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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Abortar não é crime; é saúde pública

POR CLÓVIS GRUNER
Encerrou na segunda (06) a audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber, do STF, para discutir a ADPF 442, ajuizada pelo PSOL em novembro de 2017, que descriminaliza o aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gestação. Durante dois dias – a audiência começou na sexta-feira (03) –, representantes de 50 entidades apresentaram argumentos favoráveis ou contrários à descriminalização.

Uma das principais referências sobre o tema no Brasil e coordenadora da Pesquisa Nacional do Aborto, a antropóloga Débora Diniz (que chegou ao Supremo com escolta policial depois de ser ameaçada de morte pelos defensores da vida) fez uma das falas mais contundentes. Ancorada nos dados da pesquisa que coordenou em duas ocasiões – 2010 e 2016 –, ela apresentou um perfil minucioso do aborto no Brasil, uma prática recorrente, mas que, ilegal, é responsável pela morte de inúmeras mulheres e motivo ou ameaça de prisão para outras tantas.

De acordo com a PNA, cerca de 15% das mulheres entre 18 e 39 anos já fez pelo menos um aborto. O índice é maior – aproximadamente 18% – se tomadas como referência apenas as mulheres entre 35 e 39 anos. Na média geral, uma em cada cinco mulheres já fez aborto. O índice é maior nas regiões Norte e Nordeste – 15% e 18%, respectivamente, contra 11% e 6% no Sudeste e Sul. O corte étnico, de classe e nível de escolaridade também é significativo: 22% das mulheres que cursaram até a quarta séria já fizeram aborto, o dobro daquelas com nível superior.

O fenômeno se repete se tomada a renda familiar: 16% das mulheres com renda de até um salário mínimo já abortaram, contra 8% das com renda acima de cinco salários. Algo em torno de 25% de mulheres pretas, pardas ou indígenas já abortaram, índice bastante superior aos 9% de mulheres brancas. Ou seja, mais que uma excepcionalidade, o aborto é uma prática comum entre mulheres comuns. O incomum é sua criminalização, e é sobre ela que precisamos falar.

Um debate público – Um dos argumentos favoráveis à descriminalização, é de que não se trata de uma decisão simples, que acarreta quase sempre danos físicos e emocionais a quem o faz. A premissa é verdadeira e bem intencionada, mas incorre em um equívoco fundamental. Ela mantem na esfera pessoal e privada, um debate que precisa ser travado na esfera pública. Na prática, reitera em outra chave as razões alegadas pelos que são favoráveis a que mulheres sejam encarceradas ou morram por realizarem um aborto.

Quase sempre de fundo moral ou religioso, os argumentos favoráveis à criminalização tendem a reproduzir, tomando como verdadeiro, um cenário que não encontra sustentação em qualquer dado do real: descriminalizar o aborto não é obrigar mulheres a fazê-lo; nem se formarão filas em hospitais, clínicas e postos de saúde de gestantes ávidas por abortar. Não estamos falando de um “genocídio”, como defendem alguns, perversamente.

Na prática, a descriminalização, além de tratar o tema como um direito fundamental, em consonância com a Constituição 88, retira da esfera jurídica e policial o que não deveria ser um crime, e o desloca para o seu lugar de direito: o da saúde pública. E não se trata apenas de defender a vida e a liberdade de mulheres, especialmente mulheres negras e pobres, por muitas e óbvias razões as mais expostas e vulneráveis seja à prisão ou à morte em uma clínica clandestina.

Descriminalizar o aborto e tratá-lo como um tema e um problema de saúde muda, principalmente, a competência do Estado. Podendo falar dele abertamente, pode-se desenhar políticas públicas para, além de proteger, prevenir e mesmo evitá-lo, o que vimos acontecer em países onde ele já foi descriminalizado, caso do vizinho Uruguai. Tema sem dúvida controverso e delicado, o aborto demanda inúmeras formas de tratar as mulheres que a ele recorrem. A cela de uma prisão não é uma delas. A morte tampouco.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Vamos falar de aborto?



POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO


Aborto. Eis uma discussão que tem tudo para dar errado no Brasil. Falar de temas fraturantes exige um nível civilizacional que os brasileiros, de maneira geral, ainda não atingiram. E estes tempos de pós-verdade, em que a opinião vale mais que o fato, fizeram o país descer mais alguns degraus em matéria de costumes. O obscurantismo tornou-se um referente no caldo de cultura do patropi.

O debate é oportuno, mas exige interlocutores open- minded. Gente com cultura, com mundo e sem moralismos toscos. Porque é uma questão médica e a intolerância faz cegar essa gente: de acordo com a Organização Mundial da Saúde, todos os anos morrem 47 mil mulheres no mundo em consequência de abortos clandestinos. Ora, as pessoas dizem ser pela vida, mas não se importam com tantas mortes?

Mas o texto não pretende provocar qualquer discussão. A intenção é apenas fazer o relato  de um país onde o aborto existe, resolveu um problema de saúde pública e, assimilado pela sociedade, se tornou um não-assunto. Em Portugal, país onde voltei a viver há duas décadas, o aborto (chamado interrupção voluntária da gravidez) existe desde 2007. E o país não foi destruído pela ira divina. 

Vez por outra o tema reaparece na mídia, mas por questões laterais. Há alguns anos, os partidos de direita, então no poder, instituíram o pagamento de “taxas moderadoras”. A interrupção da gravidez, feita de graça no sistema público de saúde, passou a ser paga, num valor que ronda os 27 reais. O atual governo, de esquerda, extinguiu essa taxa. O mais importante, no entanto, é que o número de complicações em casos de aborto diminuiu.

