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quarta-feira, 27 de junho de 2018

Cultura do estupro e banalização da violência


POR CLÓVIS GRUNER
O cenário é o estúdio de gravação do “Roda Viva”, que segunda (25), na série de encontros com os presidenciáveis, supostamente entrevistou a deputada e candidata do PCdoB, Manuela D’Ávila. E digo supostamente, porque o que se viu passou longe de uma entrevista: a bancada “livremente escolhida” pela produção do programa não pretendia outra coisa além de desqualificar sua candidatura, e levou a tarefa a sério.

Parte da postura agressiva dos entrevistadores, que pareciam ter saído direto da Guerra Fria, se explica pelas posições ideológicas da presidenciável. E digo parcialmente porque, por exemplo, mesmo tensa, na entrevista com Guilherme Boulos o candidato do PSOL teve espaço para responder aos arguidores. Mulher e feminista, a Manuela D’Ávila não foi concedido o mesmo direito. Mas não pretendo analisar o programa ou defender o PCdoB, partido pelo qual não nutro nenhuma simpatia.

Cito o “Roda Viva” por um motivo: o embate entre Manuela D’Ávila e um dos coordenadores da campanha de Jair Bolsonaro e diretor da Sociedade Rural Brasileira, Frederico D’Ávila, em torno ao tema do estupro. Em um movimento mental tortuoso tão comum, por exemplo, entre os comentaristas anônimos desse blog, Frederico começou com a trajetória do avô, sobrevivente do nazismo, e terminou com a defesa da castração química como solução para o estupro. Em uma das muitas vezes que a interrompeu, afirmou que não existe “cultura do estupro” - para, em seguida, voltar ao avô.

Um dos argumentos (passe o exagero) do entrevistador é de que a castração química, ao punir exemplarmente os estupradores, resolveria o problema, argumento (passe, de novo, o exagero) brandido por Bolsonaro e um punhado de homens – e também algumas mulheres. A medida é defendida por quem entende o estupro como sexo, ainda que com violência, bastando para isso restringir, punir ou simplesmente eliminar o “desejo sexual”.

Não é sexo, é poder – Mas estupro não é sobre sexo; é sobre poder, e eles e elas ignoram, propositadamente ou não, que castrar quimicamente o estuprador pode até atacar um dos sintomas mas, fundamentalmente, deixa intocado o problema. Quando feministas enfatizam a importância, por exemplo, de se discutir relações de gênero nas escolas e outros espaços públicos, elas estão afirmando, entre outras coisas, que reduzir o estupro a um ato sexual, silencia sobre e reproduz o exercício de um poder que se sustenta na violência.

A castração química e sua lógica punitivista, nesse sentido, é parte intrínseca da cultura do estupro, razão pela qual Jair Bolsonaro e Frederico D’Ávila defendem a primeira e negam a existência da segunda. Mas o próprio Bolsonaro afirmou à deputada petista Maria do Rosário, que não a estuprava porque ela não merecia, para explicar depois que ela não merecia ser estuprada porque é feia. Alexandre Frota, um de seus cabos eleitorais no meio artístico (sim, estou dado a exageros hoje), contou em rede nacional como estuprou uma mulher, desqualificada ao longo da sua narrativa por ser “mãe de santo”.

Um pouco antes disso, o humorista Rafinha Bastos cunhou a piada segundo a qual mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Na mesma época, uma campanha da Nova Schin levou ao ar uma peça onde um homem invisível ameaça e constrange mulheres, invadindo seu vestiário. Questionado, o Conar respondeu com indiferença, alegando que a propaganda era “baseada em uma situação absurda”: o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando horror e medo, é invisível.

Para alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido. É nisso, parece, que acredita outro humorista, Danilo Gentili; segundo ele, um homem que espera uma mulher ficar bêbada para transar com ela é um “gênio”. Afinal de contas, se algo der errado e ele for denunciado, basta dizer que ela estava vestida de forma inadequada ou sozinha à noite em uma festa e bebeu demais: uma das características da cultura do estupro é responsabilizar a vítima pela violência de que é objeto.

A banalidade do mal – Nada disso é novidade: o estupro, ao contrário do que se afirma correntemente, não é uma aberração anti-civilizatória, fruto exclusivamente de algum comportamento monstruoso. Ele é, antes, uma prática que ao longo da histórica serviu para afirmar e consolidar diferentes experiências de dominação e, como exercício de poder e violência de homens sobre mulheres, é preexistente ao seu enquadramento jurídico moderno. Os exemplos abundam, e em nenhum deles estamos a falar de sexo.

Os conquistadores europeus estupraram mulheres indígenas na conquista do chamado “Novo Mundo”, nos séculos XVI e XVII, e africanas nos séculos XIX e XX. Nos genocídios étnicos, mulheres são estupradas antes de serem assassinadas; militares violentam mulheres quando vencem o inimigo, como foi o caso das alemãs pelos soldados russos; francesas acusadas de colaborar com a ocupação foram estupradas pelos seus concidadãos durante a chamada épuration legale; não muçulmanas são estupradas por fundamentalistas religiosos, etc...

No Brasil, portugueses estupraram índias durante o processo de ocupação da colônia; senhores brancos estupravam escravas nas senzalas; filhos das camadas médias e altas violentavam empregadas domésticas como iniciação à vida sexual. No Código Penal de 1940, o estupro era considerado um crime contra os costumes, a sociedade e seus valores, e não contra a mulher. Mesmo hoje, há decisões judiciais que, amparadas no artigo 59 do Código Penal, levam em conta a vida pregressa da vítima (seu comportamento sexual, por exemplo), para amenizar a responsabilidade do agressor.

