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quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Sobre consciência

POR CAROLINA PETERS

Quando eu cursava a pré-escola em uma escola pedagogicamente progressista em Joinville - das poucas, talvez a única naquela época - montamos uma peça sobre a escravatura. A professora montou. Nós encenamos.

Tínhamos por volta dos cinco ou seis anos. Lembro que houve sorteio para os papéis mais disputados: a saber, duas crianças para simular apanhar no tronco. Em uma peça sem falas, eram o papel que permitia maior expressão. A mãe de um amigo, dona de uma farmácia de manipulação, forneceu tinta hipoalergênica para que nos tornássemos todos pretos por uma noite. Quase todos. 

Não houve concorrência para interpretar o casal de sinhôs, mas lembro da insistência dos pretendentes ao cargo. Apesar da pouca idade e discernimento, esse episódio me marcou porque foi uma pessoa muito próxima a mais insistente. Me entristeceu. 

De forma geral a turma se empolgou com a perspectiva de representar numa pele de outro. Não havia nenhuma criança negra em nossa turma, de cerca de 20 alunos. Pareceu para alguém - para as coordenadoras pedagógicas, professoras, possivelmente para os pais - uma ótima ideia. Hoje a cena me parece simplesmente absurda e as fotos em alguma medida me constrangem.

Será que ao invés da cenografia e caracterização, não seria interessante uma experiência, um contato com a história de privação de liberdade a que submetemos humanos como nós, em que fossemos nós mesmos, e não um outro, tão distante? A escravidão parece um evento distante na linha do tempo pra quem chegou à liberdade 300 anos antes. Mas pra quem viveu, foi só outro dia.

Eu concordo com o raciocínio de Chico Buarque acerca da população brasileira altamente miscigenada, mas discordo de sua conclusão. O racismo independe da genética. É construído histórica e socialmente. O segurança do shopping e a polícia sabem bem distinguir quem é branco e quem se enquadra na "cor: padrão" do procedimento policial de reconhecimento de suspeitos.

Por que cotas? Por que feriado? Por que ações afirmativas estão muito longe do racismo?

A "consciência branca" não é necessariamente um movimento fascista organizado. É a tranquilidade que alguns de nós, por termos nascido com determinado fenótipo, temos de que podemos chegar em quase qualquer lugar que quisermos. De que, apesar da reserva de vagas, nosso acesso aos melhores cursos das melhores universidades; e posteriormente aos melhores postos de trabalho, é provável. É termos sido crianças de seis anos que, apesar de representar escravos, nunca podaram seus sonhos de "quando crescer", ainda que a vida tenha sido bem diferente das aspirações.

Consciência negra, porque a vida de um jovem negro vale tanto quanto a minha. Porque uma mulher negra ganha em média 40% do que ganha um homem branco no desempenho da mesma função, segundo estudo do IBGE. Porque uma criança negra também pode sonhar ser o que quiser.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

De que lado você samba?

POR CAROLINA PETERS

Em julho do ano passado, um amigo que estava em Londres me envia a imagem ao lado por email. Uma campanha produzida pelo periódico The Economist e veiculada amplamente em espaços como estações de metrô.

Where do you stand? Em bom português: de que lado você samba? Com uma imagem angelical de Angela Merkel, a campanha visava frear o avanço das manifestações que aconteciam na Europa contra a intervenção da União Europeia, protagonizada pela Alemanha, nas economias locais. Vale comentar que, ao mesmo tempo em que essa campanha midiática tomava corpo, as primeiras análises sobre a recessão que rondava a Alemanha já começavam a surgir.

Lembrando disso, não me estranha o apoio do The Economist ao candidato Aécio Neves. Ou antes, a Armínio Fraga e sua trupe.

Me estranha menos ainda, diante da declaração recente do candidato noticiada pelo Valor Econômico: o Mercosul está ultrapassado, "anacrônico", e é necessário repensar em "áreas de livre comércio". Ora, quer coisa mais anacrônica e furada que a Alca?

A América Latina, por outro lado, compra metade de nossos manufaturados. O Mercosul é responsável por 30%. O BNDES financia diversas obras na região e é assim que aumenta seu lucro. O fortalecimento da economia brasileira, da nossa credibilidade (pra não falar do nosso peso político lá fora), têm muito a ver com o fortalecimento da integração regional. 
Vamos falar de economia?

Criou-se há tempos um mito em torno da política econômica -- e da política, de forma geral -- que afirma que tudo se resolve com gestão, impessoal e mecânica. Economia depende de escolhas, e quem entende e influencia nos rumos da economia mundia sabe bem: de que lado? Há possibilidades diversas de estabilizá-la e fazer crescer. Pode-se investir em produção ou especulação, criar empregos e fortalecer o mercado interno, ou adotar uma política cambial mais maleável. Concentrar os lucros ou distribuir renda. 

Em terra (ou tela?) de comentários truculentos, e acusações de desinformação, é pedir demais que aqueles que pagam de intelectuais repetindo comentários aleatórios sobre o PIB e a inflação alta (alta mesmo?) saibam do que estão falando? 

