POR CAROLINA PETERS
A “Menina Zero” (M.O.).
Por esses dias eu lembrei uma história triste na qual há muito não pensava.
Era adolescente, época em que explodiu a onda dos Fotologs – uma espécie de instagram rudimentar, um tanto mais próxima dos blogs, que se iniciavam no mesmo período. Estudava em um colégio católico bastante tradicional, líamos Capricho, namorávamos “sério” e nunca falávamos sobre sexo. Começamos uma semana chuvosa com a notícia da morte de uma menina um ano mais velha que eu. Não a conheci pessoalmente nem lembro seu nome, mas era muito amiga de amigas minhas, o que tornou a morte mais próxima. O laudo oficial falava em “infecção generalizada”.
Foi uma história conturbada, daquelas que com o passar dos anos se tornam quase lendas urbanas e que nos dias que seguiram o velório levantou inúmeras conspirações pelos corredores. Diziam as amigas que ela tinha um namorado problemático, falavam em drogadição. Não sei quem era, se era mal sujeito, ou se não gostavam dele porque não fazia parte dos nossos círculos. O pai da menina morrera dias antes, um ataque cardíaco fulminante. Era jovem ainda, não devia ter cinquenta anos. No dia do enterro, o ex-namorado invadiu seu fotolog da menina e postou uma imagem de sapatinhos de tricô, daqueles de bebê. Os menos chegados e mais fofoqueiros que estiveram presentes no velório relataram um corpo inchado, sobretudo no abdome. E logo se espalhou da forma mais desonesta possível o rumor de que M.O. fizera um aborto.
Lembro da reação de minhas amigas – nossas amigas – negando a história, e achando o mais absurdo do mundo a difamação que sofria a morta. Para mim, ambos buscavam anular a existência daquela menina: os que a condenavam – e que foram cúmplices desse assassinato; e as que julgavam proteger, quando negavam a essa jovem mulher o direito da escolha e arbítrio sobre seu corpo. Mais uma camuflada na cifra dos abortos clandestinos no país.
Das poucas menções ao debate do aborto que me lembro nos tempos de colégio, nenhuma trazia dados, posições distintas, textos de apoio. Foram homens, párocos, professores de Ensino Religioso, que de maneira cretina passavam de raspão sobre o tema evitando polêmica; mas ideologicamente certeiros para carimbar a posição: o aborto é um crime contra a vida. No limite, ela(s) merecia(m) morrer?
E o que mais me instiga, já longe de Santa Catarina física e moralmente, era saber que essa menina, a amiga da minha amiga que estudava ali, na sala ao lado, é o ponto fora da curva na estatística alta de mortes decorrentes de abortamento no Brasil. Ela tinha todas as condições financeiras e acesso a equipamento hospitalar para recorrer a um procedimento seguro e anônimo. Quem sabe hoje estaria se formando na faculdade, aceitando um pedido de casamento. Planejando, agora sim, engravidar.
Quantas naquele colégios – nesses colégios tradicionais catarinenses – não deveriam ter feito um aborto? Ou pensado sobre isso num eventual atraso da menstruação? Distante, a morte me parece a consequência lógica de outra história do mesmo período, da menina que esperou o oitavo mês de gestação e uma consulta ginecológica forçada pela mãe – preocupada com a interrupção abrupta no ciclo menstrual da filha – para se declarar grávida.
Se o sexo deixa de existir quando não falamos dele, a vida não pode existir tampouco.
A “Mulher Zero”.
Jandira Magdalena dos Santos talvez agora seja não mais que um corpo carbonizado. Ela tinha o dinheiro (quase R$5mil) para abortar, mas esbarrou na clandestinidade e agora seu rosto estampa jornais e portais de notícia.
Jandira é uma das cerca de um milhão de mulheres brasileiras que decidem interromper a gestação. O número é impreciso devido à ilegalidade que impede uma pequisa mais aprofundada, mas há uns anos, pesquisadoras da UnB divulgaram um estudo interessante sobre o perfil dessas mulheres que optam por realizar um aborto são em sua maioria casadas, cristãs, têm mais de trinta anos. As cerca de um milhão de mulheres que abortamos no Brasil podemos ser eu, sua irmã, mãe, tia. Você.
Pode ser inclusive a vovó. E de quantas avós já ouvi histórias... Não há quem não conheça uma mulher que já fez um aborto. Mas acima da idade; das crenças pessoais; do relacionamento estável ou não; de já terem filhos ou não; das condições financeiras, o ponto em comum entre todas elas é a convicção de que têm o direito de ser mães. E como direito, essa é uma escolha delas, não do Estado ou de qualquer religião. A maternidade não é um karma, uma sina, mas uma escolha consciente que as mulheres tomamos. Porque somos sujeitos de nossa própria história. Porque somos gente.
O Estrangeiro.
