quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Desmilitarizar a polícia e a política



POR CLÓVIS GRUNER

Na mesma semana em que as imagens da polícia carioca reprimindo violentamente professores em greve correram o país, confirma-se que Amarildo foi torturado e assassinado por policiais da UPP da Rocinha, onde morava. Ambas as notícias reforçam a sensação de desacerto entre uma polícia militarizada e violenta e uma sociedade que se pretende democrática. Como já disse em outro texto, as instituições prisionais e policiais funcionam como imensos reservatórios da arbitrariedade e da violência cultivadas durante a ditadura civil militar. O gradual desmonte do aparato repressivo não alcançou o interior das penitenciárias, presídios, delegacias e quarteis de polícia, sinalizando o antagonismo entre as políticas de segurança pública e os esforços pela consolidação da democracia iniciado há quase três décadas.

Tal contradição é estrutural e consagrada pela Constituição de 1988, que prevê em seu artigo 144 a divisão de tarefas entre as polícias Militar (a quem cabe realizar o policiamento ostensivo) e Civil (responsável pela investigação policial). Trata-se de uma verdadeira distorção dos modelos que, supostamente, inspiraram a organização da polícia brasileira. Ainda que muitos países europeus possuam forças militares com funções de polícia – como são os casos da Gendarmerie Nationale, na França; dos Carabinieri, na Itália; da Guardia Civil, na Espanha; ou da Guarda Nacional Republicana, em Portugal –, sua estrutura e funcionamento são diferentes da nossa Polícia Militar, a começar pelo fato de serem nacionais, e não estaduais. Além disso, as atribuições de policiamento destas forças se restringem prioritariamente às áreas rurais; os policiamentos ostensivos e investigativos nas áreas urbanas são de responsabilidade das polícias civis. As gendarmarias europeias são, ainda, de ciclo completo, no que se assemelham às polícias americanas e inglesas. Nestes dois países, aliás, as polícias são exclusivamente civis.

REPENSAR E REESTRUTURAR A POLÍCIA – No Brasil, o treinamento militarizado é um dos responsáveis pela criação de uma das mais violentas polícias do mundo. Os números são assustadores. Em São Paulo, cerca de 2.200 pessoas foram mortas em supostos confrontos com a PM entre 2006 e 2010. No Rio de Janeiro, foram mais de 10 mil mortes entre 2001 e 2011. A atuação dos policiais nas manifestações iniciadas em junho evidencia uma cultura de confronto que está arraigada na PM e é velha conhecida dos moradores das periferias, historicamente os mais sujeitados à violência policial – e é sintomática a declaração do ex-membro do BOPE, Rodrigo Pimentel, ao ver um policial descarregar uma metralhadora para o alto durante um dos confrontos: “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano…” [os grifos são meus].

O recrudescimento da violência e o aumento de sua percepção (coisas próximas, mas ainda assim distintas) por um público mais amplo – o que se deve em parte à mobilização virtual nas redes sociais –, tirou das margens da agenda política o debate sobre a desmilitarização da polícia. No âmbito mais estritamente institucional, no começo desta semana um passo importante foi finalmente dado, com a apresentação da PEC 51, já batizada de PEC da Desmilitarização (clique no ícone "Texto inicial"). O projeto é extenso e não cabe aqui comentá-lo step by step. Mas há alguns pontos centrais que merecem ser destacados. 

GARANTIR DIREITOS – O primeiro é a definição e a função da polícia como instituição cujo propósito não é garantir a segurança do Estado, nem fazer a guerra contra suspeitos ou criminalizar movimentos sociais, mas promover e garantir os direitos dos cidadãos. Com a desmilitarização, a PM (hoje, força de reserva do Exército, “formada, treinada e organizada para combater o inimigo”) deixa de existir e cria-se uma polícia unificada e com carreira única. Além disso, toda polícia deve realizar o ciclo completo, exercendo o trabalho preventivo, ostensivo e investigativo e colocando fim ao fracionamento hoje característico da atividade policial. São os estados que definem o formato a ser adotado por suas polícias, bem como o grau de responsabilidade dos municípios na manutenção da segurança pública. Na prática, rompe-se com o modelo centralizado hoje previsto na Constituição e confere-se maior autoridade e autonomia aos estados e municípios na implementação de políticas de segurança pública. Não menos importante, aumentam os mecanismos de controle social, com a extinção, por exemplo, da Justiça Militar, e a criação de Ouvidorias externas.

Não apenas o trâmite da PEC será certamente demorado como, provavelmente, ela enfrentará a oposição de setores corporativos e de conservadores em geral, para quem pouco importa uma polícia democratizada e menos violenta e uma política de segurança realmente pública. Ciente desta e de outras dificuldades, o próprio texto prevê uma “implementação cuidadosa”, caso aprovado. Sua efetivação depende agora da mobilização daqueles realmente interessados em romper o ciclo de violência de nosso passado autoritário tão recente e hoje ainda presente nas instituições militares. Pessoalmente, acredito que poucas causas merecem tanto nosso engajamento.

