POR CLÓVIS GRUNER
A semana passada não foi de boas notícias. Ela começou com a
demissão de Dirceu Greco, diretor do Departamento de DSTs,
Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, responsável pela campanha “Sou
feliz sendo prostituta”. A justificativa oficial do ministro Alexandre Padilha,
covarde e hipócrita, escondeu o verdadeiro motivo da saída de Greco, criticada
por inúmeros profissionais que conhecem e respeitam sua trajetória como
infectologista: a submissão, mais uma vez, das ações do governo à agenda
conservadora, já que o estopim da demissão foram as críticas dos deputados
evangélicos hoje à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias,
particularmente Marco Feliciano e João Campos, ao conteúdo da campanha,
considerada pelo último uma “apologia ao crime”.
No meio da semana, cerca de 40 mil evangélicos tomaram as
ruas de Brasília. Oficialmente, tratava-se de uma “Manifestação pela liberdade
de expressão, liberdade religiosa e família tradicional”. Animados por Silas
Malafaia, no entanto, o que se viu foi uma demonstração coletiva de ódio e
intolerância que beirou às raias do absurdo: confundido com um gay, um pastor
da igreja Quadrangular foi agredido por seguranças, um “mal entendido”, segundo
os pastores responsáveis pelo evento. Alguns sites gays minimizaram o acontecimento,
já que a quantidade de fieis foi bem menor que a esperada e prometida pelo
pastor. Outros destacaram que Malafaia não é unanimidade mesmo dentro do segmento
evangélico. Tudo isso é verdade, mas a história já nos mostrou que milhares de pessoas
nas ruas, movidas pelo fanatismo e o ódio é algo para, no mínimo, nos preocupar.
Mas veio da Câmara de Deputados a mais estarrecedora e
lamentável das notícias, com a aprovação, pela Comissão de Finanças e
Tributação do Projeto de Lei 478/2007, conhecido como o Estatuto do Nascituro.
Quem conhece minimamente o percurso de um PL no parlamento sabe que o projeto
não chegou ainda ao último estágio: aprovado anteriormente na Comissão de
Seguridade Social e Família, ele depende agora de parecer favorável na Comissão
de Constituição e Justiça antes de, finalmente, seguir para votação no
plenário. Se aprovado, segue para sanção presidencial. Mas a simples existência
de um projeto de tal natureza – de autoria, aliás, de um ex-deputado petista,
Luiz Bassuma – e sua aprovação por duas comissões parlamentares é, e eu vou
usar um eufemismo, uma indignidade.
E um
atraso. Entre outras coisas, porque o conceito que o atravessa mandas às favas
todo o debate científico e jurídico em torno ao conceito e estatuto de pessoa.
Ele se apoia tão somente em uma concepção de fundo religioso, ao afirmar que “Nascituro
é o ser humano concebido, mas ainda não nascido”, para logo em seguida
estabelecer, em parágrafo único, que o “conceito de nascituro inclui os seres humanos
concebidos ainda que “in vitro”, mesmo antes da transferência para o útero
da mulher.” Tal conceito, ao assegurar aos embriões os mesmos direitos que, em
tese, são garantidos aos nascidos, inviabiliza e criminaliza, por
exemplo, pesquisas com o uso de células tronco, uma das principais conquistas
científicas dos últimos anos, aprovada pelo STF em 2008.
O DIREITO AO CORPO – Não importa que uma das matérias mais
polêmicas do PL tenha sofrido uma mudança: no texto original, e contrariando a legislação
em vigor sobre o tema (aliás, uma das mais conservadoras entre os países
ocidentais) o aborto, independente do contexto, não apenas era criminalizado,
como em sua justificativa o autor do projeto defendia sua inclusão na categoria
de “crime hediondo”. A versão que segue para a Comissão de Constituição e
Justiça, estabelece como ressalvas o disposto no artigo 128 do Código Penal,
que autoriza o aborto em caso de risco de vida para a gestante ou quando a
gestação for resultado de estupro. Mas não diz nada, por exemplo, sobre o
aborto de anencéfalos, autorizado também pelo STF (só!) no ano passado.