A economista Leda Paulani, professora da USP e uma intelectual que respeito muito, escreveu essa semana no blog da Boitempo Editorial sobre o Terrorismo Econômico, narrativa que mais uma vez ronda as presidenciais brasileiras. Recomendo profundamente a leitura, junto com o melhor debate deste segundo turno: Guido Mantega e Armínio Fraga no ringue de Mirian Leitão. O link na íntegra está aqui. Aliás, alguém concorda com Fraga que o dinheiro emprestado do FMI foi "barato"? (palavras dele).

A política econômica do governo Dilma está longe dos meus sonhos, mas Armínio Fraga é o bicho papão da minha infância. Eu voto pelo Mercosul.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Sul e o Norte

POR CAROLINA PETERS

O ódio é, acima de tudo, burro.
Quando mudei para São Paulo, aos 15 anos, conseguir uma informação para chegar do ponto A ao B era quase impossível. Começa que já sou meio desorientada mesmo; que não conhecia nadica de nada da cidade; que minha cartografia catarinense não conseguia ainda dimensionar as distâncias paulistanas. E acaba que eu falava cantadinho. Antes que eu terminasse o pedido, vinha a pergunta:

-- Mas você não é daqui, né?

Eu respondia que não. E como o olhar insistia em mais informações, dizia que vinha de Santa Catarina. Floripa? Não, Joinville. Ah, mas você não fala como gaúcho.. Claro que não.

Depois da mostra de ignorância geográfica, vinha uma enxurrada de elogios às belas praias, às gentes bonitas e educadas, a qualidade de vida. Ao pedacinho de Europa, surrada e maltrapilha, mas Europa, que cultivamos como se existisse no sul do país. Mas por que razão? Por que deixar Santa Catarina?

O bom de São Paulo é que as placas são várias e não sabem ainda falar.

Por vezes, um mesmo que elogiava o meu estado vinha confessar que os migrantes do Norte eram a grande mazela de São Paulo. Aprendi que em SP, ser nordestino é xingamento, daqueles mais variados. “Baiano”, por exemplo, pode querer dizer tanto cafona quanto sujo ou mal educado. A xenofobia nunca é arbitrária ou incondicional. Alguns de fora valem menos, outros, valem mais.

Na minha primeira semana em Fortaleza, folheando o jornal, me deparo com o comentário de uma leitora sobre a sondagem eleitoral no estado do Ceará, que dava à presidenta Dilma ampla vantagem sobre Aécio e Campos - era maio: “Depois há quem reclame de ouvir dos habitantes do Sul e Sudeste que nós, nordestinos, não sabemos votar.”

Gosto muito de uma gravura feita pelo pintor uruguaio Joaquín Torres García em 1943, um mapa invertido da América do Sul. “El Sur es el Norte” é um manifesto de independência artística das escolas europeias e uma afirmação de humanidade dos habitantes do sul do globo. Meu Norte é o Sul: Uma noção que me orienta, um nacionalismo que é libertador, que busca romper com os padrões hegemônicos e produzir seus próprios paradigmas. Que não é xenófobo ou excludente. O oposto do sentimento separatista com o qual convivi em Santa Catarina e São Paulo.

Pensei em um livro que li no início desse ano, relatos de uma jornalista portuguesa que cobriu os dias que antecederam a queda do ditador Hosni Mubarak no Egito em janeiro de 2011. Lá pelas tantas, ao comentar o tratamento que a imprensa internacional dispensava ao levante popular e os posicionamentos de diversos chefes de Estado, ela escreve “para o ocidente, a vida dos outros povos pode sempre esperar”.

O Nordeste cresceu nos governos do PT. Os programas de distribuição de renda movimentaram a economia em pequenas e grandes cidades; o aumento do salário aumento o poder de compra. A economia nordestina cresce mais que a média do Brasil. O nordestino que reelege Dilma o faz por convicção e reflexão, não por ignorância.

O ódio aos homossexuais, aos negros, a misoginia, marcaram o primeiro turno nos debates. Proferidos de maneira explícita por dois candidatos menores que não valem citação, encheram a bola de Aécio, para quem fizeram linha auxiliar, colaborando para levar o tucano ao segundo turno. Apesar do desempenho pífio presidencial, o ódio mais caricato mostrou força nas disputas proporcionais e na disputa pela vaga do senado nos estados.

Na segunda volta, toma conta o ódio de classe que separa o Norte e Nordeste explorados do Sul e Sudeste beneficiários.

Este, ao menos, tem sofrido consecutivas derrotas. Pesquisas recentes e conversas entreouvidas no transporte público indicam que a percepção de que a pobreza é resultado da falta de oportunidade e da desigualdade social, não da preguiça e da vadiagem, como se dizia, tem crescido. Espero que a tendência siga.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Essa Gente de Bem.

