quarta-feira, 30 de maio de 2018

ManifestaCão


Algumas lições da greve


POR CLÓVIS GRUNER
Filme de estreia do então desconhecido Steven Spielberg, “Encurralado”, de 1971, narra a história de David, um motorista perseguido por um caminhoneiro obcecado por assassiná-lo. A identidade do caminhoneiro não é revelada e não sabemos nem mesmo quais suas motivações. A trama, econômica, se resume ao confronto desigual entre um indivíduo débil e encurralado e seu implacável e desconhecido perseguidor.

Há algo de divertido, apesar da seriedade do assunto, em imaginar o telefilme que lançou Spielberg em Hollywood como uma espécie de alegoria da greve dos caminhoneiros, que nos últimos dias parece caminhar para seu fim. Como no filme, os trabalhadores em greve encurralaram um governo débil, e souberam aproveitar a fragilidade de um presidente não apenas inepto, mas cuja legitimidade, colocada à prova, revelou-se inexistente.

Apesar dos inúmeros contratempos gerados pela paralisação, o apoio de parcelas significativas da população foi decisivo para colocar Temer de joelhos. Igualmente, ninguém até agora parece preocupado com os possíveis desdobramentos das medidas anunciadas pelo presidente para colocar fim à paralisação, ainda que, mesmo instintivamente, saibamos que junto com os benefícios concedidos à categoria, o governo fez a alegria das grandes transportadoras e de oportunistas como Emílio Dalçoquio.

Há algumas lições a se tirar desses últimos dias. A paralisação escancarou as péssimas condições de trabalho dos caminhoneiros, uma das categorias profissionais mais precarizadas do país. Além disso, revelou nossa dependência do transporte rodoviário, fruto do desmonte das ferrovias iniciada pelo desenvolvimentista Juscelino Kubitschek, amplamente aprofundada pelos governos militares em conluio principalmente com empreiteiras, e continuada pelos governos civis.

Provavelmente nenhuma das duas situações mudará com a greve, entre outras coisas, porque pouca gente parece particularmente atenta a elas. As principais demandas da categoria – a diminuição do preço do diesel e o não pagamento do pedágio sobre eixos suspensos –, ainda que legítimas e necessárias, são bastante pontuais e não incidem, diretamente, sobre as condições precárias de trabalho e tampouco tocam no quase exclusivismo do transporte rodoviário.

Mal estar e oportunismo – Igualmente, o apoio popular ao movimento repercute, em grande medida, o mal estar reinante no país desde há alguns anos. Sintoma disso é a avaliação ingênua e sem sustentação empírica de que estamos pagando o preço da corrupção, quando não faltam evidências técnicas de que a crise foi gerada, principalmente, pela política de preços praticada pelo atual governo.

A relação equivocada entre a greve, a corrupção na Petrobras e a Lava Jato foi o combustível – com o perdão do trocadilho – que alimentou, de um lado, as manifestações legítimas de apoio aos caminhoneiros. Mas, de outro, serviu ao oportunismo de uma direita reacionária que encontrou, em meio a um movimento caracterizado pela ausência de lideranças centralizadas e institucionais, a brecha para levar às ruas, uma vez mais, os apelos golpistas por uma “intervenção militar”, eufemismo que, por ignorância ou má fé, tem servido aqueles que imaginam, como visão de futuro, uma bota pisando um rosto humano para sempre.

A esquerda tem sua cota de responsabilidade nesse quadro lamentável. Enquanto o país flertava com o caos, o PT preferiu lançar oficialmente a candidatura de Lula à presidência. Nas redes sociais abundaram demonstrações explícitas de ressentimento, com militantes comemorando o revés dos caminhoneiros por conta de sua participação, em 2016, no movimento pelo impeachment de Dilma Rousseff, além de especialistas a afirmar que estávamos ante um lockout patronal, desconsiderando a enorme diversidade do movimento, ao mesmo tempo em que o acusava de ilegítimo.

É verdade que uma parte da esquerda optou, acertadamente, por apoiar a greve, mas o fez um pouco tarde. Quando lideranças como Guilherme Boulos ou militantes do MST, vieram a público manifestar seu apoio aos caminhoneiros, a imagem do movimento estava fortemente ligada à direita reacionária. A esquerda perdeu, mais uma vez, a batalha narrativa. E perdeu, entre outras razões, porque boa parte dela tem sido incapaz de perceber que a “politização” não é mais aquilo que ela acredita ser – isso se algum dia o foi.

Ao preferir não disputar politicamente uma categoria por considerá-la “despolitizada”, a esquerda, enfim, permitiu que o protagonismo do movimento fosse tomado de assalto por grupos antidemocráticos. Obviamente, ninguém esperava uma “revolução caminhoneira”. Mas tampouco precisávamos que, das fileiras de caminhões à beira da estrada, ressurgisse com tamanha força a sanha autoritária dos golpistas.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Você entrava no avião com uma dessas pessoas a pilotar?

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Que tal um exercício de imaginação. Você vai numa viagem de avião e tem a oportunidade de escolher os pilotos, a tripulação e até as pessoas que vão embarcar ao seu lado. É claro que a escolha recairia em pessoas nas quais pudesse confiar e, em especial no caso dos pilotos, gente que saiba o que está fazendo. Ou seja, acima de tudo, pessoas que demonstrem ter conhecimento suficiente para fazer o avião voar. E ficar no ar, claro. É preciso ter estabilidade emocional.

Na política também é assim. Não dá para caminhar ao lado de gente manipulável, que não sabe o que faz e demonstra falta de controle sobre as emoções. Tudo isso para falar no período entre 2013 e 2016, que resultou na queda de Dilma Rousseff e levou o Brasil para o estado caótico em que o país se encontra hoje. O golpe aconteceu e, ao contrário do que muitos esperavam, a situação ficou descontrolada. 

Há uma lógica simples: a democracia é um valor muito frágil e qualquer ruptura pode ter resultados devastadores. Se hoje o Brasil está mergulhado nesse caos, muito é devido ao fato de as pessoas - as que saíram às ruas a fora do golpe -  não terem olhado ao redor para ver ao lado de quem estavam a marchar. Não era gente recomendável. E o filme a seguir mostra uma série de intervenientes que ficaram famosos nos últimos tempos. A maluquice é quem manda.

Antes de ver o filme, fica a pergunta. Você teria coragem de entrar no avião se soubesse uma dessas pessoas era o comandante?  


segunda-feira, 28 de maio de 2018

Olé!


Temei, joinvilenses. O futuro de Joinville pode ser lúgubre e assustador


POR JORDI CASTAN
Uma cidade será tão inovadora, inteligente ou avançada como a soma da totalidade da sua população. O planejamento urbano é um tema importante demais para ser deixado na mão de um pequeno grupo de gênios. Apesar de ser um tema complexo e que requer conhecimento técnico específico, uma peculiaridade do planejamento urbano é que todos os que aqui moram e vivem a cidade podem e devem contribuir.

