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terça-feira, 11 de agosto de 2020
Racismo nos dois lados do Atlântico
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Duas pessoas do campo da arte, Alfredo Costa e Robson Benta, um em Portugal e o outro no Brasil, conversam sobre a questão do racismo em diferentes latitudes. Uma análise intransitiva, feita na primeira pessoa. Uma excelente conversa que vai ser exibida em duas partes. A primeira está aqui.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
Turbante, marchinha de Carnaval e o que nós, pessoas brancas, (não) temos com isso
POR CECILIA SANTOS
Se eu tivesse que explicar a alguém não familiarizado com o jargão das redes sociais o que significa a expressão “mimimi”, eu definiria como “termo usado para expressar falta de empatia”.
Há uns dias as redes sociais debateram acaloradamente se algumas marchinhas de Carnaval são racistas, e por isso devem ser evitadas, ou não. Por exemplo:
“O seu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor,Nós, pessoas brancas, não vemos racismo porque não passamos por algo semelhante. Ninguém vai cantar em uma canção que pode nos amar, “apesar” de sermos brancos.
Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o seu amor”
Então, apesar de algumas pessoas não verem a ofensividade (óbvia) da marchinha, não vale usar o argumento de que todo mundo cantou assim a vida inteira. A sociedade deixou de fazer um monte de coisas que hoje são claramente horríveis. Além disso, existem milhares de marchinhas, sem contar as que aparecem todo ano. Ninguém vai morrer se justamente a racista não tocar neste Carnaval, certo?
Uns dias depois, viralizou o post de uma garota branca que foi supostamente repreendida por uma mulher negra por estar usando um turbante. A garota tirou o turbante para mostrar que estava careca por conta da quimioterapia para tratar um câncer. E terminou o post com um “vai ter branca usando turbante”.
Parte da militância negra manifestou-se contra o uso do turbante como apropriação cultural e houve intensas reações contrárias. Mas é bem sintomático que isso mobilize mais as pessoas do que as denúncias de assassinatos de crianças e jovens negros nas periferias e comunidades pela PM.
Eu também não entendo muito bem a questão da apropriação cultural. Acontece que eu não tenho mesmo como entender, porque não é um símbolo da cultura dominante a que eu pertenço, essa que ao longo da história tem feito de tudo para reprimir e invisibilizar outras culturas e crenças.
Se as pessoas negras alegam que o turbante é um símbolo de resistência e/ou religião, quem sou eu para dar palpite? Até porque essa conversa não é sobre mim e meus adereços de cabeça, é sobre todo um grupo de pessoas que inclusive são frequentemente hostilizadas por usar esses mesmos símbolos.
Nós, pessoas brancas, temos sempre uma resistência muito grande a reconhecer nossos privilégios e nossas atitudes de discriminação. A discussão sobre racismo nos coloca quase sempre em posição defensiva ou de ataque, mas raramente de reconhecimento. Um exemplo: somente depois de 30 anos de formada eu me dei conta de que não havia uma única pessoa negra na minha turma de faculdade. Apontei isso no Facebook e fui criticada por duas ex-colegas, que diziam que tinham se esforçado muito para cursar uma faculdade particular. Tenho certeza de que sim. O que elas não percebem é que muitas pessoas negras se esforçaram tanto ou até mais do que elas e não conseguiram chegar lá, por mil motivos sobre os quais deveríamos refletir a fim de combater esse verdadeiro apartheid social que vivemos.
Quando ouço alguém dizer que o racismo não existe e que nós somos todos humanos, penso em fazer as seguintes perguntas:
(No caso de uma mulher) Ao visitar um edifício de classe média-alta, alguém já te perguntou se você tem dia livre para faxina?*
(No caso de um homem) Você costuma ser abordado pela polícia na rua ou seguido por funcionários em estabelecimentos comerciais?
Nós, pessoas brancas, realmente não entendemos o racismo porque não passamos cotidianamente por essas situações. Mas deveríamos ouvir o incômodo dos outros, ter empatia e respeitar. E abolir essa expressão horrorosa, “mimimi”.
(*O exemplo acima é real e aconteceu algumas vezes com uma das minhas vizinhas, de 1 das 3 únicas famílias negras no meu condomínio de classe média-alta com 92 apartamentos).
terça-feira, 2 de junho de 2015
Brasil? Malta? Dinamarca? A xenofobia é a mesma
Joe Sacco, "The Unwanted", página 2: O dilema da imigração em Malta é o mesmo que aqui. |
POR PEDRO H. LEAL
Em 2009, o jornalista maltês Joe Sacco, em parceria com o The Guardian e a Virginia Quarterly Review, publicou uma HQ de 48 páginas, “The Unwanted”, lidando com as condições de vida e a reação aos imigrantes africanos no pequeno país do Mediterrâneo. Recomendo a leitura: é uma peça bastante reveladora a respeito de imigração, refugiados e especialmente xenofobia, que se torna bastante relevante no cenário atual.
Após mais uma onda de imigrantes haitianos, a xenofobia novamente está em alta em Santa Catarina. O discurso, o mesmo dos malteses: eles estão “tomando nossos empregos”; “vão trazer crime e desordem” e “estão destruindo nossa identidade”. Alegam que eles “vão ter um monte de filhos largados ao deus dará” para viver de benefícios. Isso quando não insinuam que vieram para dar algum tipo de golpe de estado.
Enquanto empregadores usam e abusam da mão de obra migrante mais barata (para não ter que pagar direitos trabalhistas), os migrantes que são os “culpados” por serem explorados. Qualquer crime cometido (ou atribuído) a imigrantes se torna prova definitiva do caráter nefasto desses “estrangeiros” e prova de que devem ser banidos de imediato.