Que tal mostrar alguns números? Os dados sobre complicações decorrentes de abortos revelam o seguinte quadro: de 2002 a 2007 (antes da legalização) foram registrados 1.258 casos de complicações; de 2008 a 2012 (após a legalização), houve apenas 241 casos registrados. É uma diferença muito significativa. E ao contrário do argumento dos conservadores, o número de abortos não aumentou, havendo mesmo indicações de que vem diminuindo.

E vale salientar outros números. Entre 2002 e 2007, houve 14 mortes maternas notificadas e relacionadas a abortos clandestinos. Em anos posteriores não foram registradas vítimas fatais. Aliás, essa é uma das preocupações das autoridades. Ainda existem abortos clandestinos, em grande número decorrentes de fatores como o sentimento de vergonha e culpa a que as mulheres são submetidas por moralismos familiares ou religiosos.

Enfim, o que este texto pretende é demonstrar que as sociedades modernas tratam questões como a interrupção da gravidez no plano da saúde. Já as sociedades mais atrasada tendem à criminalização. Mas fica a pergunta. Quantas mortes os moralismos já provocaram?

É a dança da chuva.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Eu sou contra o aborto


















POR FILIPE FERRARI


Sou contra o aborto, pois sou cristão, e acredito na dignidade humana acima de tudo. 

Porém, o mais importante e fundamental: eu não engravido. 

 Além disso, eu não sei quando a vida “começa” (e nisso, me sinto confortável, pois quem soube até agora determinar?). É na fecundação? Depois de três meses? Com as memórias? Sistema nervoso? Tudo isso parece tão insuficiente!

 Eu não sou o Estado de Direito. 

 Eu não sei quantas mulheres abortam por não poderem abrir mão de um emprego sem registro que sustenta a família. 

 Eu não sei quantas mulheres abortam porque a família jamais aceitaria uma gravidez sem planejamento, pois seus pais religiosos não suportariam “a vergonha”. 

 Eu não sei quantas mulheres foram irresponsáveis na relação sexual e engravidaram. 

 Eu, simplesmente, não sei. 

 Eu sei que eu sou contra o aborto, e sou um cidadão ativo dentro de um sistema político, econômico e social. 

Tem quem diga “não com o meu dinheiro!”. Por favor, é de vida que falamos, não de um shopping.

Sei que se defende a vida, mas não se defende a mulher pobre que, por quaisquer que sejam seus motivos, morre na mão de açougueiros clandestinos. Que aceita os traumas psicológicos sem acompanhamento. Que, na maioria das vezes, está perdida e sozinha. 

Sei que mulheres ricas fazem aborto em clínicas clandestinas com médicos de CRM’s antigos, consolidados e de nome, prenome e sobrenome. Ou na Flórida, e na volta essas mulheres trazem IPhone sem pagar imposto. Que podem ter quaisquer acompanhamentos posteriores, pois o dinheiro paga. 

Esse é o Brasil. O dinheiro compra a moralidade, compra o acompanhamento, compra a dignidade. 

 O dia que uma amiga, conhecida ou parente me procurar e disser “quero abortar”, eu tentarei de todas as formas racionais demovê-la da ideia. Se sua última palavra ainda for “quero abortar”, a ajudo a procurar o melhor lugar possível. De preferência, legalizado e com amparo médico-psicológico. 

Afinal, sou cristão, e acima de tudo, a dignidade humana.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O Estrangeiro e as Clandestinas


POR CAROLINA PETERS


A “Menina Zero” (M.O.).

Por esses dias eu lembrei uma história triste na qual há muito não pensava.

Era adolescente, época em que explodiu a onda dos Fotologs – uma espécie de instagram rudimentar, um tanto mais próxima dos blogs, que se iniciavam no mesmo período. Estudava em um colégio católico bastante tradicional, líamos Capricho, namorávamos “sério” e nunca falávamos sobre sexo. Começamos uma semana chuvosa com a notícia da morte de uma menina um ano mais velha que eu. Não a conheci pessoalmente nem lembro seu nome, mas era muito amiga de amigas minhas, o que tornou a morte mais próxima. O laudo oficial falava em “infecção generalizada”.

Foi uma história conturbada, daquelas que com o passar dos anos se tornam quase lendas urbanas e que nos dias que seguiram o velório levantou inúmeras conspirações pelos corredores. Diziam as amigas que ela tinha um namorado problemático, falavam em drogadição. Não sei quem era, se era mal sujeito, ou se não gostavam dele porque não fazia parte dos nossos círculos. O pai da menina morrera dias antes, um ataque cardíaco fulminante. Era jovem ainda, não devia ter cinquenta anos. No dia do enterro, o ex-namorado invadiu seu fotolog da menina e postou uma imagem de sapatinhos de tricô, daqueles de bebê. Os menos chegados e mais fofoqueiros que estiveram presentes no velório relataram um corpo inchado, sobretudo no abdome. E logo se espalhou da forma mais desonesta possível o rumor de que M.O. fizera um aborto.

Lembro da reação de minhas amigas – nossas amigas – negando a história, e achando o mais absurdo do mundo a difamação que sofria a morta. Para mim, ambos buscavam anular a existência daquela menina: os que a condenavam – e que foram cúmplices desse assassinato; e as que julgavam proteger, quando negavam a essa jovem mulher o direito da escolha e arbítrio sobre seu corpo. Mais uma camuflada na cifra dos abortos clandestinos no país.

Das poucas menções ao debate do aborto que me lembro nos tempos de colégio, nenhuma trazia dados, posições distintas, textos de apoio. Foram homens, párocos, professores de Ensino Religioso, que de maneira cretina passavam de raspão sobre o tema evitando polêmica; mas ideologicamente certeiros para carimbar a posição: o aborto é um crime contra a vida. No limite, ela(s) merecia(m) morrer?