POR CAROLINA PETERS

Uma revoada de homofóbicos.
Vamos fazer as contas das últimas semanas. Um incêndio criminoso num CTG (Centro de Tradições Gaúchas) no Rio Grande do Sul, dias antes do local sediar a celebração da união de um casal de lésbicas. Uma travesti é espancada e atirada do alto de um caminhão em movimento em Caçapava, São Paulo. A notícia do caso, absolutamente desrespeitosa, a trata por o travesti*, anônimo -- mais uma mostra do péssimo jornalismo que acomete o país.

O caso que possivelmente contou com maior repercussão pela brutalidade e pelo desenrolar, é do assassinado do jovem goiano João Donati. Crime de brutalidade sem tamanho, João foi esquartejado e, para não deixar dúvidas da motivação do crime, o assassino deixou em sua boca um bilhete: vamos acabar com essa raça. Alguns -- os que certamente iam mal nas aulas de interpretação de texto na escola -- podem afirmar que o pronome poderia indicar muitas outras características. Mas os mais espertinhos sabem que "essa raça" se refere aos homossexuais. Os gays. Vi-a-do. B-I-C-H-A.

Parecia que diante de tamanho horror, uma ficha caiu. O termo homofobia virou palavra popular na pauta jornalística. Até que o assassino confessou. E de repente, tudo não passou mais de uma briguinha de amor. Como se um homem que admite ter sentido atração por outro homem, e depois assassina o menino de forma cruel, buscando apagar sua existência desmantelando seu corpo, e deixa tão clara mensagem, talvez até como forma de exorcizar os próprios fantasmas, não pudesse ser taxado de homofóbico.

E o caminho continua livre para a "gente de bem" que defende publicamente no horário gratuito "a vida e os valores da família", mas só da família que garanta o controle social, a propriedade. E a vida de quem interessa.

Fobia: aversão irracional, desproporcional.

Mas a homofobia não é somente a que choca os distraídos. Ao rés-do-chão e em doses mais homeopáticas ela também agride e mata. A revoada de homofobia das "gaivotas" da torcida são-paulina, uma forma de escárnio contra os rivais corintianos, é mais um sintoma. A forma como a homo-afetividade é usada para diminuir um adversário ou antagonista escancara o quanto na nossa sociedade existem pessoas cuja vida vale menos. Cuja vida é descartável.

Há algumas semanas, o próprio Corinthians manifestou seu repúdio aos gritos homofóbicos por seus torcedores. Ainda é pouco, mas quando um dos maiores times do país adota essa postura, é um respiro para quem espera um futebol mais inclusivo, dentro de campo e nas arquibancadas. E também dos portões pra fora. Afinal, o futebol é extensão da vida dos brasileiros. Eu já entrei na campanha para que o meu Flamengo assuma a mesma postura.



*Uma breve nota de gramática: Travesti é uma palavra de gênero neutro. O artigo concordará com o gênero com o qual a pessoa travesti se identifica para si e para o mundo através de diversas linguagens, entre as quais a vestimenta. Dizemos A travesti para as travestis de identidade feminina (sexo biológico masculino, mas identidade de gênero feminina). Dizemos O travesti quando se trata de pessoa de identidade de gênero masculina, nascida com sexo biológico feminino.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O Estrangeiro e as Clandestinas


POR CAROLINA PETERS


A “Menina Zero” (M.O.).

Por esses dias eu lembrei uma história triste na qual há muito não pensava.

Era adolescente, época em que explodiu a onda dos Fotologs – uma espécie de instagram rudimentar, um tanto mais próxima dos blogs, que se iniciavam no mesmo período. Estudava em um colégio católico bastante tradicional, líamos Capricho, namorávamos “sério” e nunca falávamos sobre sexo. Começamos uma semana chuvosa com a notícia da morte de uma menina um ano mais velha que eu. Não a conheci pessoalmente nem lembro seu nome, mas era muito amiga de amigas minhas, o que tornou a morte mais próxima. O laudo oficial falava em “infecção generalizada”.

Foi uma história conturbada, daquelas que com o passar dos anos se tornam quase lendas urbanas e que nos dias que seguiram o velório levantou inúmeras conspirações pelos corredores. Diziam as amigas que ela tinha um namorado problemático, falavam em drogadição. Não sei quem era, se era mal sujeito, ou se não gostavam dele porque não fazia parte dos nossos círculos. O pai da menina morrera dias antes, um ataque cardíaco fulminante. Era jovem ainda, não devia ter cinquenta anos. No dia do enterro, o ex-namorado invadiu seu fotolog da menina e postou uma imagem de sapatinhos de tricô, daqueles de bebê. Os menos chegados e mais fofoqueiros que estiveram presentes no velório relataram um corpo inchado, sobretudo no abdome. E logo se espalhou da forma mais desonesta possível o rumor de que M.O. fizera um aborto.

Lembro da reação de minhas amigas – nossas amigas – negando a história, e achando o mais absurdo do mundo a difamação que sofria a morta. Para mim, ambos buscavam anular a existência daquela menina: os que a condenavam – e que foram cúmplices desse assassinato; e as que julgavam proteger, quando negavam a essa jovem mulher o direito da escolha e arbítrio sobre seu corpo. Mais uma camuflada na cifra dos abortos clandestinos no país.

