no caso da matemática – as condições de seu ensino. E nunca é demais lembrar, afinal, que Marco Antonio Villa é historiador.
Custamos muito pouco aos cofres públicos, afinal. E tampouco somos inúteis. Nas universidades, são principalmente os cursos de Humanas os responsáveis pela formação de novos docentes e por atividades de extensão, considerada a “prima pobre” da pesquisa, mas responsável pela integração e inserção da academia nas comunidades externas a ela. O conhecimento produzido também está disponível aos poderes públicos e ao mercado, que nem sempre sabem, ou querem, fazer dele um bom uso.
Disciplinas como a sociologia, a antropologia e a história são fundamentais para o desenvolvimento e implantação de políticas públicas de saúde, segurança, cultura e, óbvio, educação, entre outras. A agricultura e o desenvolvimento urbano precisam da geografia. A implantação e multiplicação de círculos de leitura, bibliotecas e outros espaços e aparelhos culturais serão precárias sem os profissionais de letras e filosofia. A preservação da memória e do patrimônio histórico e cultural não depende apenas de arquitetos, mas igualmente de historiadores. E o mercado, perguntarão alguns?
Há quem diga que fazemos e vendemos miçanga como ninguém. Mas nosso âmbito de atuação é maior. Lemos pouco no Brasil, mas parte significativa do pouco que se lê é fruto da comunidade de leitores formada pelo trabalho de estudantes e profissionais de Humanas. Além disso, não é nada negligenciável nossa contribuição em áreas tão distintas como a organização de arquivos, públicos e privados; a produção e consultoria cultural e museológica; o mercado editorial; a comunicação (tanto o jornalismo como a publicidade); o turismo; o design; a moda; a produção audiovisual e o desenvolvimento de games, entre outros.
Sim, há equívocos e distorções a serem corrigidos nas Universidades, no ensino e na pesquisa, mas isso não é exclusivo às Humanas. Também é preciso repensar os meios pelos quais as disciplinas são ministradas no ciclo básico, e embora já exista muita gente se dedicando a isso, é possível fazer mais. Mas os problemas não se resolvem retrocedendo. Nem, tampouco, com pesquisas que mal disfarçam sua orientação ideológica.