E o que mais me instiga, já longe de Santa Catarina física e moralmente, era saber que essa menina, a amiga da minha amiga que estudava ali, na sala ao lado, é o ponto fora da curva na estatística alta de mortes decorrentes de abortamento no Brasil. Ela tinha todas as condições financeiras e acesso a equipamento hospitalar para recorrer a um procedimento seguro e anônimo. Quem sabe hoje estaria se formando na faculdade, aceitando um pedido de casamento. Planejando, agora sim, engravidar.

Quantas naquele colégios – nesses colégios tradicionais catarinenses – não deveriam ter feito um aborto? Ou pensado sobre isso num eventual atraso da menstruação? Distante, a morte me parece a consequência lógica de outra história do mesmo período, da menina que esperou o oitavo mês de gestação e uma consulta ginecológica forçada pela mãe – preocupada com a interrupção abrupta no ciclo menstrual da filha – para se declarar grávida.

Se o sexo deixa de existir quando não falamos dele, a vida não pode existir tampouco.

A “Mulher Zero”.
Jandira Magdalena dos Santos talvez agora seja não mais que um corpo carbonizado. Ela tinha o dinheiro (quase R$5mil) para abortar, mas esbarrou na clandestinidade e agora seu rosto estampa jornais e portais de notícia.

Jandira é uma das cerca de um milhão de mulheres brasileiras que decidem interromper a gestação. O número é impreciso devido à ilegalidade que impede uma pequisa mais aprofundada, mas há uns anos, pesquisadoras da UnB divulgaram um estudo interessante sobre o perfil dessas mulheres que optam por realizar um aborto são em sua maioria casadas, cristãs, têm mais de trinta anos. As cerca de um milhão de mulheres que abortamos no Brasil podemos ser eu, sua irmã, mãe, tia. Você.

Pode ser inclusive a vovó. E de quantas avós já ouvi histórias... Não há quem não conheça uma mulher que já fez um aborto. Mas acima da idade; das crenças pessoais; do relacionamento estável ou não; de já terem filhos ou não; das condições financeiras, o ponto em comum entre todas elas é a convicção de que têm o direito de ser mães. E como direito, essa é uma escolha delas, não do Estado ou de qualquer religião. A maternidade não é um karma, uma sina, mas uma escolha consciente que as mulheres tomamos. Porque somos sujeitos de nossa própria história. Porque somos gente.

O Estrangeiro.

Assistindo aos debates e ao horário eleitoral, me senti relendo O estrangeiro, de Albert Camus, em uma versão esteticamente pobre. Aos que nunca leram, ou que por ventura não tenham entendido o texto, se trata da história de um homem condenado à morte por não enlutar a mãe. O homem se torna réu pelo assassinato de um árabe, mas este não passa de um episódio secundário que dá corda à trama. A ação principal não é senão a sobreposição do código moral individual sobre o plano público, o qual deveria ser regido por um código autônomo de forma a garantir igualdade de julgamento a todos os indivíduos, independente de suas convicções íntimas – ou antes, as convicções de seus juízes.

O discurso obscurantista que criminaliza e demoniza a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) é um discurso que criminaliza unicamente as mulheres, como se sua gestação fosse fruto de autogênese. Que submete mesmo aquelas que passam por abortamentos espontâneos, em hospitais públicos e privados de primeira linha, a um atendimento vexatório, negligente. Humilhante. É o discurso que coage famílias simples de crianças estupradas a obrigar essas meninas a seguir com uma gravidez que seus pequenos corpos e mentes infantis não têm condições de gestar. Que dificulta o acesso de uma gestante ao aborto legal – previsto por lei – para que possa dar sequência a um tratamento de saúde emergencial. É um discurso de ódio, que faz das mulheres cidadãs de segunda categoria. O discurso que diz defender a “vida”, defende que nossa vida, a vida das mulheres, valha menos ou quase nada.

Que fique claro aos que se chocam com os vídeos enganosos que circulam pela rede: um feto formado vai nascer. Nossa defesa do aborto considera as semanas iniciais da gestação, entre 12ª e 14ª, conforme exemplos que temos pelo mundo. Enquanto o embrião ainda é dependente do corpo da mulher para sobreviver, ou seja, não tem existência autônoma. Aos curiosos em saber como se parece, sugiro esse link aqui.

Legalizar o aborto não é forçar ninguém a violar suas crenças pessoais. É tratar um grave problema de saúde pública que mata e mutila centenas de mulheres todos os anos, e assegurar dignidade e direito de escolha a todas nós.

"A fazedora de anjos", 1908: tríptico de Pedro Weingärtner, do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, retrata o aborto na virada do século XX. De perto é impressionante.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma introdução à vida não machista

POR CLÓVIS GRUNER

No último sábado, dia 13 de julho, cerca de três mil pessoas ocuparam as ruas do centro de Curitiba, durante a terceira Marcha das Vadias. Parte do calendário de manifestações da cidade, seguindo uma tendência iniciada em 2011, em Toronto, no Canadá, e que rapidamente se internacionalizou, a deste ano teve como tema “Desconstruindo o machismo dentro de todxs nós”. Aos desavisados ou insensíveis, pode parecer estranho falar de machismo em pleno século XXI. Mas não é preciso ser mulher para saber que não: apesar dos avanços, ainda há muito por fazer e mudar.

Hoje como ontem, o machismo continua a produzir violência. E não apenas nas sociedades e culturas orientais, importante dizer, e tampouco apenas a física. Igualmente cruel e violento é o machismo banalizado nas relações cotidianas, a naturalizar práticas e discursos que inferiorizam a mulher, quando mesmo não a tomam e tornam culpada pela brutalidade de que é frequentemente vítima. Um dos cartazes recorrentes nas Marchas, aliás, denuncia um dos traços emblemáticos desta atitude: vivemos em uma sociedade que insiste em ensinar às mulheres como não serem estupradas, quando o correto e necessário é ensinar os homens a não estuprar.