É isso que mulheres denunciam como cultura do estupro e é contra isso que lutam. Sua banalização, e a negação é parte dela, corrobora para a naturalização da violência. Discutir e educar principalmente os homens para a igualdade nas relações de gênero pode não ser a única resposta, mas é um caminho necessário e urgente. O punitivismo sexista defendido por Bolsonaro e seu coordenador de campanha, por outro lado, não é a solução para o estupro. Antes pelo contrário, é parte do problema.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Os homens que não amam as mulheres


POR CLÓVIS GRUNER
Um juiz de Mococa, interior de São Paulo, ordenou judicialmente a esterilização de uma mulher, Janaína Aparecida Quirino, depois que o promotor público Frederico Liserre Barruffini instaurou ação judicial com o intento de constrangê-la a realizar o procedimento compulsoriamente. A alegação da promotoria foi que, moradora de rua, mãe de seis filhos e grávida de um sétimo, ela se recusou a fazer a laqueadura voluntariamente. A história veio à luz sábado último (09), na coluna do professor de Direito Constitucional, Oscar Vilhena, na Folha de São Paulo.

Desde então, o episódio repercutiu em outros veículos que ampliaram a cobertura e revelaram mais detalhes do caso, além de manifestações nas redes sociais, incluindo o apoio inconteste e irrestrito à medida da outrora estelar Janaina Paschoal, e um desmentido do juiz responsável pelo caso, Djalma Moreira Gomes Junior. Segundo ele, o procedimento foi realizado com o consentimento de Janaína Quirino, atualmente cumprindo pena por tráfico de drogas.

A trajetória de Janaína não é única em um país atravessado, historicamente, por contradições e desigualdades aparentemente insolúveis. A decisão do juiz, por outro lado e até onde sei, é inédita. Mas sua novidade, no entanto, está circunscrita ao ato – aliás, inconstitucional, o que tampouco parece fazer diferença em um país onde juízes driblam a legislação para contabilizar ganhos acima do teto constitucional.

No Brasil, a guerra contra os pobres vem de longa data. Mesmo antes de nos tornarmos nação, após nossa independência e durante o século XX, já no período republicano, nossas elites (econômicas, políticas ou intelectuais) não se furtaram a defender medidas drásticas, às vezes com o lastro da ciência, quando se tratou de sujeitar grupos vulneráveis. A decisão do juiz de Mococa é inédita, mas não é nova, porque retoma e atualiza uma ideia que foi lugar comum nas democracias ocidentais há até pouco menos de um século.

Eugenia e políticas de esterilização – Impulsionadas pelas teses naturalistas surgidas ainda nas primeiras décadas do século XIX, as teorias eugênicas se desenvolveram ao longo da segunda metade do oitocentos. Em seu cerne, a concepção da evolução humana como resultado imediato de leis biológicas e naturais que determinam o comportamento humano, sendo as raças constitutivas de um processo evolutivo no interior do qual se configuraram e cristalizaram as desigualdades.

A naturalização das diferenças legitimou um conjunto de proposições com desdobramentos políticos significativos: se as desigualdades são racialmente determinadas e estruturadas na natureza das populações, é possível asseverar a superioridade de uma raça sobre outras, mesmo a um nível mais cotidiano, afirmando a continuidade entre os caracteres racialmente determinados e a conduta moral dos indivíduos, por exemplo. A expansão colonialista levada a cabo pelas potências europeias se assentou, em grande medida, nesses discursos.

Amplamente aceita pela comunidade científica, a eugenia orientou igualmente ações políticas e governamentais dentro dos próprios países em que foi formulada. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente, a esmagadora maioria mulheres, nas primeiras décadas do século XX. Os esforços americanos chamaram a atenção de Hitler, que tratou de aprimorar as tecnologias de eliminação dos indesejados, elevando-as a parâmetros industriais de resultados bárbaros e trágicos amplamente conhecidos.

A política eugenista de esterilização em massa seduziu também cientistas e políticos brasileiros. Uma das bandeiras da Sociedade Eugênica de São Paulo, criada pelo médico Renato Kehl em 1918 e que nos anos subsequentes tornou-se um movimento mais nacional, era a revisão do Código Civil. Ele defendia a inclusão de um dispositivo que autorizasse o Estado a proibir o casamento entre indivíduos que apresentassem algum risco da geração de uma prole com tendência à degenerescência. Em algumas versões, a proibição do casamento foi substituída pela esterilização compulsória.

Guerra contra os fracos – Houve um recuo dos discursos eugênicos depois da Segunda Guerra, por razões óbvias. Mas isso tampouco significou, particularmente no Brasil, um abrandamento das relações tensas e violentas entre o Estado e os grupos dominantes, cujos interesses sempre coincidiram, e as populações fragilizadas. Do golpe de 64 aos esquadrões da morte e à Candelária; dos massacres de Eldorado do Carajás ao Carandiru; de Belo Monte à Maré; da prisão de Rafael Braga ao assassinato de Marielle Franco, o Estado de exceção tem sido a regra.

Não surpreende que o recrudescimento de discursos eugênicos, incluindo a defesa da esterilização compulsória, ganhou novo fôlego com as políticas públicas de inclusão que, nas primeiras gestões petistas, impulsionaram a ascensão social de parcelas da população mais pobre. Misto de desinformação e preconceito, proliferaram desde então discursos que insistem em condenar grupos inteiros a uma espécie de subcidadania. E eles incluem assegurar ao Estado o direito de interferir nos corpos, notadamente naqueles considerados descartáveis, precários, indignos mesmo do luto, na expressão de Judith Butler.

E tem sido sobretudo os corpos femininos o objeto privilegiado desse novo front reacionário. Um exemplo: em 2014, o deputado estadual Carlos Bolsonaro, um dos herdeiros de Voldemort, defendeu que o Bolsa Família fosse concedido apenas às famílias cujas mulheres aceitassem se submeter “às cirurgias de laqueadura”. Como bom “liberal conservador”, Bolsonaro argumentava a favor da “liberdade individual” porque, mesmo garantindo ao Estado normatizar e condicionar o recebimento de um benefício à esterilização das beneficiadas, a cirurgia seria “uma escolha do cidadão”. O pai deve ter se sentido orgulhoso.