Se engana quem pensa que seja um fenômeno isolado. O misto de temor, asco e ódio por imigrantes abunda pelo globo, se apresentando de formas variadas. Partidos nacionalistas tem ganho força ano a ano junto com movimentos anti imigração e de “defesa das identidades nacionais”, muitos dos quais flertam com o neo-nazismo (quando não o são abertamente, como a AWB na África do Sul).
Na Dinamarca, onde morei por um ano, há um bizarro misto de extrema abertura quanto a xenofobia, e completa negação de que ela exista. Enquanto politicas estatais visam a inclusão de imigrantes (e a cidade de Aarhus tem um excelente programa de “desradicalização” de fundamentalistas), a atitude popular é outra. Imigrantes romenos são rotineiramente barrados em bares e casas noturnas; comentários hostis a imigrantes árabes e africanos são comuns. Em uma entrevista de emprego, foi me respondido com “preferimos não contratar latinos”. Em outro incidente, junto de três mulheres africanas e dois homens do leste europeu, fui expulso de um ônibus por três jovens embriagados, aos berros de “esse ônibus é só para dinamarqueses”. Mas, oficialmente, a descriminação não existe, mesmo sendo extremamente evidente.
Aqui em Swansea, segunda maior cidade de Gales, esse tipo de loucura parece ter seu lugar: o alvo do ódio, em geral os poloneses e os árabes. Comentários acusando os “poles” (Polacos) de serem “bandidos” e “parasitas” são recorrentes no maior jornal da região, o South Wales Evening Post - mesmo quando a história não os envolve. Nas proximidades da mesquita de Swansea, é ocasional ver pessoas bradando mensagens de ódio contra os “infiéis”, mas ao contrário do que o senso comum possa ditar, não são os muçulmanos a berrar. Os “infiéis” e “hereges” que tem que “temer” nesse caso são os imigrantes árabes e africanos que vivem nas redondezas.
A Europa abunda em xenofobia. Por todo o Reino Unido, grupos como a UKIP e Britain First ganham destaque - nas ultimas eleições, a UKIP teve espantosos 3,8 milhões de votos, 12,6% dos votos. Na França, o papel de difundir o ódio contra imigrantes e estrangeiros cabe à Frente Nacional, de Jean-Marie Le Pen (que disse que a solução para a imigração era “uma visita do senhor Ebola”). Na Alemanha, o boi se chama Pegida. Na Espanha, grupos como Democracia Nacional, España 2000 e Plataforma per Catalunya vivem do discurso de “proteção da identidade nacional” e “Espanha para espanhóis” (ou Catalunha para catalões).
Entre as vítimas recorrentes de descriminação, destacam-se os ciganos, árabes, africanos e latinos. No caso dos primeiros, o preconceito ainda é visto oficialmente como justificado. Enquanto crimes cometidos por estas minorias são desproporcionalmente repercutidos, quando são vitimas costumam ser ignoradas e muitos ataques são “justificados” como “vingança”. Entre Dezembro de 2014 e janeiro deste ano, três mesquitas foram alvo de incêndios na Suécia. Após o ataque a revista Charlie Hebdo, no começo do ano, mesquitas foram alvo de ataques com granadas, e lojas de kebab foram explodidas. Em 2011, após uma garota declarar ter sido estuprada por ciganos, um acampamento cigano em Turim foi incendiado - pouco depois, a garota disse ter inventado a história, mas muitos ainda viram o ataque como “justo”.
É de se perguntar a que grau chega a violência contra imigrantes no Brasil, dado que não é noticiado. O que dá para saber é que nossos xenófobos não primam pelo conhecimento geográfico. No auge da histeria quanto ao Ebola, corria pelas redes sociais a “notícia” de que os imigrantes do Haiti, um país caribenho, trariam a doença para o Brasil. Doença típica do continente africano. Mais recentemente, alguns comentaristas exaltados se preocupavam com a possibilidade de militantes do Boko Haram (uma milícia extremista islâmica da África Subsaariana) estarem entre os haitianos, ignorando que o Haiti é um país de imensa maioria católica e não fica na Africa.
De forma similar, os refugiados de zonas de conflito no oriente médio e na África são acusados de serem parte dos grupos do qual estão fugindo. Enquanto isso, na África do Sul, uma onda de violência contra imigrantes vindos do Zimbábue e de Moçambique tem tomado o país e imigrantes tem sido forçados a se isolar em campos de refugiados. Para os xenófobos da África do Sul, os imigrantes do norte são “violentos, incultos, e só querem viver das benesses do estado”. Soa familiar?
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Sobre consciência
POR CAROLINA PETERS
Quando eu cursava a pré-escola em uma escola pedagogicamente progressista em Joinville - das poucas, talvez a única naquela época - montamos uma peça sobre a escravatura. A professora montou. Nós encenamos.
Tínhamos por volta dos cinco ou seis anos. Lembro que houve sorteio para os papéis mais disputados: a saber, duas crianças para simular apanhar no tronco. Em uma peça sem falas, eram o papel que permitia maior expressão. A mãe de um amigo, dona de uma farmácia de manipulação, forneceu tinta hipoalergênica para que nos tornássemos todos pretos por uma noite. Quase todos.
Não houve concorrência para interpretar o casal de sinhôs, mas lembro da insistência dos pretendentes ao cargo. Apesar da pouca idade e discernimento, esse episódio me marcou porque foi uma pessoa muito próxima a mais insistente. Me entristeceu.
De forma geral a turma se empolgou com a perspectiva de representar numa pele de outro. Não havia nenhuma criança negra em nossa turma, de cerca de 20 alunos. Pareceu para alguém - para as coordenadoras pedagógicas, professoras, possivelmente para os pais - uma ótima ideia. Hoje a cena me parece simplesmente absurda e as fotos em alguma medida me constrangem.