O primeiro erro é o de pressupor que seja preciso um conhecimento especial, um conhecimento restrito a um pequeno grupo de “çábios” encastelados numa torre de marfim. Eis o problema: quanto mais encastelados e afastados da realidade das ruas e do dia a dia da cidade, mais absurdas e descabeladas serão as soluções encontradas.

O antigo IPPUJ é um exemplo disso. Os donos da verdade e os detentores do conhecimento fizeram mais trapalhadas que acertos, partiam da premissa que o planejamento urbano era complexo demais para que as pessoas comuns pudessem compreendê-lo e que gente sem mestrados e doutorados não poderia contribuir com suas sugestões.

Não lembro que em nenhuma das mais de duas dezenas de audiências públicas em que participei nos últimos anos, uma única sugestão feita por alguém da plateia fosse considerada, anotada e incluída na discussão. Menos ainda que o autor da proposta recebesse uma resposta, ou pudesse rastrear a análise da sua proposta.

Na verdade, as audiências públicas foram convertidas, e continuam sendo, em pantomimas homologatórias. Com o único objetivo de fazer de conta que a população é ouvida. Não canso de repetir que até pode ser que seja ouvida, mas faz tempo que não é escutada.
É por conta desta arrogância superlativa que vemos, a cada dia, novas intervenções no tecido urbano uma pior que a outra. Desde as ciclofaixas que unem nada a coisa alguma, criando uma falsa sensação de segurança para o ciclista. De fato são ciclofarsas que acabam tendo o efeito contrario do pretendido.

As estatísticas estão aí para mostrar que o número de acidentes envolvendo ciclistas tem aumentado. Há mais ciclistas? Deve haver, mas também há mais acidentes. Portanto, as ciclofaixas não melhoraram a segurança dos ciclistas, são verdadeiras armadilhas.
A LOT permite que um maior número de atividades geradoras de tráfego se instalem num maior número de ruas. Até uma criança de oito anos sabe que polos geradores de tráfego, como escolas, supermercados, indústrias, academias ou bares e restaurantes aumentam o número de pessoas e veículos que se dirigem a aquele empreendimento.

Portanto, aquelas ruas que já não davam conta do trânsito local agora terão que absorver um volume ainda maior e o risco de colapso será cada vez mais forte. Parques, praças, ruas arborizadas e ambientes mais caminháveis melhoram a saúde das pessoas, reduzem o risco de doenças e melhoram a qualidade do ar. Em Joinville a cobertura arbórea urbana diminui a cada ano, poucas gestões municipais tem tido uma relação mais perversa com o verde urbano e com a qualidade de vida dos joinvilenses que esta.

Ignorar o bom senso, alijar a participação da sociedade do debate do modelo de cidade e desconsiderar a sabedoria e o conhecimento popular não é a melhor solução para o futuro desta cidade. Mas é o que fazem as gestões  autocráticas. O resultado é que tanto o gestor, como seu séquito de tecnocratas, tem se convertido no “faz-me rir” da maioria da população. Essa gente tem caído no descrédito e é motivo de chacota de um extremo ao outro da cidade.

Extinguir o IPPUJ foi um erro. Desmantelar o pouco conhecimento que o instituto foi capaz de produzir ao longo de três décadas foi desastroso, mas foi o preço a pagar por planejar de costas ao cidadão. A realidade atual é ainda pior. Sem conhecimento, sem referências, sem capital humano capaz e sem a humildade de reconhecer que estão perdidos e sem rumo. O futuro é lúgubre e assustador.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Efeito Dunning-Kruger: os idiotas não sabem que são idiotas

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
“Como essa gente fazia para passar vergonha antes da internet?”. É uma pergunta que muitas pessoas fazem no dia a dia. Afinal, as manifestações de idiotia ganharam uma proporção desmesurada com a world wide web e, em especial, as redes sociais. Não por acaso a expressão “vergonha alheia” entrou para a fraseologia do dia a dia dos falantes de língua portuguesa. Mas a ciência tem uma explicação: os idiotas não sabem que são idiotas.

Já ouviu falar no Efeito Dunning-Kruger? É um fenômeno identificado pelos investigadores David Dunning e Justin Kruger há algum tempo, quando trabalhavam na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. O que é o tal efeito? Simples. É uma situação muito comum nos dias de hoje: as pessoas com poucos conhecimentos acreditam saber mais do que as pessoas melhor preparadas.

É mais ou menos o seguinte: quando você entra numa discussão (acontece muito no online), uma pessoa que se informa pelas redes sociais, em especial Whatsapp e Facebook, acha que tem uma capacidade de argumentação superior a alguém com um doutorado, por exemplo. Dominadas pelo anti-intelectualismo, as redes sociais fizeram tábula rasa do conhecimento. E o resultado é a ideia de superioridade das pessoas menos cultas. Ora, sem meias palavras: são os ignorantes.

Uma pessoa com maior instrução (não estou a falar de educação) sabe que tem muitos vazios de conhecimento a preencher. O que, muitas vezes, chega a provocar insegurança. Já os indivíduos de pouco conhecimento não têm dúvidas. Só certezas. Ou seja, a incompetência destes últimos os impede de reconhecer as suas próprias limitações. É o que Dunning e Kruger denominaram “superioridade ilusória”.

O mais curioso no estudo dos dois pesquisadores é a constatação de um fenômeno que afeta os melhor preparados. Por identificarem muitas lacunas no próprio conhecimento, essas pessoas acabam se sentindo uma espécie de fraude. E passam a sofrer daquilo que Dunning e Kruger chamaram “síndrome do impostor”. Eis a conclusão: a ignorância gera confiança (ilusória, claro) e o conhecimento gera dúvidas.

O estudo se ocupou de tão distintas como raciocínio lógico, compreensão de texto, conhecimento financeiro, matemática, inteligência emocional, xadrez e até dirigir automóveis. O resultado foi de que as pessoas menos preparadas têm dificuldades em reconhecer a própria incompetência, ao mesmo tempo que falham ao reconhecer as qualidades das pessoas mais preparadas.

Onde já vimos isso? Ora, Dunning e Kruger investiram enorme tempo e recursos da universidade em pesquisas. Mas talvez nem fosse necessário. Era só dar uma passadinha nas redes sociais. Ou dar olhada nos comentários anônimos aqui no Chuva Ácida. 

É a dança da Chuva.

A seguir, um filme sobre o Efeito Dunning-Kruger.





As ideias dos anônimos. Ou a falta delas...*

POR ANÔNIMOS
Foi o que restou dos esquerdistas, atacar uma foto do Moro em eventos no qual ele foi convidado. É uma mistura de vários sentimentos. No caso do Baço o principal é a inveja.

Narcisista ou não ele é um excelente profissional. Seus despachos foram aceitos por juízes e ministros das cortes mais elevadas, e ele colocou muito peixe grande atrás das grades. Sobre a foto que João Dória (candidato a governo de SP) tirou ao lado do juiz, é realmente uma bobagem.