Das poucas menções ao debate do aborto que me lembro nos tempos de colégio, nenhuma trazia dados, posições distintas, textos de apoio. Foram homens, párocos, professores de Ensino Religioso, que de maneira cretina passavam de raspão sobre o tema evitando polêmica; mas ideologicamente certeiros para carimbar a posição: o aborto é um crime contra a vida. No limite, ela(s) merecia(m) morrer?

E o que mais me instiga, já longe de Santa Catarina física e moralmente, era saber que essa menina, a amiga da minha amiga que estudava ali, na sala ao lado, é o ponto fora da curva na estatística alta de mortes decorrentes de abortamento no Brasil. Ela tinha todas as condições financeiras e acesso a equipamento hospitalar para recorrer a um procedimento seguro e anônimo. Quem sabe hoje estaria se formando na faculdade, aceitando um pedido de casamento. Planejando, agora sim, engravidar.

Quantas naquele colégios – nesses colégios tradicionais catarinenses – não deveriam ter feito um aborto? Ou pensado sobre isso num eventual atraso da menstruação? Distante, a morte me parece a consequência lógica de outra história do mesmo período, da menina que esperou o oitavo mês de gestação e uma consulta ginecológica forçada pela mãe – preocupada com a interrupção abrupta no ciclo menstrual da filha – para se declarar grávida.

Se o sexo deixa de existir quando não falamos dele, a vida não pode existir tampouco.

A “Mulher Zero”.
Jandira Magdalena dos Santos talvez agora seja não mais que um corpo carbonizado. Ela tinha o dinheiro (quase R$5mil) para abortar, mas esbarrou na clandestinidade e agora seu rosto estampa jornais e portais de notícia.

Jandira é uma das cerca de um milhão de mulheres brasileiras que decidem interromper a gestação. O número é impreciso devido à ilegalidade que impede uma pequisa mais aprofundada, mas há uns anos, pesquisadoras da UnB divulgaram um estudo interessante sobre o perfil dessas mulheres que optam por realizar um aborto são em sua maioria casadas, cristãs, têm mais de trinta anos. As cerca de um milhão de mulheres que abortamos no Brasil podemos ser eu, sua irmã, mãe, tia. Você.

Pode ser inclusive a vovó. E de quantas avós já ouvi histórias... Não há quem não conheça uma mulher que já fez um aborto. Mas acima da idade; das crenças pessoais; do relacionamento estável ou não; de já terem filhos ou não; das condições financeiras, o ponto em comum entre todas elas é a convicção de que têm o direito de ser mães. E como direito, essa é uma escolha delas, não do Estado ou de qualquer religião. A maternidade não é um karma, uma sina, mas uma escolha consciente que as mulheres tomamos. Porque somos sujeitos de nossa própria história. Porque somos gente.

O Estrangeiro.

Assistindo aos debates e ao horário eleitoral, me senti relendo O estrangeiro, de Albert Camus, em uma versão esteticamente pobre. Aos que nunca leram, ou que por ventura não tenham entendido o texto, se trata da história de um homem condenado à morte por não enlutar a mãe. O homem se torna réu pelo assassinato de um árabe, mas este não passa de um episódio secundário que dá corda à trama. A ação principal não é senão a sobreposição do código moral individual sobre o plano público, o qual deveria ser regido por um código autônomo de forma a garantir igualdade de julgamento a todos os indivíduos, independente de suas convicções íntimas – ou antes, as convicções de seus juízes.

O discurso obscurantista que criminaliza e demoniza a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) é um discurso que criminaliza unicamente as mulheres, como se sua gestação fosse fruto de autogênese. Que submete mesmo aquelas que passam por abortamentos espontâneos, em hospitais públicos e privados de primeira linha, a um atendimento vexatório, negligente. Humilhante. É o discurso que coage famílias simples de crianças estupradas a obrigar essas meninas a seguir com uma gravidez que seus pequenos corpos e mentes infantis não têm condições de gestar. Que dificulta o acesso de uma gestante ao aborto legal – previsto por lei – para que possa dar sequência a um tratamento de saúde emergencial. É um discurso de ódio, que faz das mulheres cidadãs de segunda categoria. O discurso que diz defender a “vida”, defende que nossa vida, a vida das mulheres, valha menos ou quase nada.

Que fique claro aos que se chocam com os vídeos enganosos que circulam pela rede: um feto formado vai nascer. Nossa defesa do aborto considera as semanas iniciais da gestação, entre 12ª e 14ª, conforme exemplos que temos pelo mundo. Enquanto o embrião ainda é dependente do corpo da mulher para sobreviver, ou seja, não tem existência autônoma. Aos curiosos em saber como se parece, sugiro esse link aqui.

Legalizar o aborto não é forçar ninguém a violar suas crenças pessoais. É tratar um grave problema de saúde pública que mata e mutila centenas de mulheres todos os anos, e assegurar dignidade e direito de escolha a todas nós.