Não há nisso surpresa ou coincidência. De um lado, parte dos programas sociais, como o Bolsa Família, transfere a elas responsabilidades e lhes dá maior autonomia, “empoderando” mulheres de extratos economicamente mais desassistidos. De outro, assistimos uma ofensiva que desqualifica as políticas e discussões de gênero, vinda de parlamentares e entidades como o Escola sem Partido. A violência contra Janaína Quirino, nesse sentido, é a expressão de um desejo cada vez menos contido de estendê-la a outros e, principalmente, a outras Janaínas. A guerra contra os fracos não tem fim. Contra as mulheres, tampouco.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Xingamentos são sempre sexistas



POR CECÍLIA SANTOS
Faz tempo que me intriga o fato de nunca (que eu me lembre) ter visto o comentário de alguma mulher nos posts do blog, com exceção daqueles das colegas que nele escrevem. Mas entre os comentaristas, há alguns anônimos que invariavelmente aparecem para desopilar o fígado com comentários agressivos, geralmente sem conexão com o texto.

Acontece que o ataque dessas criaturas que vivem na sombra diferem bastante a depender do gênero do autor ou autora do dia. No caso dos autores, os ataques têm mais a ver com posicionamento político. Já nós, autoras, ouvimos agressões associadas a nosso sexo.

Outro dia um anônimo deixou um comentário em um post meu dizendo que sou mal amada e solteirona. Ele sequer mencionava o assunto do post. Ora, essa ideia de que feministas não têm um macho pra chamar de seu (os caras realmente se acham a última bolacha do pacote) é realmente surrada e obtusa. Mas não deixa de ser um desaforo que um sujeito claramente intelectualmente inferior a mim tente me silenciar por meio de uma intimidação tão tosca.

Esse episódio me fez lembrar de todas as vezes em que nós mulheres somos silenciadas nas mais diversas situações: na família, no trabalho, na academia. Quando tentamos nos impor, alguém diz que estamos na TPM ou que não fizemos sexo na noite passada. Em restaurantes e bares, é até engraçado, os garçons sempre acham que devem se dirigir a um homem na mesa. E já ouvi de amigas que nenhum garçom atendia um grupo de mulheres em mesas de bares. Mas vejam só, onde já se viu essas mulheres saírem de casa para se divertir sem a presença de um macho protetor? Onde elas pensam que estão? No século XXI?

Vejam que a maioria dos xingamentos têm um sentido completamente diferente em suas formas feminina e masculina: vagabundo ou vadio é quem não gosta do trabalho, mas vagabunda ou vadia é quem tem uma vida sexual livre. Cachorro é alguém sem caráter, mas cachorra tem o mesmo sentido de vagabunda, assim como piranha, vaca e galinha. Cobra, por exemplo, só se usa para se referir a mulheres.

Histéricas e loucas são as mulheres. Um homem louco é aventureiro. É um dos recursos mais comuns para silenciar as mulheres.

Até quando o xingamento é dirigido a um homem, botam outra mulher no meio. É o caso de filho da puta e suas variantes, como se o problema do sujeito fosse a mãe. E tem também os xingamentos associados à parceira do sujeito, como no caso de corno. Xingamentos homofóbicos referem-se a comportamentos tipicamente femininos.

Na época do impeachment, fiquei chocada com imagens de pessoas acompanhadas de crianças e mandando uma senhora de mais de 60 anos de idade, que foi eleita em um processo democrático, “tomar no cu” (cu não tem acento, ok?). Nessas horas os moralistas deixam de lado o pudor. Um primo no dia da eleição usou o Facebook para chamar a presidente reeleita de vaca. Poxa, ainda que não se importe a mínima com as outras mulheres, ele tem filha, mãe e irmã.

É tão difícil assim perceber que essas atitudes mantêm a sociedade como um lugar inseguro para as mulheres e que a violência cotidiana começa a ser construída simbolicamente através da linguagem?

sexta-feira, 10 de março de 2017

"Aposentadoria fica, Temer sai"


POR CECÍLIA SANTOS
O título deste post foi o tema da manifestação do dia 8 de março em São Paulo, que reuniu milhares de mulheres. A reforma da previdência é mais uma das muitas medidas que visam desmontar as conquistas sociais e trabalhistas históricas, penalizando os mais pobres. Com o desmonte do SUS e da Previdência, que avança a passos largos, quem tem algum recurso vai contratar planos de saúde e de previdência privada (por que vocês acham que a Fiesp e o mercado financeiro apoiaram o impeachment?), enquanto os mais pobres vão ficar desamparados.

De todos os afetados, as mulheres são as mais prejudicadas com o aumento do tempo de contribuição e a perspectiva de se aposentar depois dos 65 anos.

É totalmente injusto igualar o tempo de contribuição das mulheres, considerando que temos jornadas duplas ou triplas. A divisão do trabalho doméstico continua a ser desigual e, se depender do conservadorismo cada vez mais forte, tem pouca chance de mudar. Pesquisa da Unicamp mostra que mulheres dedicam de 20 a 25 horas por semana ao trabalho doméstico, contra 9 horas pelos homens.

Mas nosso jurássico presidente da república reforça essa condição de desigualdade, conforme seu discurso proferido no próprio dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, deixando claro que a criação dos filhos é atribuição da mulher e não do homem:
Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos. E, se a sociedade de alguma maneira vai bem e os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas e, seguramente, isso quem faz não é o homem, é a mulher”
Por outro lado, as mulheres são frequentemente preteridas em contratações e promoções profissionais. E todo mundo sabe que uma pessoa de 40 anos, seja homem ou mulher, já é considerada velha para o mercado de trabalho. Então qual é a chance de uma mulher de 60 anos ser contratada a fim de completar seu tempo de contribuição e continuar a se sustentar? 

Toda essa situação levará a um empobrecimento geral da sociedade e a dependência financeira da mulher. E mesmo para quem se acha acima da questão, é preciso lembrar que o fato de haver uma população com baixíssimo poder aquisitivo compromete a economia. Se não há quem compre, o comércio e a indústria logicamente vão definhar e cada vez mais gente ficará desempregada.