A POLÍTICA DO DESCONFORTO – Não é casual, portanto, que o corpo se faça presente na Marcha das Vadias de maneira tão intensa, nos cartazes, nas faixas, nas palavras de ordem. Mas ele é também um “campo de batalha”, transformado ele próprio em um discurso, um meio e sua mensagem. E não se trata apenas de reivindicar uma política que assegure, entre outras coisas, o direito ao corpo, mas de inseri-lo efetivamente na política. Esta é uma das razões pelas quais a Marcha das Vadias, e o feminismo de modo geral, provoca ainda tanto incômodo. Para muitos de nós, ver e ouvir mulheres afirmando-se como sujeitos de direitos é ainda desconfortante. Mas, creio, não são os seios nus a desfilar nas ruas a razão principal do desconforto.

Mostrar o corpo e exigir respeito e dignidade é confrontar o machismo, como disse acima, nas maneiras muitas vezes insidiosas com que ele se manifesta – o direito que os homens acreditam ter de tutelar os modos e maneiras femininos, por exemplo; ou os muitos meios pelos quais naturalizamos e justificamos desigualdades de gênero. É subverter a ordem estabelecida segundo a qual somente os homens héteros detém o privilégio de exercerem livremente sua sexualidade, relegando à mulher a humilhante condição de “objeto de desejo” do gozo masculino. É explodir os papeis sociais que definem, desde a infância, os lugares e as funções que cabem a meninos e meninas, mostrando que as relações de gênero, com suas muitas hierarquias, não são um dado da natureza, mas construtos históricos, cultural e socialmente estabelecidos. É expor o ridículo da postura conservadora e machista que, à falta de argumentos, agarra-se a estereótipos grosseiros para desqualificar as mulheres, o feminismo e as mulheres feministas, opondo a ele e a elas as Amélias e Marias do imaginário masculino Ocidental e cristão.

O CORPO É LAICO – De um modo muito singular e intenso, a Marcha das Vadias expõe ainda uma de nossas mais lamentáveis contradições: a precária laicidade do Estado brasileiro. E o faz trazendo para o espaço público um direito que os seguidos governos, à direita e à esquerda, insistem em negar, reféns que foram e são do fundamentalismo religioso: o aborto. Assunto polêmico e controverso, mas ao mesmo tempo incontornável, trata-se de uma pauta que apareceu já nas primeiras Marchas. Se na Europa a descriminalização do aborto já é realidade na maioria dos países, na América Latina caminhamos a passo de tartaruga, quando não de caranguejo: à exceção do Uruguai, de Cuba e em algumas cidades do México – incluindo a capital –, nos demais países a legislação tem viés criminalizador.

Por que o tema é importante? Ora, porque neste caso não se trata apenas do direito ao corpo, um motivo em si legítimo, mas de reconhecer à mulher o direito de não ser tratada como criminosa por decidir e escolher, livremente, sobre seu corpo, sua vida, seu futuro, etc... Mas trata-se também de um caso de saúde pública: praticado em larga escala, e muitas vezes sem as mínimas condições de higiene, ele tem sido responsável pela morte de milhares de mulheres e pela traumatização de outras tantas, submetidas a uma intervenção extremamente invasiva sem recursos adequados e sem apoio, principalmente psicológico.

Tal como disposto hoje, o debate privilegia unicamente o embrião e desconsidera a pessoa com projetos e propósitos, a mulher grávida. Tal inversão se sustenta em um mito moral: o da maternidade como sendo algo instintivo, parte da “natureza feminina”, o sofrimento tornado compulsório: ser mãe, afinal, é padecer no paraíso. Não é. Descriminalizar o aborto não é uma panaceia. Não se formarão filas quilométricas de gestantes nos postos de saúde – descriminalizar o aborto não se confunde com incentivá-lo. Trata-se de um direito de escolha que não pode ser tolhido a quem dele necessite ou queira a ele recorrer, porque outros julgam que seus valores e princípios são não apenas corretos, mas universalmente válidos. O corpo é laico, e não pertence ao Estado, nem tampouco à religião. As vadias estão a gritar isso nas ruas. Estamos dispostos a ouvi-las?

quarta-feira, 12 de junho de 2013

E a mulher? Foda-se!

POR CLÓVIS GRUNER




A semana passada não foi de boas notícias. Ela começou com a demissão de Dirceu Greco, diretor do Departamento de DSTs, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, responsável pela campanha “Sou feliz sendo prostituta”. A justificativa oficial do ministro Alexandre Padilha, covarde e hipócrita, escondeu o verdadeiro motivo da saída de Greco, criticada por inúmeros profissionais que conhecem e respeitam sua trajetória como infectologista: a submissão, mais uma vez, das ações do governo à agenda conservadora, já que o estopim da demissão foram as críticas dos deputados evangélicos hoje à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, particularmente Marco Feliciano e João Campos, ao conteúdo da campanha, considerada pelo último uma “apologia ao crime”.

No meio da semana, cerca de 40 mil evangélicos tomaram as ruas de Brasília. Oficialmente, tratava-se de uma “Manifestação pela liberdade de expressão, liberdade religiosa e família tradicional”. Animados por Silas Malafaia, no entanto, o que se viu foi uma demonstração coletiva de ódio e intolerância que beirou às raias do absurdo: confundido com um gay, um pastor da igreja Quadrangular foi agredido por seguranças, um “mal entendido”, segundo os pastores responsáveis pelo evento. Alguns sites gays minimizaram o acontecimento, já que a quantidade de fieis foi bem menor que a esperada e prometida pelo pastor. Outros destacaram que Malafaia não é unanimidade mesmo dentro do segmento evangélico. Tudo isso é verdade, mas a história já nos mostrou que milhares de pessoas nas ruas, movidas pelo fanatismo e o ódio é algo para, no mínimo, nos preocupar.