"A fazedora de anjos", 1908: tríptico de Pedro Weingärtner, do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, retrata o aborto na virada do século XX. De perto é impressionante.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os plebiscitos e o Estado Laico


POR CAROLINA PETERS

Lembrou bem o Zé Baço: essa história de recomeço das eleições presidenciais não passa do desejo de alguns. “Com o andar do caminhão, as melancias se ajeitam” ele disse e, no limite, acrescento que desde o pleito passado esse desorganizar e reordenar das melancias se dá na boleia brasileira.

Nessa semana, até o 7 de setembro, movimentos sociais e organizações políticas colocarão na rua, nas escolas, universidades e bairros as urnas para o Plebiscito Popular pela Constituinte Exclusiva da Reforma Política. Essa mobilização que vem tomando corpo desde o ano passado visa dialogar com a população sobre as deficiências do nosso sistema político e apresentar um conjunto de propostas capazes de ampliar a democracia institucional, proporcionando mais espaços de participação popular e privilegiando o debate político-ideológico ao levantar, entre outras bandeiras, a proposta de fim do financiamento privado de campanhas; e colocando o dedo na ferida do fisiologismo questionando as coligações proporcionais.

É uma leitura com a qual eu concordo que a alta influência do poder econômico e a forma de distribuição do horário político gratuito têm cada vez mais esvaziado de política as disputas eleitorais, atribuindo sobretudo ao marketing o papel de consolidar a imagem de tal ou qual candidata (ou candidato) como o melhor gestor para a máquina pública.

No geral, entre as maiores candidaturas, que a mídia carinhosamente chama “principais” e às quais destina privilégios na cobertura jornalística – aquelas candidaturas que contam com maiores recursos financeiros e amplas coligações absolutamente heterogêneas – não há muita diferença. Nuances, talvez. Mas nem bem assumiram as candidaturas, Dilma, Aécio e então Campos reafirmaram seu compromisso sacrossanto com a manutenção do tripé macro-econômico. Em bom português: no limite, tudo fica como está. E a temerosa inflação continua a ser (des)controlada através da alta da taxa de juros, para alegria do capital especulativo, e a pequena produção agrícola familiar, que alimenta os brasileiros, continua sendo escanteada pelos latifúndios de soja e gado para exportação.

Ao mesmo tempo, enxergo outro movimento simultâneo no tabuleiro eleitoral: a volta de um debate mais ideológico à agenda política do país, protagonizado pela direita. A caricata figura do pastor Everaldo cumpre esse papel trazendo às claras uma linha que interessaria, por exemplo, ao PSDB, mas que os tucanos para buscar viabilizar a natimorta candidatura de Aécio não puderam assumir. Pautas que uma Marina Silva, com menor rejeição e inesperadamente recolocada no tabuleiro político pode abraçar sem pudor.

Os direitos das pessoas, de amar, de se relacionar e de crer, são dependentes do seu peso no jogo político. Um tuíde de Malafaia vale mais no jogo da vida do que eu e você. É a defesa de um Estado tão mínimo e privativo que atua somente no campo do privado, com preferência sobre os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas.

É certo que o pleito não se dá em esfera única, e por vezes nos atemos em demasiado à corrida presidencial e deixamos livres de reflexão os concorrentes ao legislativo. O que representa o aumento de 70% no número de pastores concorrentes ao cargo? A liberdade religiosa e de culto deve ser irrestrita, mas qual o limite entre o foro íntimo e a intervenção de determinada crença (com maior poder financeiro, não esqueçamos, pois as mães de santo não tem nem representação no Congresso Nacional e sequer o direito de crença respeitado, sofrendo com recorrente ações arbitrárias policiais em seus terreiros) na esfera politica? Qual o limite entre o direito legítimo e fundamental de expressão e solapar as indualidades por uma crença hegemônica, que conta com vergonhosas isenções fiscais e insumos financeiros do governo para a construção de empreendimentos de negócios – de fé, mas ainda assim, e mais absurdo, negócios? Aproveito e pontuo que a que chamamos Bancada Fundamentalista não atua somente no campo dos costumes, mas mantém relação orgânica com o setor do agronegócio.

Como eu falava no começo: o Plebiscito. Eu voto SIM pela reforma política.

Em tempo, antes que me julguem principista ou contraditória, não se leva a voto direitos individuais. Não se vota pela descriminalização do aborto ou pelo casamento civil igualitário. Se vota pela permissão ou não de doações de pessoas jurídicas a campanhas políticas. Se leva a plebiscito a proposta de desarmamento versus porte de armas. Se leva a plebiscito a reeleição (que aliás voltou recentemente a ser comentada como votação comprada no Congresso...).

É preciso voltar o debate às claras, dar espaço pras opiniões. Permitir espaço para o confronto público. Votar em ideias, não em figuras. Isso faz bem pra democracia.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Eduardo Campos: para além do ódio internético, que rumo toma a disputa eleitoral?