Uma distribuição de renda mais igualitária entre homens e mulheres garante, entre outras coisas, que as mulheres tenham meios de sair do ciclo de violência doméstica, por meio da autonomia financeira. Frear a reforma da previdência não é só uma questão econômica, é também pela vida das mulheres.

terça-feira, 7 de março de 2017

Dia das mulheres: da luta ao consumo

POR SORAYA BARRETO
Embora algumas autoras tenham desmitificado o episódio que envolveu mulheres queimadas vivas numa fábrica inglesa, a data que marca o “Dia Internacional das Mulheres” é um dia de luta e reflexão sobre direitos, conquistas e perdas para mulheres ao redor do mundo. O 8 de Março é para todas nós necessário pelos diversos tipos de opressões e violências ainda vivenciadas pelas mulheres, em um suposto estado de direitos, até hoje. No dia em que nós, mulheres, formos verdadeiramente tratadas como iguais poderemos celebrar essa data, transformá-la em uma comemoração, por enquanto, ainda é uma dia à refletir, protestar e lutar.

Notamos desde as flores e chocolates, até as campanhas de cosméticos que a data vem ganhando uma significação capitalista esvaziada de seu verdadeiro teor. O 8 de março começou a ser explorado de forma comercial no inicio da década de 90. Muito diferente do real sentido concebido em 1910, durante a II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, na Dinamarca. A resolução propunha a criação de uma data anual para o debate dos direitos da mulher, e o objetivo era refletir sobre as lutas femininas e dessa forma obter suporte para conquistar o sufrágio universal.

Os Feminismos devem ser entendidos como movimentos sociais e populares que estão em luta, denunciando as diversas formas de opressão contra as mulheres, principalmente na lógica social que combina patriarcado e capitalismo. Este se fundamenta no incentivo ao consumo orientando a vida e as relações de poder, sendo fácil perceber a expansão da mercantilização em todas as suas dimensões. Sentimos este impacto especialmente com a exploração do corpo das mulheres e ao incentivo aos ditos papéis sociais, instituídos socialmente para as mulheres em “lugares domesticados” e inferiorizados.

Como exemplo, podemos citar a atual campanha da livraria Saraiva que lançou recentemente uma campanha para a “comemoração” desse dia de luta, promovendo 50% de desconto na compra de livros. Entretanto, o site da livraria disponibiliza apenas alguns títulos e temas específicos: “Os livros foram divididos nas categorias femininas: com atitude, românticas, que se cuidam, fashionistas, religiosas, que gostam de dançar, que fizeram história, mamães, de negócios, organizadas, geeks, conectadas, que curtem boa música ou que amam filme com pipoca”. Afinal de contas é assim que somos vistas, como cuidadoras, vaidosas e mães, com gêneros literários relacionados ao que se chama de “universo feminino”. O desconto não é válido para as áreas de exatas como Contabilidade e Engenharias, nem de saúde como as Ciências Biológicas, Medicina e muito menos Tecnologia. Fica claro o lugar da mulher e a ótica do consumo feminino pelas marcas. 

Conquistamos muito na ordem jurídica, mas ainda nos falta tanto para o real sentido de equidade social e a sua vivencia de forma plena. E contra esse esvaziamento do real sentido da data, pela crescente violência contra as mulheres e as perdas de direitos conquistados, iremos parar no dia 8 de março. 

É imatura e arcaica a forma como as marcas dialogam com as mulheres. Falta consultoria de gênero, estratégias que dialoguem com a equidade de gênero.



Soraya Barreto é professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco, Coordenadora do Curso de Publicidade e Propaganda UFPE e Coordenadora do OBMÍDIA - Observatório de Mídia: Gênero, Democracia e Direitos Humanos da UFPE

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Os homens que não amam as mulheres













POR CECÍLIA SANTOS

Um jornalista e uma hacker investigam o desaparecimento misterioso da sobrinha de um milionário há 20 anos, e no caminho desvendam uma série de assassinatos de mulheres cometidos com requintes de sadismo, pelo mero prazer de matar. Várias das vítimas são prostitutas de países do Leste Europeu, mulheres de quem “ninguém vai sentir falta”, segundo um dos assassinos. É a trama do primeiro livro da Trilogia Millenium, do autor sueco Stieg Larsson, cujo título é “Os homens que não amavam as mulheres”. 

Eu não quero falar sobre a chacina de Campinas, mas sobre como homens que comentam em redes sociais e portais de notícias estão encontrando justificativas para o assassino, ressuscitando o velho crime de honra, culpando a vítima pela morte premeditada e covarde de toda uma família.

São comentários de embrulhar o estômago. Há homens que defendem a submissão da mulher, outros colocam a mão no fogo pelo assassino quanto à acusação de que ele teria abusado sexualmente do filho. Isso é que é camaradagem entre machos.

Mas, segundo muitos, o grande culpado pela chacina é o feminismo. No balaio de sérias deturpações da realidade contidas nas cartas deixadas pelo assassino (que mistura a política nacional, o sistema prisional, os impostos e os direitos humanos), o ódio do assassino de Campinas não é dirigido apenas à ex-mulher, mas às mulheres que a apoiaram.

E eu sinto muito, mas é justamente isso que o feminismo faz: nós nos apoiamos umas às outras, fazemos o possível para que mulheres não sejam assassinadas, acolhemos as que sofrem violência e lutamos todos os dias contra a opressão de gênero. É até constrangedor explicar que o feminismo não quer colocar as mulheres acima dos homens, quer apenas que os homens parem de nos matar.

Não somos nós que destruímos famílias, o que destrói é a prepotência dos homens que não aceitam que as mulheres sejam tratadas como pessoas com direitos, vontade própria e autonomia. É compactuar com a misoginia dos amigos e relativizar ou justificar o feminicídio.

