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Michele e os filhos: Gentili não suporta a felicidade deles |
POR CLÓVIS GRUNER
Michele Rafaela Maximino mora em Quipapá, uma pequena cidade
do interior de Pernambuco, na zona da mata. Auxiliar de enfermagem e
mãe de dois filhos, por uma dessas idiossincrasias da
natureza ela consegue produzir cerca de dois litros de leite diariamente. Graças a isso, nos últimos meses Michele foi responsável
por até 90% de todo o leite materno do banco de leite do Hospital e
Maternidade Jesus Nazareno; somente em setembro, foram 39 litros doados. Um
detalhe: Caruaru, onde fica a Jesus Nazareno, é distante 80 quilômetros
de Quipapá. Assim, depois de ordenhado e mantido congelado
em potes esterilizados, para doar o leite Michele e o marido percorrem e custeiam do bolso as
despesas do translado semanal entre sua cidade e Caruaru.
Só uma mulher sabe, efetivamente, as dificuldades de
amamentar. Mas não é preciso ser uma para ter consciência dos
benefícios da amamentação. Maternidades mantem bancos de leite para garantir principalmente a saúde e, em certos casos, mesmo a
sobrevivência de recém-nascidos prematuros. Muitas mães optam pelo aleitamento materno exclusivo até o sexto
mês, como recomenda a Organização Mundial de Saúde, e algumas – nem todas,
infelizmente – contam com o apoio dos pais, dispostos a fazer o necessário ao
seu alcance para garantir o máximo de conforto e condições para a amamentação. Um gesto, diga-se, que demanda além da atenção dispensada ao bebê durante o ato, esforço físico e necessárias
horas de repouso. Amamentar pode ser um ato de amor, mas quem já passou por isso, mesmo que na condição de pai, sabe que há pouco de idílico.
Em um país onde o índice de amamentação está muitíssimo
abaixo do aconselhado pela OMS – pouco mais de 40% dos bebês brasileiros
menores de seis meses recebem exclusivamente o leite materno, quando o percentual
ideal é de no mínimo 90% –, Michele deveria ser “mamãe propaganda” de uma
campanha que reforçasse a importância do aleitamento. Não foi o caso. No começo
deste mês, Michele entrou
na mira do comediante Danilo Gentili, e não é
novidade a ninguém o que isto significa: Gentili faz parte de uma geração de
humoristas especializada em um humor baixo e preconceituoso. Em nome do politicamente incorreto,
seu histórico de humilhação contra principalmente mulheres, gays e negros é
amplamente conhecido.
Neste caso em específico, entre outras coisas o apresentador
do “Agora é tarde” chegou a comparar Michele com um ator pornô, e a amamentação
com a masturbação: “Em termos de doação de leite, ela está quase alcançando o
Kid Bengala”, afirmou, um pouco antes de exibir, sem autorização, a imagem de
Michele e prosseguir o linchamento moral disfarçado de humor. Tudo muito hilário.
UM RISO REACIONÁRIO – Por tentador que seja fazer um
exercício de psicologia de botequim para tentar identificar as razões que
explicam o medo doentio que alguns homens tem de seios femininos, e do ódio que
nutrem pelas mulheres de um modo geral, não vou ceder a tentação. Meu argumento
é outro. Historicamente, o riso tem servido para expor o poder e os poderosos.
Desde as origens do carnaval, ainda no medievo, ou nos charivari, comuns nas
cidades francesas dos séculos XVII e XVIII, o riso e o escárnio foram sempre um
instrumento de subversão e crítica de que se valeram os menos poderosos para
ridicularizar aqueles que, sob seu ponto de vista, eram tidos como
dominadores – o clero, a nobreza, seus patrões, etc...
Esta tendência subversiva e libertária, é possível reencontrá-la no humor mais contemporâneo. Em Buster Keaton ou nos
irmãos Marx, no cinema americano, por exemplo;
em Oscarito e em praticamente toda a chanchada, ou em Mazzaropi, no caso
brasileiro. Mesmo a comédia stand up que, supostamente, inspirou Gentili, segue
esta tendência, o que é notório no humor entre o cinismo e o sarcasmo de seus
principais expoentes, tais como Woody Allen, Jerry Seinfeld ou Chris Rock. E estou a falar apenas do humor a que assistimos no cinema ou na televisão, mas se deslocarmos para outras linguagens e mídias, exemplos não faltam; e o cartunista Laerte, cuja tirinha ilustra esse texto, é um desses casos.
No Brasil, salvo raras e honrosas exceções, o humor seguiu o
caminho inverso. A ridicularizar os poderosos, preferiu adulá-los. A expor as
mazelas, as contradições, o grotesco enfim, do chamado “senso comum” e seus
muitos preconceitos, tem servido para reforçá-los, multiplicá-los e
legitimá-los. Nosso riso é conservador e nossa história, atravessada pelas
muitas formas de violência contra as chamadas minorias, explica em parte esta
tendência: somos servis, e o ressentimento gerado por nossa sujeição e impotência
tem servido de esteio ao ódio dirigido contra aqueles mais frágeis socialmente. O
fenômeno vago e ambíguo do “politicamente incorreto” reforçou esta tendência;
sua penetração midiática deu a ela uma roupagem moderna e descolada.
O argumento de que o humor não deve ter limites é débil e
tem pelo menos dois precedentes a contradizê-lo. O próprio Danilo Gentili
desculpou-se com a comunidade judia de Higienópolis depois de sua piada, no
mínimo ofensiva, sobre os trens de Auschwitz. Seu colega Rafinha Bastos também
se retratou com a cantora Wanessa Camargo - mas, mesmo assim, perdeu a vaga no CQC, um punhado de contratos publicitários e hoje amarga um relativo ostracismo. Nenhum deles, claro, fez o mesmo com
os negros, chamados pelo primeiro de “macacos”, ou com as mulheres, depois da
apologia ao estupro feita pelo segundo.
No ano passado uma artista afirmou em entrevista
que deixou de amamentar depois que levou uma mordida do seu filho. Danilo
Gentili e sua trupe nada disseram: afinal, uma mulher loira e linda – além de
rica e famosa – não serve para piada porque, entre outras coisas, não terá de
agradecer ao estuprador o favor de tê-la estuprado. Já Michele, que amamenta os
seus filhos e os filhos de outras mulheres, sofreu a humilhação de ser exposta
ao ridículo pelos epígonos do humor politicamente incorreto. Não há outra
conclusão possível. O politicamente incorreto não é apenas preconceituoso e autoritário, mas covarde.