Assistindo aos debates e ao horário eleitoral, me senti relendo O estrangeiro, de Albert Camus, em uma versão esteticamente pobre. Aos que nunca leram, ou que por ventura não tenham entendido o texto, se trata da história de um homem condenado à morte por não enlutar a mãe. O homem se torna réu pelo assassinato de um árabe, mas este não passa de um episódio secundário que dá corda à trama. A ação principal não é senão a sobreposição do código moral individual sobre o plano público, o qual deveria ser regido por um código autônomo de forma a garantir igualdade de julgamento a todos os indivíduos, independente de suas convicções íntimas – ou antes, as convicções de seus juízes.
O discurso obscurantista que criminaliza e demoniza a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) é um discurso que criminaliza unicamente as mulheres, como se sua gestação fosse fruto de autogênese. Que submete mesmo aquelas que passam por abortamentos espontâneos, em hospitais públicos e privados de primeira linha, a um atendimento vexatório, negligente. Humilhante. É o discurso que coage famílias simples de crianças estupradas a obrigar essas meninas a seguir com uma gravidez que seus pequenos corpos e mentes infantis não têm condições de gestar. Que dificulta o acesso de uma gestante ao aborto legal – previsto por lei – para que possa dar sequência a um tratamento de saúde emergencial. É um discurso de ódio, que faz das mulheres cidadãs de segunda categoria. O discurso que diz defender a “vida”, defende que nossa vida, a vida das mulheres, valha menos ou quase nada.
Que fique claro aos que se chocam com os vídeos enganosos que circulam pela rede: um feto formado vai nascer. Nossa defesa do aborto considera as semanas iniciais da gestação, entre 12ª e 14ª, conforme exemplos que temos pelo mundo. Enquanto o embrião ainda é dependente do corpo da mulher para sobreviver, ou seja, não tem existência autônoma. Aos curiosos em saber como se parece, sugiro esse link aqui.
Legalizar o aborto não é forçar ninguém a violar suas crenças pessoais. É tratar um grave problema de saúde pública que mata e mutila centenas de mulheres todos os anos, e assegurar dignidade e direito de escolha a todas nós.
"A fazedora de anjos", 1908: tríptico de Pedro Weingärtner, do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, retrata o aborto na virada do século XX. De perto é impressionante. |
Uma coisa é aceitar o aborto de uma criança ou mulher violadas, outra é aceitar normalmente que mulheres negligentes (independente da classe social) façam sexo com seus parceiros sem preservativos e acabem, a cada seis meses, numa clínica de estética para que esse procedimento seja feito de forma legal aos olhos da justiça. Eu ficaria feliz se nós, mulheres, tivéssemos a prerrogativa de realizar abortos por necessidade. Acontece que uma pá de gente vai usar esse direito por simples conveniência e isso é monstruoso.
ResponderExcluirMinha cara, em mais de 70% dos países do MUNDO TODO o aborto é Legal. E há uma série de estudos que comprovam que a legalização (que não se faz sem educação sexual) ao longo dos anos diminui significativamente a incidência do aborto. Ou seja: aborto não vira método contraceptivo. Isso é uma mentira cretina.
ExcluirSegundo ponto: me entristece alguém que se identifica como mulher no campo do comentário (na internet nunca sabemos ao certo, não é?) achar que uma gestação é "culpa" somente da mulher que não se cuidou, e então tem que ser "punida" parindo. Ninguém engravida sozinha.
Nunca conheci uma mulher que fez aborto "por simples conveniência" mas conheci centenas que a elas era negado o direito de realiza-lo por necessidade. Interessante vermos que as mulheres são negligentes, isentando os homens de toda responsabilidade em algo construido a dois. Clínicas de estética, pelo que eu sei não fazem abortos. Eles são realizados em clínicas clandestinas, para quem tem dinheiro e em casa mesmo para quem não tem. é bom saber, também, a extrema dificuldade de se fazer aborto legal aos olhos da justiça, aqui mesmo em Joinville não tem nenhum hospital público habilitado para tal.
ExcluirAntônio, parece que as respostas são selecionadíssimas, principalmente quando colocam a autora contra a parede ou quando não concordam com a opinião dela. Tudo bem, você provavelmente não verá meu comentário, mas ela, sim.
ExcluirCara Flávia, segui um critério simples: comentários ofensivos; que demonstrem inabilidade do sujeito em ler e compreender um texto; ou que exponham pessoas, serão sistematicamente excluídos.
ExcluirAtt.
Pauto minha vida, minhas decisões na praticidade. Como tal, se eu precisasse escolher entre a vida da minha noiva e de um amontoado de células numa hipotética gravidez de risco, sem dúvida e remorso algum, eu fico com minha noiva.
ResponderExcluirNão estou nem um pouco preocupado com o julgamento que eu receberia. O importante é que eu ainda teria a mulher que eu amo do meu lado. Um montinho de células, pra mim, não é vida. É tipo um apêndice: se incomodar, tira e joga fora.
Obrigada por “concordar” com o meu ponto de vista, Alexandre.
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