Mesmo
com a mudança introduzida, o Estatuto do Nascituro amplia a criminalização do
abortamento e dificulta, por consequência, o acesso a métodos contraceptivos e
ao aborto legal, hoje já bastante restrito, ao tornar a gestante objeto de uma
exaustiva e intimidante vigilância. No caso de gestação decorrente de abuso
violento, não apenas institui a em si abominável ideia de um auxílio estatal à
gestante e ao nascituro – apelidada nas redes sociais de “Bolsa estupro” – como
estabelece que, “Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida,
será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei”. É mais ou
menos assim: além de ter sido estuprada e obrigada a carregar por nove meses o
resultado da violência a que foi submetida, a mulher terá de conviver, pelos
próximos anos, com seu estuprador, obrigado este pelo Estado a reconhecer e
sustentar o filho, assumindo na prática o seu “patrio poder”. Kafka não faria
melhor.
Já se
falou muito sobre o tema, especialmente – mas não só – nos blogs feministas. Já
se elencaram inúmeras e pertinentes razões que justificam opor-se a ele. Não vou
me alongar mais, repetindo o que já foi dito e pode ser lido aqui, aqui e aqui.
Mas não quero silenciar sobre uma questão que, implícita ao projeto, é de
extrema urgência: o Estatuto do Nascituro não é apenas sobre o aborto e não pode
ser lido e entendido somente por este prisma. O retrocesso maior está na
afirmação da desigualdade, jurídica inclusive, da mulher, que vê diminuído
ainda mais o direito sobre seu próprio corpo, objeto de tutela do Estado. Houve
um tempo em que esta desigualdade, ainda presente no cotidiano e que se
expressa de diferentes maneiras, desde a recorrente culpabilização da vítima em
casos de estupro (e a Fernanda comentou isso em ‘post’ recente aqui no blog), a prisão de manifestantes pela policia atendendo a pedidos de um padre, até
artigos de filósofos na grande imprensa; houve um tempo, enfim, em que esta
desigualdade era assegurada juridicamente.
No
primeiro Código Penal republicano, o adultério era considerado crime quando
praticado por mulheres, em qualquer situação. Aos homens, eram reservadas penas
mais brandas apenas se o adultério implicasse na negligência do cumprimento do
seu papel de provedor da família. Tal premissa, inclusive, inocentou inúmeros
assassinos de mulheres, absolvidos sempre que apelavam à “defesa da honra” como
justificativa ao homicídio. Avançamos bastante desde então para aceitar,
passivamente, retrocedermos a uma condição em que as mulheres, uma vez mais,
estarão à mercê de uma lei retrógrada, flagrantemente inspirada em princípios
que não são os da laicidade e da igualdade de direitos, mas de uma concepção
religiosa e fundamentalista de mundo e de pessoa. Porque é exatamente disso que
se trata o Estatuto do Nascituro: ele joga no lixo o pouco de equidade conquistada
nas últimas décadas para tornar a mulher, uma vez mais, objeto da vontade
fálica do Estado, tudo sob a proteção da lei. Ele diz a ela
em juridiquês o que o machismo, o conservadorismo e o fundamentalismo religioso
vêm afirmando desde há muito tempo: foda-se você, seu corpo e os seus direitos!
Realmente Clóvis, o que me choca não é uma besta des(humana) propor um projeto destes, mas sim o mesmo tramitar pelas comissões e estar prestes a ser votado. E com chances de passar, pois calcula-se que mais de 1/3 da Câmara é ocupado por evangélicos, moralistas ou afins.
ResponderExcluirOs "moleques" que estão protestando em Estambul, Porto Alegre e São Paulo realmente tem toda a razão do mundo: tem que quebrar tudo e começar do zero.
Eu também temo pela aprovação do projeto, Manoel. Principalmente porque o tema não interessa ao governo, que detém maioria na Câmara, ocupado demais em colocar Belo Monte de pé para se preocupar com esta coisa incômoda que são os direitos humanos.
ExcluirE há quem diga que discutir a laicidade do Estado não tem importância nenhuma...
ResponderExcluirExatamente, Amanda. O descaso com os direitos humanos é proporcional à influência religiosa nas decisões e políticas públicas. Se há uma alternativa para minimizar isso, é o fortalecimento (ou, no caso do Brasil, a efetiva implantação) do Estado laico.
ExcluirVenceu o bom senso.
ResponderExcluiroi?
Excluironde?
perdi essa.
Eu tive o bom senso de nem responder.;)
ExcluirA laicidade do Estado já é colocada à prova a partir do momento que temos um Partido Social Cristão.
ResponderExcluirDefinitivamente, O GOVERNO NÃO ME REPRESENTA!
Partido cristão tem em muitos países. Aqui na Suécia tbem. Mas eles não conseguem mudar muita coisa importante porque a maior parte do parlamento tem bom senso. Se eles não são a maioria, não tem problema. Democracia é isso. Unir várias ideias, mas ter o bem coletivo como prioridade.
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