 POR CAROLINA PETERS

Pesquisa Datafolha registrada em 13/08/2014
Não dá nem tempo do corpo esfriar. Pauta se manipula quente. A Globo ainda enrolava a audiência para liberar a informação da morte do presidenciável Eduardo Campos quando na CNN analistas já palpitavam sobre a entrada de Marina Silva no pleito e os impactos do acidente na corrida presidencial. Nem o Datafolha perdeu tempo. Na noite de ontem, já estava no site do TSE o registro de uma pesquisa que será realizada por telefone no dia de hoje com Marina candidata, e uma pergunta bônus: qual caminho você acha que o PSB deve tomar.

Dessas coisas que não é na primeira manchete na timeline do facebook que a gente acredita. E no dia da morte do avô, Miguel Arraes?! Dá pano pra manga dos conspiracionistas!

Dos conspiracionistas, e da gente sem noção. Toda sorte de pseudojornalistas e comentaristas das redes sociais e canais de notícias. Sempre tem o homem que viu e emocionado quer contar em rede nacional dos corpos dilacerados, carbonizados, com todos os detalhes que o repórter permite. E sempre uma senhorinha assustada. Neste episódio, conhecemos a simpática D. Roseli, moradora de Santos, que pensou estar presenciando o fim do mundo ao ver a aeronave em chamas planar próxima à sua janela:

“Meu Deus, mais um desses meteoros!”

“Depois de morto, todo mundo vira santo”, sempre diz papai. As demais candidaturas pausaram suas campanhas em luto, mas o meteoro de Eduardo Campos cai em cheio no horário político, que se inicia na próxima semana. E o bode logo estará nas salas de estar dos brasileiros.

É com o início da propaganda televisiva que o bicho pega. As alianças fisiológicas entre legendas para aumentar seu tempo de propaganda não acontecem sem um cálculo eleitoral apurado. Apesar do avanço dos smartphones e da grande presença dos brasileiros no facebook, a televisão é ainda a principal fonte de informação durante a campanha e decisiva para a escolha do voto da maioria dos brasileiros.

A chapa Eduardo-Marina foi capaz de um programa econômico mais liberal que o tucano, que ainda pisa em ovos e se rebola para manter sua base nos setores médios enquanto tenta ganhar o voto das famílias mais pobres (renda familiar mensal de até 5 salários mínimos), as quais ainda têm presente a lembrança pesarosa dos anos FHC, e que sempre foram, por sua extensão, o setor decisivo no resultado da disputa do Planalto. Será Aécio mais agressivo, afim de ganhar os antigos simpatizantes do partido que optaram nessas eleições por Campos, mas não se convencem do discurso um tanto etéreo de Marina Silva? Dilma será capaz de levantar essa bola e buscar bloquear Marina Silva e seu discurso “novo”, o mais do mesmo que Dilma já administra bem, quiçá um tanto piorando? E a esquerda, em particular a candidatura de Luciana Genro, será suficientemente incisiva e cirúrgica para ganhar a confiança deste eleitorado fragilizado pela tragédia que busca uma alternativa viável, ao mesmo tempo em que traz à baila o finado aliado de Marina para disputar um voto progressista que não se transferiria para Eduardo Campos? (Bem, já estou supondo e aceitando que Marina substitua Eduardo na disputa.) Valerá o ditado latino "dos mortos não se fala"?

Emfim, é sempre desejável, mas será possível, agora mais que há uma semana, uma eleição presidencial em que a Política e os projetos de desenvolvimento para o país, voltem a dar a tônica do debate? Digo, acima dos malabarismos feitos com a política de varejo (e talvez agora, cruelmente com o luto alheio) para ganhar um ou outro setor. Será?

Mas tudo isso é especulação. O que sobra de certeza é que a luta política nunca pode nos tirar a humanidade, que todo acidente é lamentável e não se justifica desejar a morte aleatória de um outro alguém. Cada família e amigo dos envolvidos no acidente, os pilotos, passageiros, moradores e transeuntes, sabe a dor que sente por sua perda.

ERRATA: A pesquisa citada foi registrada pelo instituto Datafolha, não IBOPE, como anteriormente mencionado.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Sobre anões e gigantes


POR CAROLINA PETERS

As declarações do chanceler israelense, o qual chamou o Brasil de anão diplomático, foram, a despeito de certo frisson da oposição de direita (veículos de mídia inclusos), recebidas com algum grau de altivez pelos brasileiros. Tanto que o frisson nem durou muito. Apesar da reminiscência do complexo do vira-latas, existe hoje um sentimento razoavelmente difundido entre nós de legitimidade internacional. Nossos presidentes hoje falam lá fora em língua pátria, e não mais se oferecem a falar na língua que se deseje escutar. E não é por ignorância, senão por dignidade. Nossos posicionamentos dentro da ONU têm relevância e o discurso de Dilma cobrando explicações da Casa Branca no caso de espionagem conduzido pela NSA (agência de segurança estadunidense) teve grande repercussão internacional, apesar do pouco caso da imprensa local.