Mas veio da Câmara de Deputados a mais estarrecedora e lamentável das notícias, com a aprovação, pela Comissão de Finanças e Tributação do Projeto de Lei 478/2007, conhecido como o Estatuto do Nascituro. Quem conhece minimamente o percurso de um PL no parlamento sabe que o projeto não chegou ainda ao último estágio: aprovado anteriormente na Comissão de Seguridade Social e Família, ele depende agora de parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça antes de, finalmente, seguir para votação no plenário. Se aprovado, segue para sanção presidencial. Mas a simples existência de um projeto de tal natureza – de autoria, aliás, de um ex-deputado petista, Luiz Bassuma – e sua aprovação por duas comissões parlamentares é, e eu vou usar um eufemismo, uma indignidade.

E um atraso. Entre outras coisas, porque o conceito que o atravessa mandas às favas todo o debate científico e jurídico em torno ao conceito e estatuto de pessoa. Ele se apoia tão somente em uma concepção de fundo religioso, ao afirmar que “Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido”, para logo em seguida estabelecer, em parágrafo único, que o “conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos ainda que “in vitro”, mesmo antes da transferência para o útero da mulher.” Tal conceito, ao assegurar aos embriões os mesmos direitos que, em tese, são garantidos aos nascidos, inviabiliza e criminaliza, por exemplo, pesquisas com o uso de células tronco, uma das principais conquistas científicas dos últimos anos, aprovada pelo STF em 2008.


O DIREITO AO CORPO – Não importa que uma das matérias mais polêmicas do PL tenha sofrido uma mudança: no texto original, e contrariando a legislação em vigor sobre o tema (aliás, uma das mais conservadoras entre os países ocidentais) o aborto, independente do contexto, não apenas era criminalizado, como em sua justificativa o autor do projeto defendia sua inclusão na categoria de “crime hediondo”. A versão que segue para a Comissão de Constituição e Justiça, estabelece como ressalvas o disposto no artigo 128 do Código Penal, que autoriza o aborto em caso de risco de vida para a gestante ou quando a gestação for resultado de estupro. Mas não diz nada, por exemplo, sobre o aborto de anencéfalos, autorizado também pelo STF (só!) no ano passado.

Mesmo com a mudança introduzida, o Estatuto do Nascituro amplia a criminalização do abortamento e dificulta, por consequência, o acesso a métodos contraceptivos e ao aborto legal, hoje já bastante restrito, ao tornar a gestante objeto de uma exaustiva e intimidante vigilância. No caso de gestação decorrente de abuso violento, não apenas institui a em si abominável ideia de um auxílio estatal à gestante e ao nascituro – apelidada nas redes sociais de “Bolsa estupro” – como estabelece que, “Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei”. É mais ou menos assim: além de ter sido estuprada e obrigada a carregar por nove meses o resultado da violência a que foi submetida, a mulher terá de conviver, pelos próximos anos, com seu estuprador, obrigado este pelo Estado a reconhecer e sustentar o filho, assumindo na prática o seu “patrio poder”. Kafka não faria melhor.

Já se falou muito sobre o tema, especialmente – mas não só – nos blogs feministas. Já se elencaram inúmeras e pertinentes razões que justificam opor-se a ele. Não vou me alongar mais, repetindo o que já foi dito e pode ser lido aqui, aqui e aqui. Mas não quero silenciar sobre uma questão que, implícita ao projeto, é de extrema urgência: o Estatuto do Nascituro não é apenas sobre o aborto e não pode ser lido e entendido somente por este prisma. O retrocesso maior está na afirmação da desigualdade, jurídica inclusive, da mulher, que vê diminuído ainda mais o direito sobre seu próprio corpo, objeto de tutela do Estado. Houve um tempo em que esta desigualdade, ainda presente no cotidiano e que se expressa de diferentes maneiras, desde a recorrente culpabilização da vítima em casos de estupro (e a Fernanda comentou isso em ‘post’ recente aqui no blog), a prisão de manifestantes pela policia atendendo a pedidos de um padre, até artigos de filósofos na grande imprensa; houve um tempo, enfim, em que esta desigualdade era assegurada juridicamente.

No primeiro Código Penal republicano, o adultério era considerado crime quando praticado por mulheres, em qualquer situação. Aos homens, eram reservadas penas mais brandas apenas se o adultério implicasse na negligência do cumprimento do seu papel de provedor da família. Tal premissa, inclusive, inocentou inúmeros assassinos de mulheres, absolvidos sempre que apelavam à “defesa da honra” como justificativa ao homicídio. Avançamos bastante desde então para aceitar, passivamente, retrocedermos a uma condição em que as mulheres, uma vez mais, estarão à mercê de uma lei retrógrada, flagrantemente inspirada em princípios que não são os da laicidade e da igualdade de direitos, mas de uma concepção religiosa e fundamentalista de mundo e de pessoa. Porque é exatamente disso que se trata o Estatuto do Nascituro: ele joga no lixo o pouco de equidade conquistada nas últimas décadas para tornar a mulher, uma vez mais, objeto da vontade fálica do Estado, tudo sob a proteção da lei. Ele diz a ela em juridiquês o que o machismo, o conservadorismo e o fundamentalismo religioso vêm afirmando desde há muito tempo: foda-se você, seu corpo e os seus direitos!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sobre aborto

Eu sou a favor da legalização do aborto. 
Não faria. Acho que tem muitas formas de evitar uma gravidez.
Interrompê-la com aborto gera uma série de procedimentos médicos que exigem uma delicada recuperação, e eu não gostaria de passar por isso.
Mas essa sou eu, Fernanda.