Os agressores de mulheres e feminicidas não são monstros, são apenas filhos saudáveis do patriarcado, gente que você encontra no elevador, no trabalho, na igreja, no bar, que até parecem ser bons maridos e pais de família, mas que, quando contrariados, são apenas homens que não amam as mulheres.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Mulheres não merecem ser estupradas


POR CLÓVIS GRUNER

A estas alturas todo mundo já sabe do erro crasso do IPEA na divulgação dos resultados da pesquisa, segundo a qual 65% dos brasileiros consideram que a mulher, a depender do tipo de roupa que usa ou de seu comportamento em público, merece ser estuprada. O equívoco, que entre outras coisas resultou na demissão do diretor do Instituto, provocou reações muitas e variadas. No seu texto de segunda, Jordi Castan sugere interesses escusos por detrás da pesquisa: “Por que divulgá-la justo agora?”, questiona. A pulga não incomodou apenas atrás da orelha do meu colega de blog: aqui e acolá, e antes mesmo do IPEA assumir o erro, li gente questionando sobre as “razões ocultas” do estudo.

É verdade que poucos foram tão longe quanto o delirante comentarista que, por falta de respeito, coragem ou os dois, preferiu manter-se anônimo: truculento como a maioria dos inominados, acusou Fernanda Pompermaier de “inocente útil” no grande plano petista de dominar a vida, o Universo e tudo mais. Segundo nosso leitor, que além de anônimo assume-se preguiçoso, a pesquisa foi “uma manobra bem urdida pelos porões pestistas (sic) para alavancar a anta deles, afinal, a poucos meses da eleição, que tal reforçar a visão de que as mulheres são vítimas dos machistas, assim, sempre que um candidato opositor, por acaso todos machos, falar mal da anta deles será visto como um monstro do lago Ness”. Certo, certo, sabemos que o machismo, o racismo, a homofobia e as diferenças e conflitos de classe são invenções do governo do PT e inexistiam antes de 2002.

Também é óbvio que não há distinção entre críticas à presidente e violência contra a mulher, dois eventos que devem ser tratados como absolutamente simétricos. Assim, durante a campanha, sempre que a candidata Dilma Rousseff for pressionada pelos concorrentes, “todos machos”, poderá erguer os braços e gritar: “estupro!”. Mas se a pesquisa foi uma “manobra bem urdida pelos porões pestistas (sic)” com fins eminentemente eleitoreiros, por que divulgar o erro e expor governo e candidata, submetendo-os à crítica sempre refinada da oposição, e nos obrigar a ler estultices como o comentário do nosso preguiçoso leitor? Afinal, a tal maquinação só surtiria efeito se continuássemos a acreditar nos primeiros resultados divulgados, não é mesmo? Ah, a preguiça...

CULTURA DO ESTUPRO – Estupro é coisa séria, e é sempre temerário quando um assunto dessa gravidade é tratado com irresponsabilidade – e pouco importa se o irresponsável é um Instituto ligado ao governo ou um leitor, anônimo, preguiçoso, paranoico e pouco capacitado intelectualmente. E não há motivo algum para comemorar o erro: é uma vergonha que 26% dos brasileiros considerem a mulher responsável pelo estupro. É uma infâmia que 26% dos brasileiros acreditem que o tipo de roupa ou o comportamento feminino induz ao ou facilita o estupro.

Os números reais não nos colocam numa posição confortável. Como se não bastasse, eles tem servido nesses dias para a propagação de um discurso que minimiza ou simplesmente nega as muitas violências, simbólicas e físicas, perpetradas diariamente contra a mulher. Os exemplos são muitos, a começar pela ignomínia que é equiparar o feminismo a um regime totalitário e genocida, presente na denominação “feminazi”, esse neologismo grosseiro tão ao sabor dos conservadores brasileiros. Nos ônibus, no metrô (e na campanha do metrô), nas ruas, no ambiente de trabalho, em casa: em que pese as mudanças percebidas principalmente nas últimas décadas, ainda há muito por fazer e mudar para tornar menos desigual (e eu não falo de diferença, mas de desigualdade) as relações de gênero. 

No caso específico do estupro, entre nós o tema é ainda muitas vezes banalizado, motivo de piada e tratado com arrogância e desdém, como no episódio do humorista Rafinha Bastos, para quem mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Ou na indiferença do Conar à campanha da Nova Schin, mantida no ar pelos marmanjos que comandam o órgão sob a alegação de ser “baseada em uma situação absurda”: afinal, na peça publicitária, o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando visível horror e medo, é invisível. Para alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido.

AS ESTATÍSTICAS DO HORROR – Os índices de violência física não minimizam, agravam a sensação de que vivemos em uma cultura que tem feito pouco das agressões contra mulheres. O Mapa da Violência de 2012, estudo conduzido há anos pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, dedicou um apêndice para tratar exclusivamente da violência de gênero. E anota uma tendência ao crescimento nas taxas de homicídio ao longo das últimas três décadas, chegando a quase 4.500 em 2010 (4,6 homicídios por 100 mil habitantes). Há uma breve interrupção na curva ascendente em 2007, que os pesquisadores atribuem à aprovação da Lei Maria da Penha no ano anterior. Breve, porque dos 3,9 por 100 mil habitantes registrados naquele ano, o número volta a crescer nos subsequentes (respectivamente, por 100 mil/hab.: 4,2 em 2008; 4,4 em 2009; e 4,6 em 2010). Importante registrar que os índices se referem exclusivamente a homicídios motivados por questões de gênero e exclui aqueles em que mulheres foram vítimas de assassinatos “comuns”.

Razão pela qual a violência contra a mulher não pode ser jogada na vala comum dos índices de criminalidade, porque se trata de um fenômeno específico, não raro praticada  nos limites de ambientes como o trabalho e a casa e perpetrada por homens conhecidos, em muitos casos colegas e membros da própria família, pais e maridos inclusive. Como é o caso do estupro: em 2012, foram mais de 51 mil casos registrados, uma taxa de 26,3 por 100 mil habitantes, segundo o Anuário de Segurança de 2013. Como a qualidade dos registros varia entre os estados, e muitos casos sequer chegam a ser denunciados, é bastante provável que os números, já altos, sejam ainda maiores: sabe-se que muitas vezes as vítimas, por vergonha ou porque ameaçadas, optam pelo silêncio.