Será que ao invés da cenografia e caracterização, não seria interessante uma experiência, um contato com a história de privação de liberdade a que submetemos humanos como nós, em que fossemos nós mesmos, e não um outro, tão distante? A escravidão parece um evento distante na linha do tempo pra quem chegou à liberdade 300 anos antes. Mas pra quem viveu, foi só outro dia.
Eu concordo com o raciocínio de Chico Buarque acerca da população brasileira altamente miscigenada, mas discordo de sua conclusão. O racismo independe da genética. É construído histórica e socialmente. O segurança do shopping e a polícia sabem bem distinguir quem é branco e quem se enquadra na "cor: padrão" do procedimento policial de reconhecimento de suspeitos.
Por que cotas? Por que feriado? Por que ações afirmativas estão muito longe do racismo?
A "consciência branca" não é necessariamente um movimento fascista organizado. É a tranquilidade que alguns de nós, por termos nascido com determinado fenótipo, temos de que podemos chegar em quase qualquer lugar que quisermos. De que, apesar da reserva de vagas, nosso acesso aos melhores cursos das melhores universidades; e posteriormente aos melhores postos de trabalho, é provável. É termos sido crianças de seis anos que, apesar de representar escravos, nunca podaram seus sonhos de "quando crescer", ainda que a vida tenha sido bem diferente das aspirações.
Consciência negra, porque a vida de um jovem negro vale tanto quanto a minha. Porque uma mulher negra ganha em média 40% do que ganha um homem branco no desempenho da mesma função, segundo estudo do IBGE. Porque uma criança negra também pode sonhar ser o que quiser.
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
“i”- “di”- “o” - “ta”
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
A torcedora do Grêmio que chamou o goleiro Aranha de macaco é racista. Ponto final. É um fato captado pelas câmaras de televisão e não permite atenuantes. Não permite? Como sempre repito, no Brasil tudo o que é proibido é moderamente tolerado. E o caso ganhou contornos ridículos, porque houve muita gente a tentar “branquear” (a palavra é proposital) a imagem da moça.
Ora, há pessoas a dizer que, afinal, ela não é tão racista. Tive mesmo o desprazer de encontrar uma pessoa - torcedora do Grêmio, mas supostamente esclarecida - a defender que não foi um ato de racismo, mas um arroubo da juventude. É um daqueles absurdos que só se respondem com outro absurdo. E apliquei a Lei de Godwin (se não sabe o que é, a Wikipedia traz um verbete) para acabar logo com a discussão.
O gesto da moça não tem a ver com a idade ou o calor do momento. É racismo. É ignóbil. É escroto. É só olhar para a foto - essa que publico aqui - e ver que ofender o goleiro foi uma questão de escolha. Enquanto a moça se esguela a repetir a palavra “ma”-”ca”-”co”, a loira do lado, que parece ter a mesma idade, permanece em silêncio. Aliás, sem ser um especialista em leitura de feições, parece que está incomodada.
Mas o absurdo só tende a piorar. E não é que tem gente da imprensa à espera de um encontro entre Aranha e a torcedora racista? Mas a ideia não é discutir o tema racismo de forma séria. O que se pretende é produzir um espetáculo, levantar as audiências. Uma música dramática, uma lagriminha no canto do olho, um abraço entre o goleiro e a torcedora. E pronto. O Brasil chora com a reconciliação. Não há mais racismo.
O bom nesse episódio é que Aranha não topou. Porque há o risco - ridículo, volto a repetir - de se desenhar um quadro invertido. A mocinha ainda acaba por se tornar heroína. E, se bobear, o goleiro ainda acaba virando o vilão dessa história. Enfim, mantenho a minha posição de primeira hora: aos racistas, sejam mocinhas simpáticas ou não, o rigor da lei. Sem contemplações.
É como diz o velho deitado: “i”- “di”- “o” - “ta”.
quinta-feira, 1 de maio de 2014
Yes, nós temos bananas!
POR CLÓVIS GRUNER
Na mesma semana em que a hashtag #somostodosmacacos viralizou
nas redes sociais, em reação a atitude de um torcedor espanhol que jogou uma banana para o
jogador brasileiro Daniel Alves; o juiz Marcelo Matias Pereira, da 10ª Vara Criminal da Justiça do
Estado de São Paulo, inocentou o humorista Danilo Gentili, acusado de
racismo por ter, no Twitter, chamado um internauta negro, Thiago Ribeiro, de “macaco”
e lhe oferecido uma banana, conclamando seus seguidores a fazer o mesmo. A
alegação do magistrado, de que Gentili, mesmo tratando o internauta agressivamente
não pretendia ofendê-lo, tendo apenas “a intenção de fazer rir”, parece contrastar
com a onda de indignação que varreu a internet em solidariedade ao jogador do
Barcelona.
Mas a apenas aparente contradição revela a lógica pervertida
da maioria dos repentinamente convertidos ao ideário anti-racista, bem como a
perversão da trajetória de luta contra o racismo no Brasil. Em outra ocasião,
tratei do humor dito “politicamente incorreto”, do qual Danilo Gentili é
um dos principais expoentes, a reforçar diuturnamente nossos muitos
preconceitos; não pretendo voltar ao assunto. Mas a absolvição do humorista,
acusado de praticar justamente aquilo que inúmeros internautas, entre eles uma
variedade de celebridades e subcelebridades, tanto condenaram – chamar negro de
macaco e oferecer-lhe uma banana – sem que absolutamente nenhum deles manifestasse
mesmo um esboço de repúdio, nem agora nem na ocasião da agressão, é reveladora.