Primeiro porque João Dória é simplesmente um candidato (goste ou não dele, é um sujeito ilibado, não está envolvido em corrupção!) que tentou surfar na onda da Lava-Jato. Segundo porque qualquer um pode tirar a foto e publicar com ou sem o consentimento do juiz. Terceiro, Sérgio Moro representou em NY a força-tarefa da Lava-Jato num evento que tinha esse objetivo. Agora, quer conhecer um sujeito narcisista? Tem um capo safado bem narcisista no xilindró da PF em Curitiba.

“O comitê de direitos humanos aceita o pedido de medidas cautelares de Lula”. Brincadeira, eles rejeitaram porque as instituições estão funcionando no Brasil... “Meudeus! Vão prender o tucano Azeredo!!!! Estamos desolados!!!! #SQN

Viu como ser coerente e honesto consigo mesmo é libertador? Você não tem amarras e não é obrigado a tentar convencer outras pessoas a aceitar o seu bandido de estimação.

O Moro é um tucano togado. Volta Lula, o presidento Lula que, tirou 600 milhões da pobreza, inventou o futebol, descobriu o Brasil, adotou Che, Fidel e Stalin como filhos, foi à Lua, ressuscitou no 3° dia, inventou o petróleo, lutou com Goku, mostrou o caminho de volta pra casa em "Caverna do Dragão", atirou o pau no gato e não morreu, descobriu a gravidade, inventou o avião, é a alma mais honesta e nunca foi dono do Triplex.

Quando não se tem condição de contestar a mensagem, ataque o mensageiro.

* A peça acima resulta de uma compilação das respostas dos anônimos ao texto publicado na terça-feira, sobre o narcisismo do juiz Sérgio Moro. Há duas hipóteses: 1. o anônimo é uma única pessoa que faz muitos comentários. 2. os anônimos escrevem todos as mesmas coisas. A lógica é bisonhamente repetitiva: atacar o autor, defender os seus heróis conservadores e acabar sempre a falar de Lula e do PT.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Seguidores de Bolsonaro e o mico do tamanho do King Kong

POR ET BARTHES
As pessoas perderam mesmo a noção de ridículo. O cara quer votar em Jair Bolsonaro? Tudo bem. É um direito. Mas daí a pagar um mico do tamanho do King Kong nas redes sociais é um passo muito louco. "Eu sou robô do Bolsonaro"? Putz. Fica a pergunta: como essa gente fazia para passar vergonha antes da internet? Com você, leitor e leitora, o vídeo devidamente adaptado com uma música que diz tudo.


terça-feira, 22 de maio de 2018

Moro é um deslumbrado ("diz com quem andas e direi quem és")


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Sérgio Moro é um deslumbrado. E está a viver uma espécie egotrip que o faz se sentir um menino superpoderoso, quase uma divindade a pairar sobre os mortais comuns. No seu delírio narcísico, o juiz parece só ter olhos para si mesmo e para a imagem que vê refletida. Só isso explica o fato de aparecer, repetidas vezes, ao lado de tucanos. O juiz parece se achar acima do ensinamento bíblico: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”.

A gestão da imagem não é o forte de Sérgio Moro. É que ele não consegue vencer o narcisismo. “Diz-me com quem andas” é um aviso para as figuras tóxicas capazes de contagiar quem delas se acerca. Mas o aviso parece não incomodar o juiz, que já demonstrou não ter pudores em aparecer ao lado de políticos tucanos. A imagem mais famosa é aquela em que aparece em divertida cavaqueira com Aécio Neves, fulaninho conhecido no submundo das delações como “Mineirinho”.

O último caso foi o episódio de Nova Iorque, em que Sérgio Moro aparece sorridente ao lado de João Doria, candidato do PSDB ao governo de São Paulo. Mas para o menino superpoderoso de Curitiba, que não consegue desviar o olhar do próprio umbigo, isso é apenas uma bobagem. “Estou num evento social e tiro uma foto, isso não significa nada. É uma bobagem isso. Não me arrependo nem um minuto de aceitar esses convites”, teria declarado à imprensa nossa de cada dia.

Narciso acha bobagem o que não é espelho. Aliás, todos sabemos da frase secular segundo a qual “à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta”. Mas para Sérgio Moro esse adágio é letra morta. Aparecer ao lado do tucanato (sempre) não tem qualquer importância, é apenas bobagem. Por quê? Porque o narcisismo traz sintomas como a arrogância, os sentimentos de autoridade e as atitudes abusivas. O deslumbramento é sempre inimigo do bom-senso.

É a dança da chuva.



segunda-feira, 21 de maio de 2018

Joinville aposta nos carros voadores


POR JORDI CASTAN
Já critiquei muito, neste blog e outros espaços de opinião, o planejamento e a gestão de Joinville. O fato é que estão perdidas num labirinto, aparentemente sem saída. O prefeito não sabe sair do enrosco em que a sua própria inépcia e a incompetência da equipe que escolheu colocaram a cidade.

Depois das intervenções desastradas - em volta do Mercado Municipal primeiro e da Beira Rio depois - a própria “duplicação” da avenida Santos Dumont acabou por ser outra trapalhada. Mas já se sabe que trapalhões fazem trapalhadas.

Agora é a vez do cruzamento da Ottokar Doerffel com a Marques de Olinda e a ideia genial de utilizar o Waze como ferramenta de planejamento. A ideia passa por melhorar a mobilidade urbana convertendo a Rua Marajó em parte de um inusitado binário, coisa que deve fazer que os locais e os turistas ficarem vagando eternamente no loop criado pelos técnicos, em seus devaneios oníricos. 

Quando tudo parecia perdido e quando nada mais fazia sentido, o prefeito e os Udoboys buscaram em um outro aplicativo tecnológico a solução aos problemas do trânsito de Joinville. Sem saber o que fazer, o prefeito e os técnicos da SEPUD solicitaram ajuda a São Cristovão, padroeiro dos motoristas, que prontamente os encaminhou para a Uber.

A solução para o caos em que a cidade está mergulhada vem da visão inovadora e moderna da Uber. Sim, a Uber vai nos salvar. O trânsito de Joinville tem solução. Obrigado, Senhor por nos tirar dessa sinuca de bico em que a incompetência, a cobiça e a LOT nos meteram.
Se fôssemos depender dos técnicos, estávamos no mato sem cachorro. Só olhar o que tem preparado para o entorno do novo supermercado Condor, no Bairro América, já poria os cabelos do Karnal em pé. Uma verdadeira enjambração. Mais uma.

Querer resolver a mobilidade sem conhecimento, sem sair do escritório e sem entender que cada novo polo gerador de tráfego autorizado cria uma maior demanda é mais do mesmo. Para um sistema que já está saturado, mudar o sentido da rua não resolve mais.

A Joinville moderna, inovadora e global deverá ser uma das cidades que se somem a São Francisco, Los Angeles e Dubai e adotem o novo serviço dos veículos voadores da Uber. O prestigioso Financial Times informa que a Uber busca cidades candidatas a receber o serviço de carros voadores. Nenhuma outra cidade reúne mais pré-requisitos que Joinville.