Como se vê, não há muito que comemorar com o equívoco do IPEA. Mesmo com e apesar dele, os índices de violência contra a mulher deveriam ser motivo de preocupação: estamos entre os 10 países mais violentos do mundo, distante e à frente inclusive de nações vizinhas como a Argentina e o Chile. Lamentavelmente, vivemos uma realidade onde alguns preferem cruzar os braços, indiferentes à barbárie. Uma das coisas mais abjetas que li sobre o assunto nesses últimos dias foi assinada por Rodrigo Constantino, um dos blogueiros do conservadorismo de boutique tão em voga no país: para ele, “moças direitas” tem menos chance de serem vítimas de violência porque “não se faz um banquete diante de famintos”. Alguém precisa avisar o menino que mulheres não são um pedaço de carne, e que estupro é um ato de força e poder: não é sobre sexo, é sobre violência.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Fetiche, objeto e mercadoria

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Até o futebol americano feminino tem que ser "sexy"
O julgamento do caso Victoria Schier, a pesquisa do IPEA sobre o estupro e comportamento feminino, e a notícia recente de que ocorrem, em Joinville, quatro estupros por semana, chamaram-me muito a atenção nas últimas semanas. É notório que a questão de gênero no Brasil necessita ser debatida, visando uma equidade entre homens e mulheres.

Apesar do tema ser corriqueiramente tratado aqui no Chuva Ácida, sob vários aspectos, o assunto nunca cessa, pois o cenário ainda é desanimador. Há alguns meses tenho reparado com maior cuidado o jeito que a mídia trata a mulher, bem como o comportamento da sociedade nesta questão.

Ao passar pela BR-101 no Norte do Estado (caminho que percorro toda semana), verifiquei os outdoors espalhados pelas margens da rodovia. A quantidade de mulheres seminuas, em poses dignas dos melhores programas pornográficos da TV, exibindo um sexy appeal chega até a ser constrangedor. O mesmo ocorre nos comerciais de automóveis ou nos programas de auditório, com muitas, mas muitas mulheres exibindo seus corpos, produzindo na sociedade em geral (homens e mulheres) uma imagem fetichizada sobre o que é o corpo feminino: um reduto de satisfação e prazer a qualquer momento para uns, e modelo de perfeição impossível para outros (é só ver as capas das revistas).

Em consequência disto, a mulher vira um objeto. Objeto manipulável pela mídia, pela indústria do consumo e também pelas entrelinhas das relações de gênero. Mesmo que o IPEA relate um erro na pesquisa, ainda é assustador saber que 26% dos entrevistados culpam as mulheres pelo estupro. A culpa por este pensamento não deve ser dirigido somente às pessoas de maneira geral, mas também a quem as leva pensar assim O corpo da mulher é dela, e não deve se submeter à manipulação de nada e nem ninguém.

Por fim, o fetiche que virou objeto é uma boa mercadoria porque está impregnada na cabeça das pessoas. As marcas que se utilizam deste artifício usam e abusam do fetiche (à la Marx), colocando a mulher como um objeto a bel-prazer de quem puder consumir não somente o produto, mas também a ideia platônica de conquista da mulher perfeita, fechando, desta maneira, o ciclo.

Não é à toa que estupros sejam cada vez mais denunciados ou evidentes. Não é à toa que muitos culpam a mulher estuprada por “mostrar demais”. Não é à toa que as relações de gênero sejam iguais às de consumo, onde prevalece aquele que tem o poder de consumir os melhores objetos, e os mais apetitosos para seus fetiches. Se a mulher “mostra demais”, e é um “bom produto” que atende “o meu fetiche”, a culpa é dela que fez a “propaganda”, como nas centenas de outdoors, canais de TV, revistas, internet, etc.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Na maternagem e no feminismo

Gabriela com 6 meses e eu,
  mamando e viajando.

POR FERNANDA M. POMPERMAIER

Desde muito cedo eu soube que era feminista. Talvez não reconhecesse todas as facetas e sutilezas do machismo, mas identificava as suas principais construções e me incomodava muito com elas. Quis sempre provar que mulher pode e deve fazer o que quiser, quando quiser e como quiser. Lutei bravamente contra serviços domésticos, cozinha, padrão de beleza, agradar homem e tudo que eu achava que o machismo trazia consigo. Fumei, bebi, fiz tatuagem, pintei cabelo, tudo para demonstrar minha rebeldia à esses padrões estabelecidos, (pensava eu). Nunca fui a quietinha, comportada, princesinha, e eu me orgulhava de ser diferente. Hoje minha relação está melhor estabelecida com a cozinha, a limpeza ou os homens, reconheço suas respectivas necessidades e importâncias. 

Um casamento feminista se torna no início um pouco mais trabalhoso que um "convencional" porque existem algumas arestas a serem podadas. Os papéis não estão definidos no padrão "sociedade tradicional" e algumas questões precisam ser dialogadas para se chegar em consenso. Meu marido, é lógico, também é feminista e nesses 10 anos juntos construímos um relacionamento bastante igualitário. É válido salientar que as conquistas feministas acontecem geralmente sob protesto do grupo que, acostumado com o status quo, deseja manter tudinho como está. É necessário que as mudanças se iniciem do lado do oprimido pois de outra forma, elas não se legitimam. Digo isso para expor que, apesar de ser extremamente importante a abertura para diálogo e a recepção do marido nas discussões, o protagonismo das mudanças é da mulher. Sem nenhuma dúvida, é ela que precisa protestar quando sentir que algo no relacionamento está injusto. E é claro que muitas vezes, eu protestei. Detesto manifestações de controle e qualquer tentativa de regrar meu comportamento, decisões ou roupas podia ser motivo de briga, mesmo que fosse exposto às vezes apenas como uma opinião.

Bom, fechado o parênteses e voltando ao tema, feminista resolvida, eu virei mãe. E a maternidade nos leva a uma dedicação intensa especialmente nos primeiros meses. São novas questões relacionadas diretamente com aquele medo constante de virar dona de casa e acabar tendo mais responsabilidades que o pai, de acabar se anulando profissionalmente ou como indivíduo para se transformar apenas na mãe. O estado ajuda a discriminar a mulher oferecendo 4 a 6 meses de licença maternidade e para o homem apenas alguns dia. É a forma oficial do governo dizer: o pai não tem nada a ver com isso, vc, mãe, que deu, e engravidou, dê conta disso sozinha. O cúmulo do machismo. Mas por sorte, tive tempo e disposição para ler, boas companhias e pessoas próximas que me ajudaram a perceber que não existe nada de errado em ser mãe e ser feminista. Ambos podem e precisam viver simultâneamente, para construir uma maternidade mais coerente com o mundo atual.