Penso que em muitas outras situações as mulheres devem, sim, ter o direito de decidir se querem ou não levar uma gravidez adiante. Afinal, no momento em que ela estiver com os filhos nos braços, não é o Estado que vai arcar com suas responsabilidades. Ela vai criar o filho com quê? Bolsa família?

Aqui na Suécia existe a lei do aborto livre existe desde 1975.
As mulheres tem o direito de interromper a gravidez até a 18ª semana sem ter que justificar o motivo.
Após a 18ª semana apenas se o feto ou a mulher apresentar alguma condição médica séria, a ser analisada. Depois da semana 22 é proibido.
Esse direito não é considerado um problema de saúde pública, mas sim, uma questão de direito humano. Direito da mulher sobre o seu corpo.

Na cartilha do sistema de saúde sueco existe uma explicação detalhada de como o processo acontece. Aconselha-se a mulher para que pense bem antes, converse com pessoas de confiança, com médicos e tome uma decisão bem informada e bem pensada.


Eu compreendo que algumas religiões entendem que o aborto é um assassinato.

Mas o estado brasileiro é laico, e deve abranger em suas leis pessoas de todas as religiões ou de nenhuma religião. Não deve levar específicas crenças religiosas em consideração, mesmo que represente "a maioria". A lei trata do direito de TODOS.

Para as mulheres religiosas existe uma solução prática e simples: não abortem.
Não é porque o aborto pode ser liberado que as mulheres serão obrigadas a fazê-lo.
Fará quem quiser.

Todos os anos 40 a 50 milhões de mulheres fazem aborto.
Aproximadamente 20 milhões desses são ilegais. Em 16% desses casos, as mulheres morrem.

Do Wikipedia:
"Em janeiro de 2012 uma pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde revelou que a prática do aborto é maior nos países em que ele é proibido e quase metade de todos os abortos feitos no mundo é realizada com altos riscos para a mulher. Entre 2003 e 2008, cerca de 47 mil mulheres morreram e outros 8,5 milhões tiveram consequências graves na sua saúde, decorrentes da prática do aborto. Quase todas as interrupções de gravidez intencionais realizadas de maneira insegura, aconteceram em nações em desenvolvimento, na América Latina e África. "O aborto é um procedimento muito simples. Todas essas mortes e complicações poderiam ter sido facilmente evitadas", disse Gilda Sedgh, pesquisadora-sênior do Instituto norte-americano Guttmacher, autora do estudo.

Não vale a pena legalizar? 


"“E se o bebê que você abortou pudesse ter encontrado a cura do câncer?”
E se a pessoa transexual espancada até à morte pudesse ter encontrado a cura do câncer?
E se o adolescente gay que se suicidou por causa de bullying pudesse ter encontrado a cura do câncer?
E se aquela jovem menina vendida pro tráfico sexual e morta por doenças sexualmente transmissíveis que não foram tratadas pudesse ter encontrado a cura do câncer?
E se um desses centenas de milhares de civis que foram mortos durante a guerra pudesse ter encontrado a cura do câncer?
E se aquela mulher que foi estuprada e depois morreu de complicações internas pudesse ter encontrado a cura do câncer?
E se todas as pessoas do planeta que não têm acesso ao ensino superior e viverão e morrerão na pobreza pudessem ter encontrado a cura do câncer?"
(Original em inglês: http://jenerally.tumblr.com/post/13110577934/what-if-the-baby-you-abort-could-have-cured-cancer)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Abortamento previsto em lei e políticas públicas: uma questão de direitos humanos


POR MIRYAM MASTRELLA

A temática do aborto é bastante polêmica, cercada de melindres e controvérsias. Mesmo nos casos em que a lei não pune a prática do aborto, percebe-se o peso de valores morais e religiosos na execução das leis e na formulação de políticas públicas, ainda que o Estado brasileiro seja, constitucionalmente, laico.(1)

O Código Penal de 1940 estabelece duas situações em que não se pune a interrupção da gravidez: 1) quando não há outra forma de salvar a vida da gestante; 2) quando a gravidez é decorrente de estupro e há o consentimento da mulher, ou seu representante legal, em relação ao aborto. Quando previsto em lei, fala-se em aborto legal. Caso a mulher decida pela interrupção, deve ter seu direito garantido pelo Estado.(2)

Na prática, entretanto, observa-se uma lacuna entre o que o dispositivo legal estabelece e a garantia de acesso ao procedimento nos serviços públicos de saúde. As políticas públicas foram implantadas tardiamente: somente em 1989, por iniciativa da Prefeitura de São Paulo, foi fundado o primeiro serviço de aborto legal, no Hospital Dr. Arthur Ribeiro de Saboya, uma unidade da rede pública de saúde.(3)

Somente em 1997 o Ministério da Saúde passa a regulamentar, por meio do Sistema Único de Saúde, o atendimento nos casos de aborto legal em âmbito nacional. Em 1999, com a publicação da Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, percebe-se a tentativa do Ministério da Saúde em orientar as equipes de saúde para o atendimento às vítimas de violência sexual.(4)

Oficialmente são 70 serviços de referência credenciados pelo Governo para a realização do aborto legal em todo território nacional.(5) Nem todos, porém, chegam a realizar a interrupção da gestação, por diversas razões. Dentre elas, destacam-se: a insuficiência de profissionais dispostos a atuar nestes serviços; resistência de alguns profissionais que integram estas equipes a realizar o procedimento, mesmo nos casos previstos em lei; desconhecimento de alguns profissionais da legislação e das técnicas adequadas para a realização do procedimento; falta de padronização no treinamento das equipes; falta de apoio/atenção/acompanhamento aos profissionais responsáveis pelo acolhimento e assistência nestes serviços; falta de divulgação dos serviços de aborto legal existentes no País; desconhecimento, por parte das mulheres, da legislação.
Santa Catarina foi o último Estado da região Sul a implementar o serviço de abortamento legal: foi criado em 2006 e funciona no Hospital Universitário da UFSC, em Florianópolis, sendo o único do Estado a realizar a interrupção da gravidez. No ano de 2007 foram atendidas 437 mulheres vítimas de violência sexual em Santa Catarina. No entanto, até setembro de 2008 o serviço só atendia as catarinenses residentes na capital. A justificativa da médica da equipe, à época, foi a de que não realizar o procedimento em mulheres de outras cidades forçaria a criação de outros serviços de aborto legal no Estado. Até 2007, sete mulheres interromperam a gestação na capital catarinense.(6) Faltam estudos e dados oficiais sobre a efetiva atuação destes serviços no País. Sem o devido acompanhamento do cotidiano destas unidades, as dificuldades vivenciadas, pelas mulheres e pelos profissionais de saúde, acabam negligenciadas.