O trânsito já faz tempo que parou, o pavimento desapareceu, os buracos menores foram tomados pelos maiores. Os técnicos não têm noção do que fazer, Joinville é a cidade perfeita para candidatar-se ao novo serviço que a Uber tem previsto iniciar comercialmente em 2023. Antes, portanto, que esteja pronta a idílica Joinville de 2030. Aquela cidade que o prefeito sonha e os joinvilenses teme. Enquanto ele e seus acólitos imaginam e propagam uma visão quase paradisíaca, a Joinville atual projeta um cenário mais próximo do imaginado por Ridley Scott no filme Blade Runner. O tempo dirá quem estava certo. Mas até hoje todas as cartas estão mais para Blade Runner que para o paraíso do onkel.

Voltando aos carros voadores, a Uber abriu processo seletivo em que solicita que cidades aspirantes a cidades do futuro. E nessa coisa de falar de futuro Joinville é campeã. Ou metrópoles que enfrentam congestionamentos infernais, no tema metrópoles estamos mal, não superamos a fase pequena vila provinciana do interior. Mas se o pessoal da Uber vier e experimentar as empadas do Jerke e a cerveja do Opa, este quesito estará facilmente resolvido.

Sobre os congestionamentos, não precisamos dizer nada. São infernais e neste quesito não teremos menos de 8,5 pontos. A outra grande vantagem ajuda a candidatura de Joinville é que a Uber quer implantar o serviço, também fora dos Estados Unidos. Já há planos para iniciar o “serviço de compartilhamento de jornadas aéreas” em Dallas, Los Angeles e Dubai.

Para dar o empurrãozinho que faltava, a Embraer apresentou, no dia 8 de maio, a ilustração do projeto que desenvolve para a Uber do veículo voador elétrico para transporte urbano, conhecido pela sigla eVTOL e que deverá estar operacional até 2020. Assim em quanto Joinville segue com o transporte coletivo operado pelas duas “irmãs”, o mundo avança a passos de gigante.

Assim que vamos esquecer os buracos, os congestionamentos, a inépcia, a incompetência, a falta de planejamento e de gestão e acreditar que bem antes de 2030 Joinville será a cidade dos carros voadores de uso compartilhado. Só é preciso que os Udoboys preencham o formulário da Uber e não percam o prazo para candidatar-se a cidade do futuro, porque a cidade do presente já foi.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

É a favor da pena de morte mas não tem colhões para ser o carrasco

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
O leitor e a leitora sabem que é Paul Kersey? É preciso ter uma certa idade e alguma cultura cinematográfica – ou a falta dela – para saber que estou a falar do personagem do filme “Desejo de Matar” (Death Wish), interpretado pelo ator Charles Bronson, na década de 70.

Se nunca ouviu falar, aí vai uma pequena sinopse. Paul Kersey é um arquiteto que vive em Nova Iorque e um dia tem a vida virada pelo avesso. Um trio de anormais invade a sua casa, mata a mulher e viola a filha, que acaba num estado quase vegetativo.

Ante a falta de ação da polícia para prender os marginais, o pacato Paul Kersey decide sair pessoalmente à caça dos mauzões. Ou melhor, de todos os mauzões. O arquiteto se transforma num justiceiro e enche a cidade de cadáveres e mais cadáveres.

Mas por que trago este tema “charlesbronsoniano”? É para introduzir um comentário sobre os defensores da pena de morte. Porque tenho ouvido gente demais a insistir no tema: na política, na comunicação social, nas redes sociais. Quem nunca ouviu ou leu coisas como “bandido bom é bandido morto”?

Um aviso. Não pretendo discutir a pena de morte ou falar de direitos humanos – muita gente acha que nem se devem aplicar à bandidagem. E deixo logo claro que sou contra a pena capital. Pronto. Mas o objetivo é falar dos colhões desses tipos que andam por aí a defender a pena capital.

Eis a questão: você, que é a favor da pena de morte, teria coragem de ser o executor da pena? Ou seja, matar o condenado com as próprias mãos? Duvido. A maioria dessas pessoas não tem tomates para fazer isso pessoalmente. Ou seja, são a favor da pena de morte, mas por interposta pessoa e sem olhar a morte nos olhos. Tem que ser Estado executar a sentença. 

Até que ponto você seria um Paul Kersey? Falar é fácil. Muitas pessoas têm a coragem “moral” para defender a pena de morte, mas falta-lhes a coragem “física” para a aplicar. Diga, leitor ou leitora, se você era capaz de ser o carrasco, olhando a sua vítima olho no olho? Duvido outra vez. Isso explica esse desejo de uma lei que permita ao Estado a fazer o trabalho sujo.

Ok... temos que considerar os fundamentos psicológicos e imaginar que alguém seria capaz de entrar nas vestes de carrasco (Menninger fala nas componentes de hostilidade: o desejo de matar, de ser morto e de morrer). É possível que alguém tenha essa coragem. Mas aí temos um dilema.

Pense bem. Se você for mesmo capaz de ser o carrasco, então está a se transformar naquilo que repudia: uma pessoa capaz de tirar a vida de outra. E, pela sua lógica, o que deve acontecer a alguém capaz de matar? A pena de morte. Eis uma aporia, senhoras e senhores (e lá estou eu novamente com os relativismos).

Enfim, como diz a antiga expressão, “quando se instala a pena de morte, a primeira a morrer é a inteligência”. E em tempo: os filmes com o Paul Kersey são muito ruins, uma morte lenta do cinema.

É a dança da chuva.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

A dimensão do problema de moradia no Brasil e em Joinville

POR IVAN ROCHA DE OLIVEIRA
“Não sei o que torna o homem mais conservador: conhecer apenas o presente, ou apenas o passado” 
John Maynard Keynes

O incêndio que fez desabar o prédio de 26 andares no centro de São Paulo foi notícia na semana passada no Brasil e em todo o mundo. O episódio fez surgir alguma discussão sobre a questão da habitação no país, mas logo o tema desapareceu da mídia. No entanto, é preciso não abandonar o debate sobre a questão da habitação.

O problema de moradia é absolutamente escandaloso no Brasil e em Joinville. Gostaria de começar esse texto de modo menos enfático, mas me parece impossível. A indignação moral com aqueles que tem seus salários consumidos improdutivamente por aluguéis, que têm suas horas de lazer diminuídas por morarem longe dos locais de lazer, por morarem em condições deploráveis é condição básica para se voltar a esse problema social. 

O problema é escandaloso porque as sociedades modernas já criaram condições de resolvê-lo. Não há, rigorosamente falando, falta de casas e condições de moradia no Brasil e em Joinville. Para ficarmos apenas nessa última, o censo de 2010 mostrava que há 12.111 lotes baldios, 12.331 domicílios vagos e mais de 17 mil lotes construídos com coeficiente de aproveitamento menor que 10%. A fila da habitação tem números elásticos e nem sempre muito transparentes, mas há uma estimativa de que 15 mil famílias estejam à espera da casa própria. Ao mesmo tempo, há altíssima concentração de terras na cidade. Os dados não estão inteiramente atualizados, mas um extrato deles pode ser consultado na importante dissertação de Naum Alves Santana (“A produção do espaço urbano e os loteamentos na cidade de Joinville”). 