Mas não vem ao caso nesse momento a imprensa local. Apesar das duras críticas proferidas na assembleia das Nações Unidas, o Brasil não aceitou o pedido de asilo de Edward Snowden. E isso diz mais sobre como estão as coisas aqui dentro do que da porta de casa pra fora.

Foi a discussão que travei há uns meses numa mesa de bar com uma estudante de RI. Ela defendia o princípio de autonomia da política externa com base em teorias das Relações Internacionais; eu pontuei que a dinâmica interna das alianças que asseguram a governabilidade do governo Dilma era, no limite, decisivo para as movimentações internacionais. Acima de qualquer teoria ou escola a que uma ou outra aderisse, nosso desacordo se dava, sobretudo, por adotarmos lugares de fala muito distintos: ela, da diplomata; eu, da militante politica.

Li um artigo interessante na edição francesa do Le Monde Diplomatique: nunca a grande imprensa, em todo o mundo, defendeu tanto o “equilíbrio” na cobertura jornalística. Uma forma sutil, elegante, de se posicionar inevitavelmente por um lado, posto que nesse conflito não existe guerra entre dois Estados Nacionais com seus exércitos, mas um massacre promovido pelo Estado Sionista sobre um povo que teve ao longo das últimas décadas suas terras e seus direitos usurpados. O quadro de mortes nesse momento marca um placar de dois dígitos do lado israelense, contra quatro dígitos do lado palestino. Nenhuma morte é menos lamentável que outra, mas estes números dão dimensão da desproporção com a qual uns declaram não mais que “se defender” (a melhor defesa é o ataque, certo?). E não só pela força bélica, mas telegramas divulgados pelo wikileaks dão conta de acordos entre Israel e Estados Unidos para minar economicamente a região e forçar a debandada do povo palestino. Defender o equilíbrio, aqui, está distante da imparcialidade.

Fomos capazes, com razão, de nos indignar com a alcunha de anões diplomáticos, mas a intervenção real do Estado Brasileiro sobre a investida criminosa do exército israelense em Gaza foi nula. Abrimos mão de nosso porte como um dos maiores compradores de armamento de Israel e nos encolhemos no canto da sala de estar da política internacional sem trabalhar efetivamente pelo cessar fogo na região. A vizinha Bolívia, com o tamanho que lhe cabe, sinalizou sua posição declarando Israel Estado terrorista e voltando a exigir vistos para a entrada de israelenses em seu território.

O que nos impossibilita uma medida enérgica do governo brasileiro de solidariedade ao povo palestino e seu direito a um Estado soberano e à paz, pressionando com medidas de embargo ao Estado Sionista não é nosso tamanho, mas nossas escolhas.

Nossa polícia mata cinco por dia favelas afora. A periferia vive em constante estado de sítio e manifestações são duramente reprimidas e prisões arbitrárias decretadas, contando com tecnologia israelense. Ontem, após semanas de campanha dos movimentos sociais, dois ativistas, destes acusados sem provas foram soltos. Há mais tantos outros inocentes encarcerados, sobretudo negros, como Rafael Braga, morador de rua preso por portar o perigosíssimo desinfetante Pinho Sol, que não contaram com a mesma comoção e seguem sem perspectiva de liberdade. Temos contas a acertar com nosso passado recente, de ditadura, e com nosso presente. A Palestina também é aqui.


sábado, 26 de julho de 2014

Carolina Peters









POR CAROLINA PETERS


Eu voto 50, na candidatura do PSOL, que neste pleito é representada pela ex-deputada federal Luciana Genro. Em parte porque sou filiada ao partido, mas essa é só meia resposta. A outra metade justifica o argumento “filiação”.

É urgente mudar a política. A forma como hoje se organiza nosso sistema de representação político, permitindo financiamentos milionários de campanha, faz com que a coisa pública seja inevitavelmente refém do interesse privado de grandes corporações. No momento, encontra-se engavetada no STF a medida de proibição da doação de empresas a campanhas eleitorais. Apesar de 6 votos favoráveis ao projeto contra apenas um, essa ação que representa um passo concreto no combate à corrupção emperrou há poucos meses das eleições.

No cenário atual, há pouco espaço para a pluralidade de opiniões, de gênero, de cor e credo. A representação popular dá lugar ao lobby. A cobertura midiática parcial, que criminaliza movimentos de luta por direitos e se restringe a noticiar a corrupção de varejo, de determinados grupos, e silenciar sobre outros grupos e os corruptores de ambos, contribui para o sentimento de completa descrença e desmotivação no seio da população.

O PSOL tem em seu estatuto veto ao recebimento de dinheiro de empresas multinacionais, monopólios, do setor financeiro, empreiteiras ou qualquer empresa que realize obras publicas. Muitas de nossas candidaturas, como a do deputado federal Ivan Valente, de São Paulo, não recebem dinheiro de pessoas jurídicas, contando somente com contribuições militantes. Esse não é um discurso moralizador, mas garantia de independência política, que nos permitiu ser o único partido a se posicionar contra as alterações no código florestal; a veemência na defesa da demarcação de terras indígenas; a proposição da CPI dos planos de saúde – engavetada pelo presidente da câmara Henrique Alves (PMDB) apesar de já contar com as assinaturas necessárias para sua instalação; e a defender a auditoria da dívida pública, uma verdadeira corrupção institucionalizada, que hoje faz com que se destine metade do orçamento da União para os bolsos de banqueiros.