E como é uma mãe feminista?

Sob o meu ponto de vista é uma mãe que:

- Vai tentar não imprimir em seus filhos estereótipos de gênero. Qualquer coisa que venha acompanhada de: "isso é pra menina" ou "isso é coisa de menino" não serve numa educação moderna. Jogamos fora, é lixo. Tudo é para todos ou o que não é pra todos não é para ninguém.

- Vai dar o máximo de si para ser uma boa mãe, sem achar que esse é seu único papel no mundo. Que os filhos percebam que a vida da mulher é feita de conquistas em diferentes áreas e que não é preciso ser perfeita em tudo. 

- Vai se esforçar para amamentar e ter parto natural, porque sabe que seu corpo e do seu filho assim desejam.

- Vai buscar relacionar a maternidade com satisfação e prazer, nunca com dor, sofrimento ou culpa relacionadas à sacrifícios.

- Vai estabelecer uma relação saudável de troca de carinho que não seja baseada na chantagem ou no sentimento de dívida com os pais por ter recebido a vida, casa ou comida. 

-  Não vai impor papéis sociais "pré-determinados" esperando que menina goste de boneca e não de vídeo-game ou que seja vaidosa e doce e o menino agressivo e forte. Fazer isso oferecendo brinquedos diversos e construindo senso crítico. Vai buscar elogiar usando palavras como: corajosa, independente, inteligente ou feliz.

- Vai buscar quebrar com a ditadura da beleza: da princesa que é loira e de olhos azuis. Vai mostrar a beleza dos cabelos negros, encaracolados, da mulher de quadril largo, de corpo robusto, da idosa ou da cadeirante. E vai mostrar que não há nenhum problema em se ter pêlos no corpo. 

- Vai respeitar sua orientação sexual, seja ela hetero, homo ou bi. 

- Vai respeitar sua identidade de gênero, seja cis ou transgênero. 

- Vai ensinar a respeitar seu corpo, seus desejos, seus limites. Que sim seja sim e não seja não.

- Vai auxiliar na descoberta da sexualidade, oferecendo informação, diálogo aberto e fugindo de moralismos estúpidos.

Eu poderia continuar com a lista, on and on, mas vamos combinar que dando conta dessa aqui, já fazemos nossa pequena revolução.
É possível ser feminista e viver a maternidade com toda a sua intensidade num relacionamento igualitário. É o que desejo à todas (os) nós!
Tudo por um mundo muito mais feliz, aberto e receptivo. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma introdução à vida não machista

POR CLÓVIS GRUNER

No último sábado, dia 13 de julho, cerca de três mil pessoas ocuparam as ruas do centro de Curitiba, durante a terceira Marcha das Vadias. Parte do calendário de manifestações da cidade, seguindo uma tendência iniciada em 2011, em Toronto, no Canadá, e que rapidamente se internacionalizou, a deste ano teve como tema “Desconstruindo o machismo dentro de todxs nós”. Aos desavisados ou insensíveis, pode parecer estranho falar de machismo em pleno século XXI. Mas não é preciso ser mulher para saber que não: apesar dos avanços, ainda há muito por fazer e mudar.

Hoje como ontem, o machismo continua a produzir violência. E não apenas nas sociedades e culturas orientais, importante dizer, e tampouco apenas a física. Igualmente cruel e violento é o machismo banalizado nas relações cotidianas, a naturalizar práticas e discursos que inferiorizam a mulher, quando mesmo não a tomam e tornam culpada pela brutalidade de que é frequentemente vítima. Um dos cartazes recorrentes nas Marchas, aliás, denuncia um dos traços emblemáticos desta atitude: vivemos em uma sociedade que insiste em ensinar às mulheres como não serem estupradas, quando o correto e necessário é ensinar os homens a não estuprar.

A POLÍTICA DO DESCONFORTO – Não é casual, portanto, que o corpo se faça presente na Marcha das Vadias de maneira tão intensa, nos cartazes, nas faixas, nas palavras de ordem. Mas ele é também um “campo de batalha”, transformado ele próprio em um discurso, um meio e sua mensagem. E não se trata apenas de reivindicar uma política que assegure, entre outras coisas, o direito ao corpo, mas de inseri-lo efetivamente na política. Esta é uma das razões pelas quais a Marcha das Vadias, e o feminismo de modo geral, provoca ainda tanto incômodo. Para muitos de nós, ver e ouvir mulheres afirmando-se como sujeitos de direitos é ainda desconfortante. Mas, creio, não são os seios nus a desfilar nas ruas a razão principal do desconforto.

Mostrar o corpo e exigir respeito e dignidade é confrontar o machismo, como disse acima, nas maneiras muitas vezes insidiosas com que ele se manifesta – o direito que os homens acreditam ter de tutelar os modos e maneiras femininos, por exemplo; ou os muitos meios pelos quais naturalizamos e justificamos desigualdades de gênero. É subverter a ordem estabelecida segundo a qual somente os homens héteros detém o privilégio de exercerem livremente sua sexualidade, relegando à mulher a humilhante condição de “objeto de desejo” do gozo masculino. É explodir os papeis sociais que definem, desde a infância, os lugares e as funções que cabem a meninos e meninas, mostrando que as relações de gênero, com suas muitas hierarquias, não são um dado da natureza, mas construtos históricos, cultural e socialmente estabelecidos. É expor o ridículo da postura conservadora e machista que, à falta de argumentos, agarra-se a estereótipos grosseiros para desqualificar as mulheres, o feminismo e as mulheres feministas, opondo a ele e a elas as Amélias e Marias do imaginário masculino Ocidental e cristão.