O silêncio tácito e cúmplice reforça a impressão que a solidariedade
em rede deveu-se mais aos interesses do marketing de oportunidade que,
necessariamente, ao engajamento no combate às muitas formas de racismo que
grassam no país. Não bastasse a atitude de Neymar ter sido fruto de uma “sacada
publicitária” da agência Loducca, e não um gesto espontâneo de indignação, o oportunismo de Luciano Huck conseguiu lucrar com um problema delicado e
grave, que afeta a vida de milhares de brasileiros – mas certamente não a dele –
vendendo pela bagatela de 69 dinheiros as camisetas da campanha.
Em jogo estava muito mais a imagem que muitos dos
protagonistas quiseram projetar de si do que, necessariamente, a repulsa contra
um racismo que, é bastante provável, a maioria deles
sequer admita existir. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que o elenco de
rostos a exibir ou comer bananas era majoritariamente branco. Gente que faz
questão de manter uma calculada indiferença quando o racismo denunciado
nas redes sociais à preço de banana se manifesta não contra um jogador de time europeu, mas afeta
indivíduos anônimos, submetidos cotidianamente às muitas formas de
violência física e simbólica que o caracterizam – como ser constantemente vítima da violência policial ou chamado de macaco por uma subcelebridade no Twitter. Entre a
realidade e o espetáculo, celebridades e subcelebridades preferiram, uma vez
mais, o espetáculo. Não deixa de ser coerente.
REFORÇAR O ESTEREÓTIPO – Desde o começo a campanha me
incomodou. Desconfiava do excesso de boas intenções, da rapidez com que a
denúncia tomou as redes sociais. Para além de todo oportunismo, do bom mocismo de
fachada e de outros “ismos”, achei-a bizarra pelo simples
fato de reforçar um lugar comum do discurso racista. Afinal,
o ideal de todo discurso e gesto que se pretendem críticos não deveria ser,
justamente, confrontar o racismo desconstruindo seus estereótipos, ao invés de
reafirmá-los, mesmo que na base da boa intenção?
O ato falho – ou talvez nem tão falho
– reforçou, em milhares de retweets e compartilhamentos, um comportamento e um
discurso comuns no tratamento dispensado ao negros e demais “minorias”:
piadas ofensivas; comentários e atitudes estigmatizantes; salários
diferenciados; humilhações públicas; anúncios de emprego a pedir “pessoas de
boa aparência”; olhares oblíquos. Particularmente no caso do racismo, o uso
recorrente da imagem do “macaco” reafirma um estigma que desumaniza
negros e negras: subjacente a ela está o discurso que lhes atribui um atavismo
incontornável, com toda a carga de inferiorização – física, psíquica,
intelectual, moral, etc... – que isto implica. A comparação de negros a macacos,
pouco importa o contexto em que ela aparece e as intenções que a motivam, é racista.
Ela reproduz estigmas, há até pouco tempo considerados científicos e hoje presentes
no chamado senso comum, reiterados principalmente pelas linguagens midiáticas e
fortemente assentados em nosso imaginário e percepções de mundo.
Além de histórica e moralmente ofensiva, a aproximação despolitiza décadas de luta contra o racismo, tratando-o como
coisa que se resolve com alguns tweets e outros tantos likes; um espetáculo,
enfim. E é também significativo que algumas das vozes mais autorizadas entre as
lideranças negras tenham, desde o primeiro momento, rechaçado-a. Isso não
significa conferir aos negros o monopólio do discurso anti-racista,
desautorizando quem não o é de denunciar o preconceito e a discriminação: fosse
isso e eu, homem, branco e hetero, não poderia manifestar-me contra o racismo,
o machismo e a homofobia, por exemplo, nem solidarizar-me com as muitas
manifestações políticas que visam, justamente, combatê-los.
Por outro lado, há determinadas experiências impossíveis de
serem narradas por mim que, homem, branco e hetero, nunca sofri nem senti os
efeitos deletérios da violência discriminatória. Dito de outra forma, posso
manifestar minha solidariedade, mas jamais poderei falar pelo outro: a empatia pelo
sofrimento alheio não me autoriza a falar em outro nome se não em meu próprio. As
celebridades, subcelebridades e seus seguidores que se imaginaram macacos e
exibiram suas bananas se equivocaram ao imaginar que o podiam e em tentar traduzir
num gesto despolitizado e vazio séculos de humilhação. Além, claro, de vender
camisetas.
sexta-feira, 18 de outubro de 2013
Apartheid, a gente vê por aqui
POR CLÓVIS GRUNER
Não estou em Joinville para saber da repercussão – se houve –
da nota publicada na edição de ontem (17/10), na coluna “Livre Mercado”, do
jornalista Claudio Loetz. Nela, o vice-presidente da Associação Brasileira de
Recursos Humanos de Santa Catarina (ABRH/SC), Pedro Luiz Pereira, define o
perfil ideal do trabalhador joinvilense:
“Em Joinville, considerando-se todos os tipos e portes de
empresas, há vagas em aberto para aproximadamente 7 mil trabalhadores. A
estimativa é do vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos em
Santa Catarina (ABRH-SC), Pedro Luiz Pereira. O perfil ideal do trabalhador
procurado é homem, branco, de 25 a 35 anos…”
Não é meu propósito julgar as razões do jornalista para
publicar tal declaração sem, ao menos, problematizar seu teor. Trabalhei com
Claudio Loetz há um par de décadas – sentávamos a uma mesa de distância na
antiga redação de “A Notícia”, quando ainda batucávamos as hoje anacrônicas Remingtons.
Enfim, sei de sua competência e retidão profissional; ele sabe o que escreveu e
tenho certeza que tem igualmente consciência de suas implicações. Mas nunca é
demais lembrar que a tal “objetividade jornalística” pode ser uma armadilha
para quem escreve, mas às vezes também o é para quem concede a entrevista.