Ou seja, a desigualdade é a questão subjacente ao problema da moradia. Não se trata aqui de estigmatizar esse tipo de diagnóstico e sugerir que se trata de um tipo de visão que poderia ser compartilhado apenas por pessoas pouco razoáveis, empenhadas autoritariamente em sobrepujar a noção de propriedade. Ao contrário, o que está em questão aqui é simplesmente notar que dada essa desigualdade existem mecanismos no interior do enquadramento da frágil democracia brasileira que são capazes de fazer essa situação ser modificada. O Estatuto das Cidades, de 2001, instituiu o IPTU progressivo (entre outras ferramentas) que permite uma melhor distribuição da propriedade. No fundo se trata disso: de garantir que a propriedade verdadeiramente se realize. 

É claro que dada a morosidade dos mecanismos legais existem os movimentos sociais que visam pressionar que a legislação seja cumprida. O MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, no último período, sobretudo após junho de 2013, tem cumprido um papel importante em publicizar o problema e lutar pela sua superação. 

É importante conhecer o passado do problema (a concentração de terras desde a invasão portuguesa), o presente dela (que extravasa em muito os números aqui apresentados e pode ser constatado por seu conhecido, prima ou irmão espremido no aluguel ou vivendo em condições precárias). Mas é preciso também um pouco de humanidade e se indignar ao ver um igual a você sem um teto digno para morar. Se não formos capazes dessa empatia moral receio que teremos fracassado enquanto sociedade.

terça-feira, 15 de maio de 2018

O elevado, o foguetório e o nome das coisas em Joinville

POR JORDI CASTAN
Quando o homem primitivo começou a falar, se supõe que uma das primeiras coisas que fez foi dar nome às coisas. Assim chamou as árvores de árvores, os rios de rios, o mar de mar e, aos poucos, tudo aquilo que o envolvia e formava seu universo passou a ter nome. Dar nome a cada coisa era a sua forma de apropriação, de tomar posse.

O costume segue até hoje e continuamos dando nome a tudo que nos circunda. E chamamos de viadutos os viadutos, de sinaleiros os sinaleiros e de ciclovias a essas engronhas que pululam sem nexo pelas ruas de Joinville. Mas não é sempre que utilizamos os nomes certos porque, por vezes, os adultos repetem os erros das crianças, que chamam de forma errada coisas que são na realidade outra coisa.

Um bom exemplo é essa inhaca que fizeram na avenida Santos Dumont e que estultamente uns insistem em chamar de duplicação. E, claro, um bando da papagaios repete sonoramente. À falta de outro, o nome empulhação seria mais apropriado. Mas os sambaquianos gostam de ser iludidos e o seu cacique-mor é um mestre da empulhação. Vendedor de ar quente, engabelador de eleitores, embaucador dos que acreditaram no seu discurso do gestor experiente.

A última invenção dos sambaquianos é deixar-se levar pelo encantador de caranguejos e dar nome aos elevados. Em lugar de deixar que seja o povo com a sua sabedoria quem chame as coisas pelo seu nome, como Curva do Nereu, ou Praia do Ervino, ou Curva do Fritz, eles inventaram de fazer um evento, com discursos, placas e fogos de artifício para batizar um reles elevado com o nome de um político já falecido.

Esforço inútil, o povo vai denominá-lo de forma mais prosaica, como, por exemplo, o elevado da Tuiuti. Ou qualquer outro que melhor identifique o monstrengo cinzento e capenga que ficou feioso, torto e mal-acabado. Aliás, características comuns a tudo que por aqui se faz com o dinheiro público. Alias é bom não esquecer de acrescentar caro. Porque além de ficar ruim, esta obra ficou cara e demorou muito mais do que estava previsto.

Mas se os sambaquianos se empolgam e começam a dar nome a tudo o que os rodeia, logo, logo vai faltar nome para tanto buraco. E já se sabe: onde faltam obras sobram buracos.s

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Toda censura é burra. Que o diga Chico Buarque

POR ET BARTHES
A palavra ditadura voltou a estar em foco, com os documentos da CIA, revelados na semana passada. É um momento interessante para voltar a falar no tema censura, uma marca forte dos regimes autoritários. Toda censura é burra. Todo censor é um borra-botas. Os caras são tão idiotas que acabam sempre por entrar para a anedotário das sociedades.

Há exemplos eme todos os tempos. Quando Karl Marx foi diretor do “Rheinische Zeitung”, o jornal tinha um censor fixo. Era um policial chamado Laurenz Dolleschall. Um dia o homem proibiu um anúncio da “Divina Comédia”, de Dante Alighiere. A razão? No entender do sujeito, uma coisa que é divina nada pode ter a ver com comédia.

No Brasil, até uma música romântica do cantor Waldick Soriano foi censurada. Por quê? Porque o nome era “Tortura de Amor”. O censor pensou, muito cartesianamente: “se fala em tortura, a música é subversiva”. Ok... ouvir Waldick Soriano pode ser uma tortura para muita gente, mas o homem nem se interessava muito por política.

Um dos preferidos da censura sempre foi Chico Buarque. O problema é que o compositor é um homem inteligente e os censores são sempre tontos. O caso mais clássico de drible nos censores talvez tenha sido a música “Cálice”. Os caras não perceberam a mensagem “cale-se”. É o exemplo pronto e acabado da vitória da inteligência sobre a mediocridade.

Chico Buarque chegou a suar o pseudônimo Julinho da Adelaide para aprovar as suas músicas. Um dos seus trabalhos mais interessantes é “Jorge Maravilha”, que entrou para a história por ter uma letra dedicada a Amália Lucy, filha do então presidente Ernesto Geisel. Tudo por causa da frase “ você não gosta de mim, mas a sua filha gosta”.

É um daqueles casos em que a versão é mais divertida que a realidade. Porque o próprio Chico Buarque esclareceu os fatos e disse que era apenas boato. “Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança (do Dops), e no elevador o cara pedir autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo de delegado”, esclareceu.

Ouça a música. No fim ele faz um comentário sobre a filha do ditador.


domingo, 13 de maio de 2018

Os Bolsonaro, a ditadura e a aberração cognitiva

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
A notícia da semana foi a revelação, através de documentos da CIA - Central Intelligence Agency, de que os generais da ditadura brasileira autorizaram a execução dos opositores. Nada que não se soubesse. Mas agora há evidências concretas que permitirão, aos historiadores, a construção de uma narrativa baseada em dados concretos, daqueles que não dá para recusar (a não ser os militares e os malucos que pedem a volta da ditadura).

A revelação traz um problema. O Brasil tem muita gente que lida mal com os fatos e, mais ainda, com a história. Um exterminiozinho de opositores – os malditos esquerdistas ficam no Brasil em vez de irem para Cuba – até cai bem para esse pessoal que delira com a volta da ditadura. O que são algumas mortes de comunas? Nada. Afinal, esquerdista bom é esquerdista morto, claro. E quem melhor representa esse espírito “sangue nos olhos”?