10 comentários:

  1. “As gendarmarias europeias são, ainda, de ciclo completo, no que se assemelham às polícias americanas e inglesas. Nestes dos países, aliás, as polícias são exclusivamente civis.”

    Nas polícias de ciclo completo as atividades repreensivas, investigativas e judiciais estariam incumbidas na mesma corporação. Imagine isso funcionando num país corrupto como o Brasil. A Constituição brasileira define a ação de polícia ostentativa e de repreensão aos militares e judiciária e investigativa aos civis. Pensa que os policiais civis não são violentos em determinadas abordagens? Não é incomum casos de quebra de membros, escoriações e até cegueira em suspeitos abordados pelos mep’s (os simpáticos guardinhas da Scotland Yard). A diferença é que na Grã-Bretanha os policiais civis não andam com armas de fogo (provavelmente essa será aproxima reivindicação da esquerda brasileira).

    “No Brasil, o treinamento militarizado é um dos responsáveis pela criação de uma das mais violentas polícias do mundo.“

    A violência policial não tem nada a ver com treinamento militar. Aliás, o treinamento tático, como o uso de armas e desarmamento do oponente, é semelhante nas duas polícias. O policial age com violência porque ele tem uma espada apontada para a sua cabeça. Converse com psicólogos que atendem os soldados da polícia militar, ouça o que eles têm a dizer. Tente encarar o desrespeito e descrença da sociedade, ganhar um salário de R$ 2.300,00 para enfrentar bandidos armados ou grupos de maconheiros e arruaceiros. Muitos policiais militares (e civis também) se corrompem para melhorar seus rendimentos. E o que dizer da justiça brasileira, que libera ladrões, traficantes, estupradores e assassinos pegos em flagrante por policiais militares ou após meses de investigações por policiais civis? A desmilitarização da polícia não vai mudar a situação alarmante que há décadas a persegue, muito menos a ineficiência da justiça brasileira.

    “Os números são assustadores. Em São Paulo, cerca de 2.200 pessoas foram mortas em supostos confrontos com a PM entre 2006 e 2010. No Rio de Janeiro, foram mais de 10 mil mortes entre 2001 e 2011.”

    Esperar o que de uma população de criminosos armados até os dentes? Ou no seu conto de fadas todos os mortos por confrontos com policiais são de mocinhos inocentes? Ou pra você a exceção é a regra? No Brasil um policial militar é morto a cada 32hrs, mas essa informação você prefere omitir.

    “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano…”

    O policial do BOPE constatou o perigo iminente de se utilizar uma arma de guerra dentro da área urbana da favela. Acontece que os criminosos também usam armas de guerra contra os policiais. Aí entra o dilema: conviver com o crime desorganizado ou colocar inocentes e policiais em perigo?

    A PEC da Desmilitarização da Polícia tem um propósito burocrático.
    Nas polícias as ouvidorias já existem, as corregedorias também. O modelo atual descrito na Constituição não é centralizado, muito ao contrário, os Estados e Municípios já têm autonomia nas suas políticas de segurança pública, inclusive sobre as polícias militares, civis e municipais. A PEC propõe extinguir a polícia judiciária (esse é o principal mote da emenda) e apinhar ainda mais a já combalida justiça comum. A PEC não define, por exemplo, a remuneração base ou o teto para a nova corporação - isso é por conta e risco de cada Estado e Município. No fundo eles querem unificar a polícia e aprovar um texto politicamente correto, mas as péssimas condições de trabalho, as repreensões violentas e a morosidade no julgamentos de policiais vão continuar as mesmas.

    Essa PEC é uma proposta carnavalesca do senador do PT, Lindbergh Farias (ex-UNE), aquele investigado por corrupção, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, que vai concorrer ao governo do estado do RJ. Ele é mais um com dor de cotovelo que almeja impor humilhações aos policiais e subserviência militar aos governos da esquerda.

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    1. Marcos, você obviamente não entendeu nada, o que não chega a me surpreender. Sei que seria demais pedir a você que lesse o texto da PEC, porque são 16 páginas só de letrinhas.

      Mas mesmo assim, obrigado pelo esforço. Vou carimbar uma sapinho feliz no cantinho da sua agenda e esperar algum comentário mais pertinente para continuar o debate.

      Claro, não exatamente um comentário seu.

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    2. E a título de esclarecimento: o ex-policial do BOPE não "constatou o perigo iminente de se utilizar uma arma de guerra dentro da área urbana da favela".

      Antes pelo contrário, ele achou muitíssimo natural e defendeu o uso deste tipo de arma em operações na favela. O perigo, segundo ele, se resume a usá-la fora das favelas, que não são consideradas portanto, sob este ponto de vista, uma área urbana.

      Mas não se preocupe, ainda mantenho o sapinho pelo esforço.

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    3. Há um movimento gestionando a desmilitarização da nossa GNR.

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    4. Olá!
      Essa frase do Capitão Pimentel tem duplo sentido.

      “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano...”