A omissão do Estado em efetivar políticas públicas que garantam o acesso ao abortamento previsto em lei representa uma violação dos direitos humanos das mulheres, sobretudo das mais pobres. Retira das mulheres que engravidaram em decorrência de um estupro a autonomia de decidirem sobre prosseguir, ou não, com a gravidez, violentando-as novamente. A dificuldade de acesso à realização do procedimento em unidades de saúde, por profissionais capacitados, leva à busca pelo abortamento clandestino e inseguro, que pode colocar em risco a saúde e à vida destas mulheres que deveriam ser amparadas pelo Estado.

Referências:

1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Arquivo consultado em fevereiro de 2012.

2 BRASIL. Código Penal. Colaboração de Antonio L. de Toledo Pinto, Márcia V. dos Santos Wíndt e Lívia Céspedes. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, 794.p.

3 TALIB, Rosângela Aparecida; CITELI, Maria Teresa. Dossiê: serviços de aborto legal em hospitais públicos brasileiros (1989-2004). São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2005.

4 TALIB, Rosângela Aparecida. O aborto legal no Brasil. 2009. Disponível em: http://www.catolicas.org.br/artigos/conteudo.asp?cod=2840. Arquivo consultado em fevereiro de 2012.

5 NEGRÃO, Télia. Não será fácil recolocar o aborto na agenda política: depoimento. [22 de dezembro de 2011]. Rio Grande do Sul: Sul 21. Entrevista concedida a Vivian Virissimo. Disponível em: http://sul21.com.br/jornal/2011/12/nao-vai-ser-facil-recolocar-aborto-na-agenda-politica-diz-telia-negrao/. Arquivo consultado em fevereiro de 2012.

6 SAKAE, Juliana. HU oferece serviço de aborto legal a mulheres da capital. [setembro de 2008]. Florianópolis: Zero. Disponível em: http://blogdozero.files.wordpress.com/2008/11/pg_141.pdf. Arquivo consultado em fevereiro de 2012.

Miryam Mastrella é Socióloga, doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

domingo, 25 de setembro de 2011

Argumentos a favor da legalização do aborto

POR JORDI CASTAN

O texto de Maria Elisa Máximo, aqui no Chuva Ácida, inicia um debate que deveria permanecer aberto para receber mais contribuições. Parece-meoportuno, para agregar outros pontos de vista, divulgar o trabalho e os estudosdo economista Steven Levitt da Universidade de Chicago, autor do livro Freakanomics. O autor apresenta dados consistentes mostrando a relação diretaque existe entre a legalização do aborto em 1970 nos Estados Unidos e a redução da criminalidade em 1990. É possívelverificar estatisticamente que os estados que legalizaram o aborto antes,reduziram os seus índices de criminalidade antes que os que o fizeram maistarde. Opositores a legalização do aborto podem questionar as conclusões edefensores podem utilizá-las como base de sustentação.

O importante é neste caso sair do achismo e buscar argumentosconsistentes que tirem o debate das mãos do radicalismo talibã de direita, prainserir-lo no seu contexto social atual, entender o seu impacto na saúde pública e dodireito a liberdade de escolha. Sem cair no erro de fazer da sua defesa umaalternativa tardia a contracepção.

sábado, 24 de setembro de 2011

Notas sobre a descriminalização do aborto

POR MARIA ELISA MÁXIMO

Enquanto pensava sobre o tema para meu post de estreia nesse coletivo, um desejo se atravessava a todas as ideias: o de escrever sobre algo que fosse relativo às mulheres. Não apenas por ser eu a única mulher entre os demais que aqui escrevem - até mesmo porque eu não acredito que apenas nós, mulheres, devemos pensar e escrever sobre assuntos que nos dizem respeito -, mas porque tenho percebido que, em Joinville, alguns temas têm sido relegados ao segundo plano pelos movimentos sociais e, sobretudo, pela esquerda (se é que hoje é possível, ainda, dividir o cenário político entre esquerda e direita).

Logo pensei em falar sobre o aborto, mais especificamente sobre a descriminalização do aborto, aproveitando que dia 28 de setembro, próxima quarta-feira, é o dia latino-americano pela descriminalização do aborto. Penso que este assunto revela várias de nossas mazelas, para além daquelas que sempre foram alvo das lutas feministas. Hoje, aqueles que um dia colocaram este tema nas pautas de lutas, muitas vezes se encolhem diante do assunto, sobretudo quando enfrentá-lo pode resultar em perda de eleitorado. Lembremos das últimas eleições presidenciais e da posição escorregadia que a Dilma precisou assumir diante daquilo que ela teria dito, outrora, sobre o aborto. Antes disso, aqui em Joinville, o então deputado Carlito Merss se viu obrigado a espalhar outdoors pela cidade afirmando ser "contra o aborto e a favor da vida".