Se disse Jair Bolsonaro acertou. O deputado federal e putativo candidato à presidência da República é um caso pronto e acabado da aberração cognitiva que tomou conta do Brasil. É o que prova a sua reação à notícia das execuções. Ao ser perguntado sobre as revelações do documento, Bolsonaro reagiu com o seu conhecido estilo atrabiliário-truão, comparando a execução de pessoas a “um tapa no bumbum do filho”.

Aliás, os problemas de cognição parecem ter algo a ver com a genética. Também esta semana um dos filhos de Jair Bolsonaro publicou uma foto nas redes sociais a exibir, com ar jactante, uma camiseta com os dizeres “Ustra Vive”, sob a foto do torturador. O déficit cognitivo do rapaz é exuberante. Quem, em todo o planeta, é capaz de defender um ser execrável como Ustra? Só um Bolsonaro. Só no Brasil.

As revelações da CIA representaram um fato importante para as pessoas com pelo menos dois dedos de testa. Mas pouco valem para fascistóides como Jair Bolsonaro. Aliás, vale uma reflexão. Talvez seja um exagero dizer que o deputado é fascista. Porque o fascismo é um programa. Hitler era fascista. Mussolini era fascista. Franco era fascista. Todos tinham uma agenda. Bolsonaro é apenas um idiota motivado que namora ideias fascistas.


Era "Ustra Vive", o Photoshop fez o resto...

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Outros Maios virão


POR CLÓVIS GRUNER
No texto anterior sobre o cinquentenário de “Maio de 68”, falei que os acontecimentos daqueles dias alteraram nossa maneira de pensar e fazer política. Pois é justamente essa capacidade de mudar nosso modo de conceber o político, restituindo-lhe seu caráter plural, incômodo e emancipador, um dos mais positivos legados de Maio ao presente. É o que pretendo explorar, rapidamente, nessa segunda parte.

Em texto recente, parte de “Levantes”, livro e exposição organizados por Georges Didi-Huberman, o italiano Antonio Negri pergunta: quais as exigências postas a um levante para que se possa fazer dele uma “ontologia positiva”? Ele responde: “estar plantado na terra, enervado de paixões e de interesses; exige vontades radicais e desejos orientados para o futuro. Em segundo lugar, exige tornar-se máquina de produção de subjetividade, que compõem, num ‘nós’ ativo, um conjunto de singularidades”.

Essas duas características – um desejo orientado para o futuro, mas os pés plantados no presente, e a nova subjetividade daí advinda, o “nós ativo” – permite pensá-las de modo a associar episódios distintos, mas próximos em sua natureza: o blackout de Nova York, em 1977; o motim em Los Angeles, em 1992, e nos subúrbios parisienses, em 2005; as manifestações em Seattle contra a OMC, em 1999; passando pela Revolta dos Pinguins, no Chile, em 2006; o Occupy Wall Street, em 2011, ou a tomada da Praça Syntagma, na Grécia, há pouco menos de três anos.

A essa série, gostaria de acrescentar as manifestações de junho de 2013 e as ocupações das escolas paulistas e paranaenses, em 2015 e 2016, respectivamente. Embora, como o próprio Negri afirma, se tratem de eventos diversos, com demandas, estratégias e resultados específicos, estamos a falar de mobilizações que ecoam o “espírito” de Maio de 68 e que, décadas depois, seguem ativando novas formas de subjetividades políticas.

Minha leitura de 2013 e das ocupações se distancia do modo como parte da esquerda as interpreta, acusando a primeira de estopim do processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, e ainda que em tom mais generoso, reclama nas segundas a incapacidade de formular propostas claras e objetivas, a ausência de lideranças e de direção, enfim, uma ingenuidade política que contribuiu para a derrota do movimento.

A persistência dos vaga-lumes – Em um artigo de 1975, Pier Paolo Pasolini lamentava que o fascismo italiano, derrotado como regime de governo, sobrevivia triunfante  na sociedade italiana, aniquilando expressões genuínas de sua cultura. À luz deslumbrante, mas ofuscante dos projetores da propaganda e da máquina do fascismo, o poeta e cineasta contrapõem os vaga-lumes, cuja luz fugidia e discreta é também insistente e, o fundamental, resistente.

É por meio dessa metáfora, retomada pelo historiador francês Didi-Huberman, que sugiro uma certa continuidade entre 68 e as manifestações recentes no Brasil: antiautoritárias, criativas em sua capacidade de driblar as armadilhas policialescas, e não apenas as da polícia, questionadoras das ordens instituídas, iconoclastas, nem as “jornadas de junho” nem as ocupas pretendiam tomar ou substituir o poder. A intenção, aberta ou velada, era tensioná-lo por meio de demandas que inscreviam o presente e o cotidiano na ordem política.

A certeza de que o transporte público e a mobilidade, o direito de estar na cidade, deveria ser um bem comum; e a convicção de que qualquer reforma educacional deve ser discutida com quem é diretamente afetado por ela, ou seja, os próprios estudantes, eram suas reivindicações objetivas. Mas elas mobilizavam novas formas de paixões utópicas, outras estratégias e modos de agir e de ocupar os espaços públicos, em grande medida derivadas de 68.

Apesar das diferenças, esses movimentos têm em comum a aspiração a uma singularização irredutível às tentativas de alinhamento, uma espécie de recusa teimosa, de inspiração libertária, do Estado e suas instituições. É verdade que a democracia formal tem dado sinais claros de seu esgotamento, e de que sua existência depende da capacidade de fazer do “Estado de exceção” a regra – somos testemunhas disso no Brasil. Além disso, parte da revolta que inundou Paris foi cooptada com promessas de futuros idílicos, ou transformada em mercadoria.

Mas se por um lado é inegável a sobrevivência dos velhos modos de fazer política, também o é a força e a pertinência dos chamados “novos movimentos sociais”, diretamente relacionados às “jornadas de junho” e as ocupações. Em tempos sombrios como o nosso, é preciso voltar a Maio de 68, desconfiar da utopia como porvir e reiterar a mirada política no presente – ou seja, reafirmar a utopia não como esperança, mas como intervenção.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

"O Processo", filme sobre destituição de Dilma Rousseff, ganha prêmios em Portugal

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
O filme “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, conquistou dois prêmios no IndieLisboa, um dos mais importantes festivais de cinema de Portugal, realizado entre  26 de abril e 6 de maio. O documentário, que mostra os fatos desde a crise política iniciada em 2013 até ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, conquistou o Prêmio Silvestre, um dos mais importantes, e o Júri do Público para longa-metragem.

O júri do Prêmio Silvestre afirma que o filme foi escolhido pela singularidade e por uma linguagem cinematográfica que permite, ao espectador, fazer as suas próprias observações. “Pela sua montagem aberta, que é fluente e elegante. Um drama político contado através da narrativa clássica sem cair no classicismo gramatical e formal”, explica a organização do festival.

Os portugueses consideram ‘O Processo’ “um filme sobre a política brasileira que também mostra o processo universal de deslegitimação das instituições republicanas e lança uma nova luz sobre os perigos que ameaçam a democracia contemporânea”.