      A vírgula após a palavra “favela” pode dar outro contexto à frase:

      A parte: “...não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano...” não necessariamente corrobora com a parte “...uma arma de operação policial em favelas”, visto que no senso comum e técnico as favelas são consideradas zonas urbanas. Ou seja, a arma em questão (uma metralhadora) é usada nas favelas, mas é desastroso porque essa não é uma arma adequada para ser usada no ambiente urbano (que inclui a favela).

      A vírgula dá a sensação de “porém”.

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    5. Mônica, sim, você tem razão. De fato, a frase pode ter um duplo sentido. No contexto em que ela foi dita, no entanto, ela se torna límpada e clara como as águas do Cachoeira: Pimental estava a afirmar que metralhadoras são armas de guerra que podem ser usadas em confrontos na favela, mas que são um desastre se usadas fora delas, "no ambiente urbano".

      Aliás, a colocação do Pimentel ecoa a fala do secretário de segurança do RJ quando, em outra ocasião, ele afirmou que um tiroteio em uma favela é uma coisa, em Copacabana é outra - e que fique claro, ele estava a justificar, quando não naturalizar, que a polícia adentre a favela como quem participa de uma guerra, mas que não pode fazer o mesmo na Zona Sul carioca, por razões que são óbvias.

      E antes que o Marcos venha falar de "uma população de criminosos armados até os dentes", pode ser difícil para alguns - como o Marcos - conceber que a maioria da população favelada, diariamente exposta à violência, não é de "criminosos armados até os dentes". Que o diga o Amarildo.

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  2. Obrigado, Mônica, por contextualizar a frase do milico. Ia responder, mas perdi a vontade.

    Verifiquei essa mesma frase no texto original de Sylvia Moretzsohn que reproduziu a fala do ex-policial do BOPE sobre a ação de um policial num tumulto específico em frente à assembleia legislativa do Rio de Janeiro, nada a ver com a periferia. Por coincidência, Sylvia também não deu muita importância ao contexto da frase e emendou:

    “Porque, como sabemos, favela não é ambiente urbano, é território livre para a barbárie.”

    Sabemos, quem, cara-pálida?

    ---

    Clóvis, criminosos também formam uma população, assim como a população de cadeiras, população de lápis, ou qualquer outro conjunto de objetos – isso é Estatística. No caso, eu especifiquei a “população de criminosos armados até os dentes” existente na favela, se você colocou toda a população da favela no mesmo saco, o problema é seu.

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  3. "Não apenas o trâmite da PEC será certamente demorado como, provavelmente, ela enfrentará a oposição de setores corporativos e de conservadores em geral, para quem pouco importa uma polícia democratizada e menos violenta e uma política de segurança realmente pública."

    Depois não digam que não avisei. E toma Marcos, taí o seu "contexto":

    http://www.youtube.com/watch?v=hs_ujmGwfh4

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  4. Sou soldado PM de Minas Gerais ha 25 anos e sou a favor da desmilitarizacao dad PMs no geral, chega de barbari, seja com os civis, ou como diz o Cel. PM Socrates, dentro da caserna com nos mesmos.


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  5. Não tenho muito conhecimento teórico do assunto, mas o que se vê na prática do dia a dia é uma policia de fardas extremamente agressiva, truculenta e sem capacitação para lidar com o cidadão comum.
    Fui participante ativa do Conseg's por anos (2000 a 2009) inclusive idealizadora e primeira presidente da Aconseg - Associação dos Conseg's e foi tentado implantar a filosofia de policia comunitária na ânsia de integrar as policias principalmente a militar com a comunidade, mas exatamente pela cultura interna da instituição, sempre houve resistência em todos os níveis de seu quadro pessoal.
    Tivemos alguns avanços, mas mesmo assim bem distante do que o programa preconizava.
    Ontem mesmo um colega de faculdade veio contar que por ter um irmão gêmeo e sendo confundido com ele, uma pessoa ao encontra-lo na rua, parou e xingou-o diante dos inúmeros transeuntes enfrente a um shopping e que foi chamado a policia de um posto central e que um dos policiais, antes mesmo de verificar se meu colega dizia a verdade sobre não ser ele o causador do problema que a tal pessoa lhe xingava, este policial o agrediu dando dois socos no estomago, para depois verificar a verdade sobre sua identidade.
    Mais um caso de outro colega que ao estar de barba um pouco crescida e na frente de um caixa eletrônico retirando dinheiro, foi agredido por policiais que o “etiquetaram” como suspeito.
    Essas e tantas outras atitudes vêm de uma cultura não da presunção de inocência das pessoas, mas sim do uso de abuso de poder, por estarem “autorizados” quando usam aquela farsa que para eles representam uma repressão ou opressão de quem não os “obedecerem”, ou agirem em contrário aos seus ditos “padrões”.
    Sou a favor de acabarem com estes uniformes protetores e corporativistas que encobrem ações que hoje, não se tolera mais. A desmilitarização será um avanço para a democracia brasileira!
    Em minha opinião, uma policia civil deixará todos muito mais em iguais condições, diferenciando apenas pelos papeis profissionais que cada um desempenha na sociedade.
    Inclusive a vadiagem esta semana foi retirado da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41) a punição para vadiagem, motivo muito usado como desculpas para a prática destes abusos pela policia contra o cidadão comum.

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