No seu texto, Felipe Silveira já fez as devidas
ponderações desde o ponto de vista do jornalismo. Subscrevo tudo o que disse e,
como ele, espero do jornal, do colunista mas, principalmente do autor da declaração,
algum tipo de explicação – embora reconheça que nada, absolutamente nada do que
ele diga irá desfazer o mal estar, nem tampouco mudar o quadro que sua fala tão
bem sintetiza: o de que o racismo e o machismo são parte da cultura empresarial.
Disso decorre que a aspirada igualdade de condições no mercado de trabalho tem
limites muito claros e definidos: não é todo mundo que pode ocupar qualquer
cargo, porque em se tratando dos empregadores joinvilenses, boa formação
técnica e experiência profissional não são critérios suficiente.
Se já sabíamos que todos são iguais, mas uns são mais
iguais que outros, a declaração de Pedro Luiz Pereira pinta em tons mais
berrantes esta realidade. Não se trata, ao menos em Joinville, de convivermos
com o fato de que algumas funções de destaque dentro dos organogramas
empresariais sejam de acesso exclusivo aos homens brancos (e adultos); o
vice-presidente da ABRH nos diz, com todas as letras, que dependendo do empregador
a simples aspiração a um posto de trabalho, independente do cargo, é exclusiva
de homens brancos e adultos.
UMA INCÔMODA INVISIBILIDADE – Mas se a nota provocou
merecida indignação, a afirmação não é uma surpresa. Trata-se de uma
invisibilidade que não é recente: basta revisar a historiografia local para
constatar a ausência do negro e das mulheres na história da cidade. Se é
compreensível – embora não necessariamente justificável – esta falta naqueles
trabalhos de cunho mais memorialístico, não se pode dizer o mesmo de um
Apolinário Ternes, cujo trabalho sempre alimentou a pretensão de ser uma
alternativa aos textos seminais do “seo” Adolfo e da “dona” Ely, e que teve
acesso privilegiado às fontes documentais da história local. As mesmas fontes
de que se valeram historiadores e historiadoras que, mais recentemente, vem
empreendendo um esforço considerável para mostrar que não apenas de homens
brancos e adultos se fez a nossa história – e no caso em pauta, lembro e
menciono especialmente os trabalhos de Denise da Luz e Janine Gomes da Silva.
Se há ainda quem coloque em dúvida a existência dos preconceitos
de gênero e étnico na cidade, faça as contas: quantas mulheres estão na Câmara
de Vereadores ou na diretoria da ACIJ? Mesmo morando em Curitiba, soube dos muitos
comentários machistas feitos sobre Marinete Merss ao longo da gestão do ex-prefeito
Carlito Merss, tudo porque ela nunca se resignou a ocupar o lugar que compete às “grandes
mulheres”: ficar sempre à sombra dos “grandes homens”. E o que falar dos dois
jogadores do JEC, constrangidos a serem revistados pela polícia porque um
delegado achou-os em atitude suspeita? Afinal, eram dois negros com dinheiro,
andando de táxi e jantando em um restaurante onde, assim como no mercado de
trabalho, a entrada é franqueada principalmente para homens brancos. E se menciono
aqui apenas aqueles exemplos mais claros e óbvios, não ignoro que a realidade é
tão ou mais dura no que um amigo chamou de “Soweto catarinense”.
Tenho certeza que não faltará quem defenda ou justifique a
fala do vice-presidente da ABRH/SC apelando à velha falácia de que ele apenas “expressou
a realidade”. Ou pior: haverá quem, como no texto do Felipe Cardoso, publicado aqui no Chuva, argumentará recorrendo a números: se os negros estão em minoria
quantitativa, dirão, nada mais “natural” que os empregadores privilegiem os
brancos. É uma escolha. Mas ambos os argumentos aproximam-se daqueles
utilizados pela maioria dos alemães quando, há quase um século, o Reich decidiu
pela perseguição a outras “minorias quantitativas”, judeus principalmente. É a
banalidade do mal, já nos ensinou Hannah Arendt, que fomenta a indiferença; e é
a indiferença que faz florescer e legitima a intolerância, o preconceito e a
violência.
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
É o contexto, estúpido!
POR CLÓVIS GRUNER
Começo com uma pergunta: quando foi a última vez que você leu um texto de autor
branco reivindicando respeito e visibilidade ao seu grupo ou etnia? Eu nunca li e não me espantaria
se você também não. Porque se trata de algo desnecessário. Social e historicamente, aquilo que convencionalmente chamamos de “realidade”
foi construído com o propósito de reafirmar, constante e veementemente, a
superioridade e a naturalidade de ser branco. Da linguagem cotidiana aos meios
de comunicação; da ideia de beleza aos currículos escolares; tudo ou quase tudo
a nossa volta contribuiu e contribui para forjar um imaginário onde o natural é
ser alvo e europeu. É cômodo e fácil. E se você for também homem e heterossexual, aí é mel na chupeta.
Não é preciso ir longe. Cidade dos muitos monumentos étnicos
- há praças e parques para tudo e para todos em Curitiba -, a Praça Zumbi dos
Palmares, homenagem à “contribuição africana” na construção do estado e da
capital, fica em um bairro periférico e nem mesmo é parte do roteiro turístico.
Aliás, muitos curitibanos sequer sabem da sua existência. Muito diferente das
praças, parques e monumentos dedicados aos japoneses, alemães, italianos,
ucranianos, poloneses, etc..., localizados em bairros ou regiões abastados e parte
do roteiro oficial da cidade.