O fato de ter sido escolhido pelo júri popular tem óbvia relação com fatores estéticos e de narrativa. No entanto, também permite extrapolar para uma leitura política. A receptividade ao filme tem sido boa porque o mundo – e em especial a Europa – já percebeu que a ex-presidente foi vítima de um golpe parlamentar e não acredita nas instituições brasileiras.



Maio, 50 anos: exigir, ainda, o impossível


POR CLÓVIS GRUNER
No dia 10 de maio, milhares de estudantes parisienses tomaram as ruas do Quartier Latin, bairro universitário da capital francesa. Com carros destruídos, carteiras, móveis e paralelepípedos construíram as barricadas que, ao longo das semanas seguintes, se tornaram símbolos de um dos mais significativos eventos do século passado. Sabemos hoje, que o movimento mal conquistou aquela que era sua agenda mais objetiva e principal reivindicação, a reforma universitária. 

Mas “Maio de 68” alterou radicalmente nossa maneira de pensar e fazer política: ele sintetiza, exemplarmente, o seu caráter fundamentalmente emancipador, para além da burocratização que comumente a caracteriza. Ao recusarem as utopias clássicas – o liberalismo de mercado e o socialismo estatizante –, os jovens franceses rejeitaram, igualmente, as noções tradicionais de militância e revolução que orientaram parte significativa das experiências políticas anteriores.

Uma atenção às condições históricas ajuda a entender os eventos de maio para além de sua mistificação. No contexto internacional, há a Guerra Fria e, com ela, o esgotamento das alternativas históricas tradicionais. Além disso, aquela era a primeira geração nascida imediatamente após o fim de um longo período de conflitos mundiais, e que chega à juventude usufruindo de um ambiente, se não inteiramente livre de conflitos, sem o peso de duas guerras capazes de devastar um continente inteiro.

Mais especificamente na França, os eventos de Maio também repercutiram condições e experiências históricas que o antecederam. De uma perspectiva simbólica, os insurgentes reivindicavam sua filiação à Comuna de Paris de 1871, e mesmo à revolução de 1848, as chamadas “Jornadas de Junho”. Mais proximamente, há nas ruas do Quartier Latin ecos da Frente Popular de 1936, da resistência à ocupação nazista nos anos de 1940 e do ativismo pela independência da Argélia, no final dos anos de 1950.

No ambiente sociocultural dos anos de 1950-60, esses contextos gestaram e deram forma a manifestações – a contracultura, as experiências de vida comunitária, os movimentos feminista e negro, etc –, e mobilizações diversas – e penso, por exemplo, na Primavera de Praga, ou na resistência às ditaduras na América Latina. Nesse sentido, o Maio francês não é um evento único e isolado, mas parte e resultado de um conjunto de mudanças comportamentais e políticas que caracterizam não apenas o ano de 68, mas toda a década de 1960.

A imaginação no poder – A reforma educacional, reivindicação que motivou a tomada das ruas, rapidamente ensejou outras, de cunho mais estrutural – como o fim da Guerra do Vietnã, partilhada com as manifestações que começavam a surgir nos EUA – ou existencial, expressa no lema “Sejamos realistas, exijamos o impossível”. Os embates também se multiplicaram, com a polícia certamente, mas também com todo o aparato de força e poder de uma sociedade democrática liberal como a francesa – a burocracia, a família, os valores morais, entre outros.

E enfim, há seus desdobramentos. Frente à repressão policial e em solidariedade aos estudantes, sindicatos decretaram greve geral e, rapidamente, o movimento extrapolou seu caráter inicial, ampliou suas reivindicações e envolveu diferentes setores da sociedade francesa – operários, artistas, intelectuais, cineastas, funcionários públicos, etc... No final de maio, a greve geral convocada duas semanas antes já paralisara oito milhões de trabalhadores, uma aliança de proporções inéditas e que não se repetiria nos anos subsequentes.

Nas semanas seguintes, e frente à ameaça de ver ruir o governo, Charles de Gaulle convoca eleições e, apelando aos votos de uma “maioria silenciosa” contrária às barricadas, retoma a maioria parlamentar e o controle de Paris. Maio chega ao fim, mas Maio não teve fim. Participante ativo e um de seus historiadores, Jacques Baynac chama a atenção principalmente para duas características dos eventos de maio que assinalam sua novidade frente a outras sublevações.

Diferente de experiências anteriores, 68 não foi gerado pela escassez, mas pela abundância: abundância de memórias, de referências teóricas, de filiações ideológicas, de estratégias de confronto e ocupação das ruas (barricadas, cartazes, pichações, etc...). Além disso, enquanto as sublevações passadas pretenderam instaurar novas formas de poder, o Maio francês pretendia invalidá-lo – nas palavras de Baynac, “o que equivale a realizar-se como não poder”. Nesse sentido, e me apoio aqui na distinção proposta pelo teórico italiano Furio Jesi, “Maio de 68” não foi, nem pretendeu ser, uma revolução, mas uma revolta.

Entre outras coisas, para Jesi a qualidade que distingue ambas reside na sua relação com o tempo: se a revolução está imersa no tempo histórico e se orienta para o futuro, a revolta o suspende, instituindo o presente. Isso não significa negar, à revolta, sua potência de futuro ou, dito de outra forma, sua potencialidade para vislumbrar, desde o presente, um horizonte possível de expectativas. Ecos do já cinquentenário “Maio francês” alcançaram nosso presente, que foi o seu futuro, em sua capacidade de forjar novas e intensas paixões utópicas e organizar novos modos de insurgência política.

(Essa é a primeira de duas partes de um texto mais longo sobre os 50 anos do Maio de 68. A segunda será publicada sexta-feira.)

terça-feira, 8 de maio de 2018

Não leia os comentários

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Antes de ir ao ponto, eis alguns dados importantes a reter.
1. De acordo com a Unesco, o Brasil é o oitavo país com mais adultos analfabetos do mundo (são cerca de 14 milhões).
2. Numa pesquisa realizada em 38 países, os brasileiros ficaram em segundo lugar entre os lugares onde as pessoas têm menos noção da própria realidade.
3. Apenas 8% das pessoas com idade para trabalhar são capazes de entender e se expressar por palavras e números.
4. O estudo “Analfabetismo no Mundo do Trabalho” diz que um a cada quatro brasileiros pode ser considerado analfabeto funcional.
5. O Brasil está na 72ª colocação em um ranking que avalia a inclusão digital de 150 países.

Os dados apontam uma evidência. O Brasil é um lugar onde as pessoas têm dificuldades para interpretar o mundo. É uma deficiência expressa nas redes sociais e nos comentários nos textos de jornais e blogues. Há o lado bom: as plataformas digitais são ferramentas de intervenção que vieram dar voz aos que nunca puderam falar. E o lado mau: a liberdade virou excesso e fez emergir o lado mais negro da mente humana. Ao ponto termos um conselho recorrente: “não leia os comentários”.