O tema da descriminaliação do aborto transita nas pautas do movimento feminista e do Congresso Nacional desde os anos 70, 80. Nesta época, a discussão ficava entre a descriminalização total do aborto, a descriminalização regulamentada ou a ampliação dos permissivos legais do Código Penal (casos de risco de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro). Segundo Leila Barsted, decidir entre estas três possibilidades representava, para as feministas, optar pela estratégia mais eficaz para que o Estado brasileiro aceitasse como comportamento lícito a interrupção voluntária da gravidez (BARSTED, 1997). Cada uma destas três propostas incluia a luta pela garantia do atendimento gratuito, na rede pública de saúde, dos casos já previstos em lei (inciso II, artigo 128, Cód. Penal).

No entanto, nos anos 90, este debate perdeu sua centralidade no âmbito dos movimentos feministas ou, como coloca Barsted, perdeu sua "radicalidade". Manteve-se o foco nas reivindicações pelo atendimento na rede pública de saúde aos casos de interrupção de gravidez já previstos por lei, enquanto que as demandas pela descriminalização e/ou pela ampliação dos permissivos legais foram relegadas ao segundo plano. E, segundo a autora, isso possivelmente se deve à postura conservadora do Estado brasileiro em relação ao tema, mesmo após a redemocratização consolidada na Constituição Federal de 1988. É aí que se manifesta, principalmente, a dificuldade de construirmos e consolidarmos um Estado verdadeiramente laico, sem a influência de grupos religiosos e fundamentalistas, que se volte à construção de uma sociedade realmente pluralista.

Além disso, Barsted nos fala da ressonância que há no Congresso Nacional dos movimentos conservadores na área do Direito, sobretudo a face repressora do direito penal, que colabora na construção de uma legislação cada vez mais repressiva, "sem criar mecanismos preventivos para a segurança do cidadão, sem buscar soluções alternativas à dramática ineficácia do sistema penitenciário e sem enfrentar as mais diversas causas geradoras da violência" (BARSTED, 1997, p. 2). Essa onda repressora que domina a dinâmica legislativa brasileira, respinga muitas vezes nos próprios movimentos sociais, que acabam defendendo medidas igualmente repressoras e criminalizantes em defesa dos direitos humanos. Neste ponto, a autora nos dá como exemplo as propostas de criminalização do assédio sexual, com o apoio de alguns setores dos movimentos sociais e feministas: o que antes se restringia ao exercício de poder que cerceia e constrange sexualmente a vítima das relações empregatícias, entre médico e paciente, entre professor e aluno, passou a caracterizar qualquer tipo de molestamento sexual, desde o mais grave (indicando estupro) até a mais simples "cantada" em uma mesa de bar (idem, p.3).
Essa descaracterização do assédio sexual leva à chacota, banalizando, junto à opinião pública, a verdadeira intenção do movimento de mulheres de denunciar e dar visibilidade às relações de poder revestidas de constrangimento sexual (BARSTED, 1997).
É possível traspormos esta crítica a várias frentes dos movimentos sociais que, atualmente, centram-se mais na defesa de propostas criminalizantes do que pela busca da liberdade e da garantia dos direitos fundamentais do ser humano. É preciso refletir sobre até que ponto não estamos, em alguns casos, nos deixando capturar pelas armadilhas ideológicas do movimento conservador no Direito.

Para tirar o aborto do rol dos crimes é preciso, portanto, aprofudar os argumentos éticos-jurídicos a partir de uma interlocução mais estreita com as frentes democráticas e críticas do Direito, fundadas principalmente numa proposta reformadora do direito penal que vise o esvaziamento de medidas criminalizantes e repressoras em termos gerais e, consequentemente, a aplicação de normas jurídicas de normas não-penais. Antes disso, ainda nos falta garantir a plena incorporação do "aborto legal" (nos casos previsto em lei) pelo SUS. Nem nesse ponto conseguimos avançar totalmente.

Na década de 80, o então Conselho Nacional dos Direitos da Mulher aliou-se ao movimento feminista na organização do Encontro Nacional de Saúde da Mulher (1989), onde se produziu a Carta da Mulheres em Defesa do seu Direito à Saúde. Nesta carta, o aborto era considerado um problema de sáude da mulher e, que por isso mesmo, deveria ser retirado do Código Penal. Já naquele momento, contestava-se o poder do Estado em legislar sobre a intimidade do indivíduo e reivindicava-se a liberdade reprodutiva. E é nesse ponto que eu gostaria de chegar, como forma de fomentar o debate. Antes de qualquer coisa, o aborto deve ser tratado como direito da mulher, acolhido pela lei e livre de argumentos moralizantes. Os movimentos sociais, não só os feministas, deveriam retomar este debate no âmbito das discussões acerca dos direitos humanos. É importante termos em mente que "o direito de nascer não necessariamente significa uma real garantia de vida" (Helena Máximo, 2006).

Finalmente, é crucial que se entenda, de uma vez por todas, que defender a descriminalização do aborto não significa "ser a favor do aborto" e, menos ainda, "ser contra a vida". Aliás, da vida de quem está se falando? As mulheres que já fizeram um aborto - ainda mais de forma clandestina, como criminosas, sob circunstâncias muitas vezes insalubres, são elas as primeiras a testemunharem o quão difícil e dolorosa é esta decisão, envolta sempre em tantos tabus, tendo que ser tomada em situações de insegurança e sofrimento.

Ref. Bibliográficas

BARSTED, Leila. O movimento feminista e a descriminalização do aborto. Revista de Estudos Feministas, v. 5, n. 2, Florianópolis, 1997. Disponível em: http://www.ieg.ufsc.br/revista_detalhe_volume.php?id=189. Acessado em: 24/09/2011.

MÁXIMO, Helena. O crime do Padre Amaro. Uivemos, 28/09/2006. Disponível em: http://uivemos.blogspot.com/2005/09/o-crime-do-padre-amaro.html. Acessado em 24/09/2011.