Em Joinville não é diferente. Procurem nos
livros canônicos da história local – as centenas de páginas escritas por
Apolinário Ternes, por exemplo –, e os negros são uma incômoda ausência. Há até
pouco tempo se acreditava que não havia escravos na Colônia Dona Francisca,
baseando-se tal afirmação no fato de que os colonos que para cá vieram eram
proibidos por contrato de possuí-los. Foi preciso esperar o século XXI e o
trabalho minucioso e ousado de Denize Aparecida da Silva para nos darmos conta que não
possuir e não usar o trabalho escravo eram, afinal, coisas bem distintas.
E como é cômodo ser branco, é sempre desconfortável alguém ou algo
desestabilizar nossa condição. Foi o que aconteceu no final de
semana com o texto do Felipe Cardoso. O número de acessos e a enxurrada de
comentários falam por si. Bem como as inúmeras tentativas de desqualificar sua
argumentação: um leitor considerou a discussão “enfadonha”. Outros
tentaram diminuir seu argumento limitando o tema a algo regional e
demográfico. Exaltado, alguém chegou a afirmar que tal discussão só existe
porque os negros são “moda”, reproduzindo talvez inconscientemente (concedo-lhe
o benefício da ignorância) o mesmo discurso dos senhores de escravos. De
mercadoria à moda, a mentalidade mediana segue a mesma: os brancos continuam a
negar, do alto de sua arrogante supremacia, qualquer outro direito ao negro que
não o de resignar-se à sua condição de “coisa”.
O PRECONCEITO NOSSO DE CADA DIA – Os argumentos se
sustentaram principalmente em duas premissas. A primeira, de que no Sul negros
não são valorizados porque em menor número, diferente de estados como a Bahia,
por exemplo, caiu por terra quando constatado que, mesmo lá, onde são maioria,
eles continuam a ser, por paradoxal que pareça, minoria. A segunda não é mais
consistente. Trata-se de construções sociais e midiáticas fortemente assentadas
em nosso imaginário e em nossas percepções de mundo: acostumamo-nos a perceber
como bonito e bom o que é branco, e como feio e mal o negro, disseram. Não discordo.
Mas justamente porque se trata de construtos sociais e históricos é que tais
percepções devem ser denunciadas, combatidas e transformadas. Agarrar-se a elas
como se fossem naturais e imutáveis é, na melhor das hipóteses, estupidez. Afinal,
no passado também aceitávamos a escravidão como algo “natural”. E talvez ainda
a aceitássemos não fosse a coragem de alguns homens e mulheres, negros e
brancos, que acreditaram ser necessário e possível mudar isso.
Há algo fundamental nesta discussão que escapou ao debate
provocado pelo texto do Felipe. A noção de “minoria” não é apenas numérica –
nunca é demais lembrar que na África do Sul os negros eram em muito maior
número, o que não impediu o apartheid. Ela está ligada a um conjunto de fatores
que condicionam nossa maneira de ver, interpretar e estar no mundo. Exemplos abundam:
piadas ofensivas; comentários e atitudes estigmatizantes; salários diferenciados;
humilhações públicas; anúncios de emprego a pedir “pessoas de boa aparência”;
olhares oblíquos...
Há quem insista que “não somos racistas” apegando-se às
falácias de que negros não são a única minoria, e é a pobreza o grande mal a
ser combatido, como se fosse equivalente ser um imigrante europeu ou seu descendente e negro, em
um país aonde os últimos chegaram, em sua esmagadora maioria, como escravos. Ou que basta
reduzir os níveis de desigualdade econômica para banir os preconceitos étnicos
e raciais, quando insistimos em reproduzi-los sempre que afirmamos que “os
negros no Estado [de Santa Catarina] são minoria e não tiveram a mesma
importância dos europeus. Ponto!”. O que define e sustenta o preconceito
e, por consequência, justifica e legitima as minorias – negros, mulheres, gays, etc... – afirmarem
cotidianamente o direito de serem vistos e gritarem seu orgulho, não são as estatísticas demográficas ou as condições econômicas.
É o contexto, estúpido!
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
"Lincoln" e a luta por direitos
POR FERNANDA M. POMPERMAIER
Assisti no último final de semana o filme "Lincoln" e não pude deixar de relacionar o recorte do momento histórico relatado no filme com o momento em que vivemos no Brasil e no mundo com relação às lutas pelos direitos LGBT's.
O filme se passa em 1865, último ano do mandato de Abraham Lincoln como presidente dos Estados Unidos. Ele está no cargo desde 1861, ano do início da Guerra da Secessão. Uma guerra civil que aconteceu entre os estados do norte - União, e estados do sul - Confederados. O sul mais agrário com latifúndios e mão de obra escrava, o norte mais industrializado e com alguns estados "livres".
O presidente busca acabar com a guerra, unir o país e ao mesmo tempo aprovar na Câmara dos Deputados a 13a emenda à Constituição que oficialmente iria abolir a escravatura no país.
Para que a emenda seja aprovada, um deputado, branco, que há 30 anos luta pelos direitos dos negros precisa admitir, contra o seu desejo, que o objetivo da emenda não é afirmar que negros são iguais aos brancos. Mas que, como seres humanos eles devem ter assegurados direitos iguais frente à Constituição. Essa é uma manobra política que os republicanos promovem, inclusive na mídia, para convencer os escravistas a aprovarem a emenda.
Se parece muito com o tipo de manobra que precisa ser feita hoje no Congresso Nacional, intensamente manipulado por cristãos fundamentalistas e preconceituosos como Marco Feliciano ou Silas Malafaia, para que sejam convencidos a aprovarem direitos básicos ao grupo LGBT. É preciso que se afirme que as pessoas não precisam concordar com o estilo de vida do homossexual ou do travesti, (como se fossem necessárias suas aprovações), mas que homossexuais devem ter os mesmos direitos que heterossexuais. É preciso falar em tolerância, quando o próprio sentido da palavra tolerância traz em si embutida uma relação de superioridade. ("Eu sou melhor que você e tolero o seu comportamento). O que é absurdo.