Na década de 70 do século passado, o escritor  Alvin Tofller criou a expressão information overload (sobrecarga de informação), considerada uma das grandes doenças do século 21. O que significa? Que os avanços da tecnologia estão a intensificar o tráfego de informações ao ponto de tornar impossível processar e reter todos os dados. O cérebro humano não está rotinado para acelerar os seus processos na mesma velocidade dos avanços tecnológicos.

Agora imaginem o que essa sobrecarga de informação pode produzir numa sociedade que, durante décadas de ditadura militar, foi obrigada ao silêncio. Gente que não aprendeu a debater. Que nunca teve que enfrentar o contraditório. Que não foi educada para a democracia. Diz o ditado que “quem nunca comeu melado, quando come se lambuza". O surgimento dessa esfera digital é um avanço civilizacional. Mas para parte dos brasileiros a coisa descambou.

O copo meio cheio diz que informação nunca é demais. Mas o copo meio vazio revela efeitos colaterais. Se há pessoas intelectualmente preparadas para fazer a gestão da informação (e dos excessos), também há quem patine. Soterradas por tantos dados, muitas pessoas são incapazes de organizar a informação. Nesses casos, há quem recorra à saída mais fácil: o uso de bengalas discursivas. Falam muito, dizem nada.

O que são essas bengalas? Ora, são as frases prontas (clichês, slogans, chavões) que têm a função de dar um ar de simplicidade ao que é complexo. Ou seja, são ideias simplórias que criam uma sensação de entendimento dos fatos. Mas é exatamente o contrário. É um risco acrescido em sociedades onde muita gente se informa apenas pelas redes sociais, que, todos sabemos, são o meio propício para plantar a desinformação.

O problema é que esses clichês estão contaminados pelo ódio e pela intolerância. Eis o perigo. Talvez o plano de expressão da alma do povo seja a caixa de comentários dos jornais, dos blogues, das redes sociais. A iliteracia e as ideias simplórias, misturadas com doses maciças de intolerância, transformaram estes ambientes em autênticos pantanais – que vão para além do virtual. A ignorância é a mãe de todos dos ódios. E tudo o que se vê é feio, muito feio.

É a dança da chuva.

P.S. Não leia os comentários...

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Os "udoboys" e a Cota 40. De novo...

POR JORDI CASTAN
Acabar com a cota 40 tem se convertido na obsessiva tarefa diária do Executivo municipal. Para atender interesses especulativos e “promover o progresso”, o prefeito municipal encarregou a missão de destruir o mais importante pulmão de Joinville. E para isso um grupo de técnicos tem se dedicado diuturnamente a achar formas de acabar com a Cota 40.

Desconsideram que, para acabar com a Cota 40, é preciso desrespeitar a LOM (Lei Orgânica Municipal), a nossa constituição municipal. Uma lei que considera, de forma explícita, as regras e os pilares do convívio entre os joinvilenses. Ou seja, considera sabiamente que os morros, morrotes e todas as áreas localizadas acima de Cota 40 devem ser preservadas. O prefeito deve ter esquecido que, quando tomou posse, prometeu cumprir a lei que agora insiste teimosamente em ignorar e desvirtuar.

A “genial” proposta que o Executivo encaminhou ao Legislativo é a de permitir a mineração das Áreas acima da cota 40. Assim, todos os morros com cota superior poderão ser explorados para mineração e sua cota rebaixada com a retirada do material mineral, seja ele barro, saibro ou rocha. Ora, depois de não haver mais a cota 40, o imóvel poderá ser ocupado normalmente.

Já escrevi neste espaço que temas complexos não são o forte do prefeito. Há nele uma predisposição a simplificar as coisas de modo que possa compreendê-las. Gente simples não compreende ideias ou propostas complexas. O prefeito acha assim que consegue resolver com soluções simplórias temas que exigem analise, estudos técnicos e conhecimento que ele e sua equipe ou abominam ou não tem competência para compreender.

Por isso, o prefeito trata Joinville como um gigantesco tabuleiro de banco imobiliário em que ruas e bairros mudam de valor de acordo com o seu interesse ou o dos seus amigos e apaniguados. Para o grupo denominado de “udoboys” Joinville é um jogo de Sin City à escala gigante. E a cota 40 é na sua cabeça um empecilho para o “progresso” desta pujante cidade.

sábado, 5 de maio de 2018

A classe dominante e consciência dominante


POR KARL MARX
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes. Ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual.

As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época.

Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a burguesia, lutam entre si pelo domínio - em que portanto o domínio está dividido - revela-se ideia dominante a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma "lei eterna".

A divisão do trabalho, uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, pelo que no seio desta classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos ativos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento). Ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros ativos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios.

No seio desta classe pode esta cisão da mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes. Mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas em que a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e teriam um poder distinto do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária, e já atrás ficou dito o que era necessário sobre estas premissas.

Ora, se na concepção do curso da história desligarmos as ideias da classe dominante da própria classe dominante, se lhes atribuirmos uma existência autónoma, se nos ficarmos por que numa época dominaram estas e aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção e com os produtores destas ideias, se, portanto, deixarmos de fora os indivíduos e as condições do mundo que estão na base das ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia dominaram os conceitos honra, lealdade, etc., durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos liberdade, igualdade, etc.

Em média, é isto que a própria classe dominante imagina. Esta concepção da história, que a todos os historiadores é comum, em especial a partir do século XVIII, há-de necessariamente dar com o fenômeno de que dominam ideias cada vez mais abstratas. Isto é, ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. É que cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela, é obrigada, apenas para realizar o seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse comunitário de todos os membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal [ideell]: a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas.

A classe revolucionante entra em cena desde o princípio, já que tem pela frente uma classe, não como classe, mas como representante de toda a sociedade, ela aparece como a massa inteira da sociedade face à única classe, a dominante. E consegue-o porque, a princípio, o seu interesse anda realmente ainda mais ligado ao interesse comunitário de todas a demais classes não dominantes, porque sob a pressão das condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular.

A sua vitória aproveita também, por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não se tornam dominantes, mas apenas na medida em que permite a estes indivíduos subirem à classe dominante. Quando burguesia francesa derrubou o domínio da aristocracia, tornou desse modo possível a muitos proletários subirem acima do proletariado, mas apenas na medida em que se tornaram burgueses.

Cada nova classe, por isso, instaura o seu domínio apenas sobre uma base mais ampla do que a da até aí dominante, pelo que, em contrapartida, mais tarde também o antagonismo da classe não dominante contra a agora dominante se desenvolve muito mais aguda e profundamente. Por ambas as razões, é determinado o fato de que a luta a travar contra a nova classe dominante por seu turno visará uma negação mais radical, mais decidida, das condições sociais até aí vigentes do que fora possível a todas as classes que anteriormente procuraram dominar.

Toda esta aparência de que o domínio de uma determinada classe seria apenas o domínio de certas ideias cessa, naturalmente, por si mesma logo que o domínio de classes em geral deixa de ser a forma da ordem social, logo que, portanto, deixa de ser necessário apresentar um interesse particular como geral ou "o geral" como dominante.