Para além da questão do financiamento, há outra questão fundamental a ser enfrentada por uma Reforma Política: ampliar as possibilidades de participação da população em geral, e da sociedade civil organizada, na vida política. Tirar do papel as previsões constitucionais de consultas públicas e plebiscitos, bem como mexer no sistema judiciário viciado e desmilitarizar as polícias, assegurando o direito à livre manifestação, à expressão da divergência, à organização política (direito posto em xeque quando se indicia manifestantes por associação criminosa e formação de quadrilha).

Somos uma democracia jovem, longe de estar consolidada. E nossa história é recente demais para pensar que não haja possibilidade de mudar.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Amizades e brigas de irmãos


CAROLINA PETERS

Terça-feira, 15 de julho. Horas após o anúncio da criação do banco dos BRICS na minha ensolarada Fortaleza, eu morria de frio no centro de São Paulo. No Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, o presidente equatoriano Rafael Correa fala por quase duas horas sobre a chamada “revolução cidadã” em curso no país. Ao final, entre as perguntas, alguém levanta a bola: como fica a tal integração latino-americana diante do fortalecimento do bloco dos BRICS?

“A integração não é somente um sonho dos nossos libertadores, mas uma necessidade de nossas economias”, respondeu, criticando a falta de iniciativas do Brasil como país economicamente mais forte da região. Destaco dois pontos de sua fala: a necessidade de investir em obras de integração física entre os países latino-americanos e de tirar do papel o Banco do Sul.

A bem da verdade, é preciso dizer que se o novo banco, sediado em Xangai, é a menina dos olhos do governo e da mídia. O Banco do Sul, que não passou de vaga menção, está mais para o patinho feio. Aos desavisados, vale lembrar que é para a América Latina que exportamos cerca de metade de nossos manufaturados, 30% dos quais para o Mercosul. Não é a dita “fronteira linguística”, senão uma forte campanha político-midiática que nos afasta política e economicamente de nossos hermanos. A investida ideológica que nos fez sequer curar a ressaca dos 7x1 e torcer entusiasmados para os alemães, não porque merecessem a vitória pela campanha irrepreensível nessa Copa, mas por puro ódio aos argentinos.

Concordo com os que distanciam o futebol e a política na medida em que, para a infelicidade de alguns, não será o pífio desempenho da seleção brasileira que logrará uma derrota eleitoral a Dilma. Talvez algum problema grave na organização e estrutura do evento fosse capaz de alguma ranhura na popularidade da presidenta, mas como o viaduto em BH desabou em cima da cabeça de pobre brasileiro, em território tucano. Mesmo a imprensa de patente mas não declarada oposição a Dilma tratou de por panos quentes.

Mas este fenômeno nacionalista, que se expressa de maneiras tão diversificadas durante os mundiais de futebol (ao menos nos masculinos), merece um olhar reflexivo. Porque a seleção argentina, que entra com faixas defendendo sua soberania sobre as ilhas Malvinas; os movimentos sociais da Colômbia que escrevem carta ao artilheiro James Rodrigues, demonstrando que o bom desempenho inesperado da seleção enche de esperança aquelas e aqueles que lutam por paz e terra nesse país sitiado; a solidariedade dos uruguaios a Soarez, não pela mordida absurda mas pela punição desproporcional deferida pela FIFA; a recusa de Benzema, o filho de imigrantes, a entoar a “Marseillaise”, estão bastante distantes de cantar nosso hino abraçadinhos.

Este nacionalismo ocasional, que é “brasileiro com muito orgulho e muito amor” quando a seleção ganha, sem perceber que vamos aos trancos e barrancos também no futebol, é conveniente e conivente com o Estado de Exceção que se abriu por exigência da FIFA, uma empresa internacional. Mas não é capaz de se mostrar uma identificação legítima com uma cultura, um território, e a resistência de um povo aos arbítrios daqueles com maior poder econômico.

Da fala de Correa, me peguei pensando que talvez não compartilhemos enquanto brasileiros dessa premissa de “sonho de nossos libertadores”. Nossa história de independência é um quadro estático do imperador em seu cavalo, no qual não cabem todas as lutas populares que agitaram e continuam agitando o país a despeito do que nos fizeram acreditar, que somos um povo dócil; um gigante que acordou em junho de 2013 e voltou subitamente a dormir.

Essa história de libertação ainda precisa se construir no nosso imaginário, e isso passa por perceber que, mesmo que a gente não queira, os farofeiros argentinos que tomaram Copacabana sem ingressos, pra apoiar sua seleção, são muito mais parecidos conosco, e com quem foram os alemães que colonizaram o Sul do país, do que Angela Merkel.