E não acontece só no Brasil. O mundo todo está passando por mudanças em suas leis para garantir direitos a esse grupo tão marginalizado. Alguns países avançam mais rápido, como nosso vizinho Uruguai, outros mais lentamente, como a Rússia, com um presidente que instiga na população a violência contra os homossexuais. Mas o caminho da garantia de direitos ao grupo LGBT é um caminho sem volta. O preconceito uma vez quebrado na cabeça das pessoas não volta atrás. É apenas necessário esperar, respeitar o tempo da democracia, da discussão, da informação e o dia da igualdade fica cada vez mais próximo. É uma mudança cultural, e mudanças geram insegurança, tiram as pessoas das suas zonas de conforto. Mas eu acredito na capacidade de adaptação do ser humano, tenho certeza que vamos todos nos acostumar à essas novas famílias.
Em um momento do filme, Lincoln pergunta a alguns colegas de trabalho se eles acreditam que algumas pessoas nasceram no momento histórico errado. Imagino que ele se questionava se talvez não deveria ter nascido noutros tempos, se ele deveria mesmo estar fazendo parte daquele grupo de homens tão dividido, alguns tão preconceituosos, mas ainda assim com o poder de mudar o futuro de milhares de pessoas.
Eu particularmente acredito que ele estava no tempo certo. Acredito que são necessárias no mundo pessoas como ele, como Mandela, como a Madre Teresa entre inúmeros outros. Pessoas com empatia para enxergar o ser humano por trás da cor, da situação social ou da orientação sexual. Pessoas com coragem e inteligência para se expor em espaços coletivos, assumir seu apoio e lutar por causas como essa com serenidade e respeito.
Um dia olharemos para trás com vergonha por ter negado direitos ao grupo LGBT.
Da mesma forma como hoje nos envergonhamos da escravidão e do racismo.
quarta-feira, 5 de junho de 2013
Monteiro Lobato e o politicamente correto
POR CLÓVIS GRUNER
Com este mesmo título, três pesquisadores cariocas
publicaram, na última edição da revista Dados, artigo onde analisam a controvérsia
gerada em torno ao livro “Caçadas de Pedrinho”, em 2010, e as manifestações
racistas presentes na obra de Monteiro Lobato. As conclusões não chegam a ser
uma novidade para quem já leu o escritor paulista: seja em textos adultos –
como no romance “O presidente negro”, de 1926 –, em suas cartas ou nos
livros infantis, notadamente os do “Sítio do Pica Pau Amarelo”, Monteiro Lobato
não cansa de afirmar e reafirmar suas convicções racialistas, enaltecendo a
superioridade dos brancos ou acusando a inferioridade dos negros.
Os
indícios se espalham pela sua obra – nas alusões sempre pejorativas a Nastácia;
ou no epílogo de “O presidente negro”, onde a esterilização dos negros é
apresentada como um “manso ponto final étnico ao grupo que a ajudara [a raça
branca] a criar a América, mas com o qual não mais podia viver em comum” –, mas
marcaram igualmente sua trajetória pessoal. Lobato foi um ardoroso defensor da
eugenia e um entusiasta da Ku Klux Klan. Em carta ao médico e amigo Arthur
Neiva, um dos mais ativos membros da Sociedade Brasileira de Eugenia, ele
escreve que “país de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma
Kux-Klan, é país perdido para altos destinos. (...) Um dia se fará justiça ao
Klux Klan; tivéssemos ai [no Brasil; nesta época, Lobato vivia nos Estados
Unidos] uma defesa desta ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos
hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego,
e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.
Claro,
pode-se objetar que se tratava de um pensamento comum à época e que Lobato
pensava com as balizas intelectuais e morais do seu tempo. Mas é uma
verdade apenas parcial. Primeiro porque a própria eugenia e seu projeto de purificação
racial (eu = boa; genus = geração), embora tenha de fato seduzido governos e
intelectuais de diferentes orientações, nunca foi um consenso. No Brasil ela
foi combatida por, entre outros, Graça Aranha, Roquete Pinto e Lima Barreto,
escritor de quem Lobato, inclusive, editou “Vida e morte de M. J.
Gonzaga de Sá” em 1918. Além disso, ele não limitou sua militância racista à
eugenia, revelando-se um simpatizante entusiasmado da KKK, organização que nunca
foi conhecida pelas suas virtudes científicas.
Ora, não
causa espanto que Lobato tenha tratado as personagens negras não apenas como
subalternas socialmente, mas inferiores racialmente. Igualmente, não deveria
provocar estranheza que o Ministério da Educação acatasse pedido de verificação
dos conteúdos racistas em uma das obras do escritor, distribuída gratuitamente nas
escolas brasileiras como parte do Programa Nacional de Biblioteca na
Escola. Não deveria, mas causou. E como soe acontecer sempre que a direita se
mobiliza, o estranhamento justificou o escândalo, e o escândalo se sustentou em
uma mentira: a de que o governo federal estava querendo censurar Lobato. Nada
disso: nenhum dos dois pareceres encomendados a especialistas pede o banimento
ou censura da obra. Solicitam apenas que, além do treinamento dos professores
para usar em sala o livro, fosse inserido nele uma “contextualização crítica do
autor e da obra, a fim de informar o leitor sobre os estudos atuais e críticos
que discutem a presença de estereótipos na literatura, entre eles os raciais”.
