POR CLÓVIS GRUNER
Um edital de concurso público que selecionará 16 cadetes para a Polícia Militar do Paraná virou notícia nacional na segunda (13). É que entre os critérios da avaliação psicológica, responsável por analisar se os candidatos têm o perfil adequado para a função, aparecia “Masculinidade”, entendida como a “capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”.Ainda segundo o edital, a “masculinidade” do candidato ou da candidata – já que, ironicamente, a seleção é aberta também a mulheres – deveria ser apresentada em grau maior ou igual a regular. Com a repercussão, a PM paranaense decidiu retificar o edital, substituindo o critério por “Enfrentamento”, descrito mais sucintamente como a “capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades e de não emocionar-se facilmente”.
Em “História das lágrimas”, a historiadora francesa Anne Vincent-Buffaut mostra como um certo padrão de masculinidade é forjado e naturalizado principalmente ao longo do século XIX. Em substituição ao aristocrata dos séculos anteriores, de quem se esperava, além de alguma vaidade, a capacidade de externar sentimentos, o homem burguês do oitocentos é duro, frio e refratário às emoções.
Não se interessar por “histórias românticas e de amor”, leituras por demais femininas, era parte desse novo padrão de masculinidade, talhado para um espaço público representado como um lugar de disputa e de constante concorrência. Mas essa associação obtusa entre masculinidade e agressividade, ainda que grave, me parece o menor dos problemas. Mais delicada é a concepção de polícia que ela revela e, por consequência, aquilo que o governo espera dos novos policiais.
Precariedade e desumanização – Nesse sentido, tão significativa e preocupante como a “masculinidade”, é a baixa exigência para critérios como “Amabilidade” (“Capacidade de expressar-se com atenção, compreensão e empatia (...) buscando ser agradável, observando as opiniões alheias, agindo com educação e importando-se com suas necessidades”); “Liberalismo” (“Capacidade de abertura para novos valores morais e sociais”) ou “Busca por novidades” (“Capacidade de vivenciar novos eventos e ações”), por exemplo.
A rigor, o edital de agora reverbera a intenção, que não é nova, de que policiais militares sejam focados em seguir comandos sem considerar a natureza da ordem – como, por exemplo, massacrar docentes e discentes em praça pública: em 2012, ao rejeitar a exigência de curso superior para ingresso na PM, o governador Beto Richa associou a formação universitária a um possível aumento na insubordinação. Estamos a falar de um governante que já manifestou inúmeras vezes seu desprezo pela educação, mas sua fala encontrou resistência mesmo entre alguns oficiais.
Não se trata, obviamente, de uma concepção restrita ao governo paranaense. O modelo militarizado, herança da ditadura e consagrado pela constituição de 1988, é um dos responsáveis pela criação de uma das mais violentas polícias do mundo. Uma truculência, inclusive, que não se traduz em resultados: apesar dos gastos exorbitantes em segurança pública – em 2016 foram 81 bilhões de reais investidos –, seguimos assistindo a escalada enorme das muitas formas de violência.
A policial é uma delas. E não há sinais de recuo, entre outras coisas porque os governos e muitos eleitores, além de um certo candidato, esperam da polícia que ela defenda, principalmente, a segurança do Estado e promova uma guerra constante contra direitos e liberdades que deveria, justamente, garantir. A desumanização dos policiais, que começa com os baixos salários e as condições precárias de trabalho, e se desdobra na exigência de que se comportem como sociopatas, não é acaso ou deslize. É um projeto.