Não adiantou, porque a gritaria seguiu seu rumo, desta vez acusando
o perigo de interferir em uma obra literária
sacrificando seu valor artístico em nome da “ideologia”. Interessante que o
mesmo livro motivo de tamanha controvérsia já trazia em suas reedições uma nota
explicando, em passagem onde Pedrinho organiza uma caçada, que a história foi escrita
em uma época onde os animais silvestres ainda não eram protegidos, nem a
onça-pintada estava ameaçada de extinção, e que tal prática hoje não é mais
aceita. Ou seja, os mesmos que consideravam inaceitável interferir na obra de Lobato
para “contextualizar” seu racismo, nada disseram quando se interferiu nela para
explicar a diferença entre as caçadas de ontem e sua proibição hoje. Claro, não
interessa a ninguém que uma criança negra se sinta humilhada ao ler passagens
pejorativas a respeito de suas origens, sua cultura e a cor da sua pele. Já os
sentimentos da onça...
MAS E DAÍ?, podem estar se perguntando alguns. Não acho que
o artigo mencionado vá reavivar a polêmica. No Brasil, a produção acadêmica raramente
pautou o debate público, porque a ela preferimos gente da inteligência e do
caráter de um Reinaldo Azevedo. Mas o imbróglio envolvendo “Caçadas de Pedrinho”
em 2010 é atualíssimo. Ele diz respeito a outro debate, travado principalmente
nas redes sociais e nas mídias audiovisuais, em especial a televisão. Me refiro
a oposição entre o que se convencionou chamar “politicamente correto” e “politicamente
incorreto”. Não tem sido incomum ler e ouvir adjetivações negativas sobre o
primeiro, como se a sua simples existência ameaçasse as liberdades de pensamento
e expressão. Será?
Toda generalização é perigosa, mas vou assumir o risco: ao
menos no Brasil, o politicamente incorreto tem servido aos fins mais pífios.
Ele tem sido reivindicado sempre que jornalistas, blogueiros, formadores de opinião,
artistas, intelectuais, humoristas, etc..., tentam justificar, defender e legitimar
o que consideram seu direito inalienável de agredir, desqualificar, ofender e humilhar
principalmente as chamadas minorias. Não, não são os brancos de classe média
alta, nem os homens heteros os alvos privilegiados do politicamente incorreto –
e quando acontece de o serem, as desculpas públicas vem a galope. Incapaz de
ultrapassar o chamado senso comum, de fazer-lhe a crítica, de expor seu
ridículo, o politicamente incorreto o reforça e reproduz atacando mulheres (as
feias, principalmente, que devem agradecer quando estupradas), negros, índios,
pobres, gays, deficientes e quem mais ele julgar inferior e incapaz de se
defender. O politicamente incorreto não é apenas preconceituoso, racista,
machista e homofóbico; ele é covarde.
E autoritário. Sim, porque o politicamente incorreto quer
continuar agredindo, ofendendo e humilhando sem ser contestado, acusando - vejam só! - de intolerância quem o contradiz. Para sua
desgraça, no entanto, os tempos são outros: estamos mais atentos a força das
palavras, ao que elas significam e produzem socialmente. Ninguém, ao menos
ninguém com um mínimo de bom senso (mas sempre há quem não o tem) levantará a
voz ou deslizará os dedos no teclado para calar quem quer que seja. Mas igualmente
não se aceita mais, resignadamente, como inevitável que se reafirmem
estereótipos que são a expressão de uma violência simbólica a perpetuar ódios
de classe, gênero e etnia, tão profundamente arraigados na nossa história. Ser politicamente
correto é chato? Que seja. Mas é melhor que ser politicamente um protofascista.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
Esta é a eleição do preconceito
POR CHARLES HENRIQUE VOOS
Agora que restam poucos dias para o 7 de outubro, posso dizer que esperava mais desta corrida para ocupar a cadeira do Prefeito. Poucas propostas novas surgiram. A maioria dos candidatos repete os seus discursos que conhecemos há anos, e outros repetem o que seus amigos de partido já falavam. Sensação de retrocesso é forte, e se aguça mais ainda ao ver a onda de ataques que muitos fazem a seus adversários na base do preconceito, e não pelas propostas.
A seguir, vamos tentar relatar, sem citar nomes (pois é um processo que não dá para identificar onde começa) alguns discursos preconceituosos que estão presentes nesta campanha em Joinville. Qualquer suposição é apenas para efeito de lógica e de didática.
Bem, ao invés de dizer: "não vote no candidato A, pois ele não tem uma proposta digna para a educação (por exemplo)", o candidato B (e seus cabos eleitorais) diz para não votar no A, devido ao fato de que defende a igualdade de gênero e mostra um beijo entre dois homens no horário eleitoral da TV.
O mesmo candidato A, que sofre preconceito do B, diz para não votar no C, considerando os escândalos de suposta infidelidade que teve anos atrás.
Este candidato C, que sofre preconceito do A, diz para não votar no D, pois supõe que ele é racista e maltrata os funcionários. Mas não sugere deixar de votar em D pelas suas propostas, ao seu ver, ruins e incompletas.
O candidato D, que já não sabe se sofre preconceito de um, de todos, ou de nenhum, diz para não votar no E por simplesmente não ter uma equipe qualificada. Puro bullying. Por sua vez, o E pede para suas equipes espalharem que o candidato B é ligado a segmentos religiosos e que isto não combina com política.
Pessoalmente não acontece nenhuma acusação direta, tudo fica nas entrelinhas. Tenho medo dos próximos quatro anos da cidade de Joinville. Parece que as ideias estão fora do lugar, e o lugar está fora das ideias. A cidade está sedenta por cabeças pensantes, mas só temos bocas fofoqueiras.
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