O CORPO É LAICO – De um modo muito singular e intenso, a Marcha das Vadias expõe ainda uma de nossas mais lamentáveis contradições: a precária laicidade do Estado brasileiro. E o faz trazendo para o espaço público um direito que os seguidos governos, à direita e à esquerda, insistem em negar, reféns que foram e são do fundamentalismo religioso: o aborto. Assunto polêmico e controverso, mas ao mesmo tempo incontornável, trata-se de uma pauta que apareceu já nas primeiras Marchas. Se na Europa a descriminalização do aborto já é realidade na maioria dos países, na América Latina caminhamos a passo de tartaruga, quando não de caranguejo: à exceção do Uruguai, de Cuba e em algumas cidades do México – incluindo a capital –, nos demais países a legislação tem viés criminalizador.

Por que o tema é importante? Ora, porque neste caso não se trata apenas do direito ao corpo, um motivo em si legítimo, mas de reconhecer à mulher o direito de não ser tratada como criminosa por decidir e escolher, livremente, sobre seu corpo, sua vida, seu futuro, etc... Mas trata-se também de um caso de saúde pública: praticado em larga escala, e muitas vezes sem as mínimas condições de higiene, ele tem sido responsável pela morte de milhares de mulheres e pela traumatização de outras tantas, submetidas a uma intervenção extremamente invasiva sem recursos adequados e sem apoio, principalmente psicológico.

Tal como disposto hoje, o debate privilegia unicamente o embrião e desconsidera a pessoa com projetos e propósitos, a mulher grávida. Tal inversão se sustenta em um mito moral: o da maternidade como sendo algo instintivo, parte da “natureza feminina”, o sofrimento tornado compulsório: ser mãe, afinal, é padecer no paraíso. Não é. Descriminalizar o aborto não é uma panaceia. Não se formarão filas quilométricas de gestantes nos postos de saúde – descriminalizar o aborto não se confunde com incentivá-lo. Trata-se de um direito de escolha que não pode ser tolhido a quem dele necessite ou queira a ele recorrer, porque outros julgam que seus valores e princípios são não apenas corretos, mas universalmente válidos. O corpo é laico, e não pertence ao Estado, nem tampouco à religião. As vadias estão a gritar isso nas ruas. Estamos dispostos a ouvi-las?

terça-feira, 16 de julho de 2013

Por um dia do homem que erradique o machismo

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Pode parecer contraditório, mas o dia do homem possui várias serventias, inclusive para uma sensibilização que erradique o machismo de nossa sociedade. A data comemorada no dia de ontem, infelizmente, já foi absorvida pelo mercado e tende a impedir este objetivo ou difundir o que não é pertinente para o momento. As perfumarias, lojas de roupas masculinas e setores correlatos desconfiguraram os reais debates,os quais precisam ser evidenciados.

E por mais que o Ministério da Saúde utilize a data para campanhas contra doenças exclusivamente masculinas, como o câncer de próstata, por exemplo, e também que grupos feministas alertem sobre uma data pela qual "celebra o incelebrável", a data serve para o alerta dos milhões de momentos de violência contra a mulher e que acontecem diariamente mundo afora e cometidos pelos homens. Humilhações, agressões físicas, morais, verbais, institucionais, e várias outras situações que estamos cansados de falar aqui no Chuva Ácida precisam parar de existir.

Infelizmente, isto ainda não é uma pauta estatal. As Secretarias de Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres, ambas do governo federal, poderiam muito bem utilizar esta data para campanhas que atinjam os homens de forma mais direta. O movimento feminista atinge um número maior de mulheres a cada ano que se sucede; porém, é um pouco tímido no diálogo com o público masculino e tem um grande campo para atuar. Além da proliferação dos movimentos de contestação feministas, precisamos da regressão do machismo institucionalizado em nossa sociedade. O 15 de julho precisa promover a mesma libertação de um 8 de março.

Desta forma, ao invés de celebrarmos uma data de cunho meramente comercial ou ligado à saúde pública, promoveremos uma mudança no perfil de nossa sociedade. O processo é lento, tortuoso, mas a longo prazo pode surtir grandes efeitos. Ao invés do enfrentamento e da simplória negação, devemos aproveitar as oportunidades. Ao invés da pura comemoração, o esclarecimento. Ao invés do consumismo, igualdade para todos.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Casar virgem. Por quê?



POR FERNANDA M. POMPERMAIER

Fiquei sabendo recentemente que existe um movimento novo entre jovens religiosos: o de casar-se virgem. 

Ok. Não parece um movimento novo já que nos faz lembrar os anos 1950, mas é recente. 
O interessante é que ele está atingindo meninos e meninas, o que faz com que o movimento seja menos machista, convenhamos.  
Afinal, a quem interessa que os jovens casem-se virgens? 
Não ter nenhuma experiência na cama pode fazer de alguém melhor ou pior parceiro na vida? Só posso concluir que é para pior porque a ausência dessa intimidade antes do casamento faz com que ambos se conheçam ainda menos. E fiquem curiosos, E acabem casando cedo porque né, é difícil segurar.

O tabu que existe em torno de experiência sexual no Brasil é extremamente contraditório, já que o que mais vendemos da nossa imagem são as mulheres seminuas nas praias e nas festas de carnaval. Todo mundo conhece o turismo sexual do Brasil e imagina que somos o país mais liberto e libertino da América. Mas, leve engano, pura hipocrisia, pode olhar, mas não pode tocar, pode tocar mas não pode comer. Deu? Tá rodada, minha amiga, não serve pra casar. Aliás o que é rodada, né, uma menina que fez sexo com 10 homens diferentes durante toda a vida, ou outra que faz todos os dias com o mesmo homem? A segunda pode ser bem mais experiente, mas a primeira vai ter um comportamento que não é "socialmente aceito". Os preconceitos mais antigos da história do machismo. 

Uma das coisas mais estúpidas que já escutei com relação a homens saiu mais ou menos assim: "cuidado com os homens, eles só querem se aproveitar de você, depois do sexo, te dispensam".

"Eles só querem se aproveitar" - ãh? E a mulher quer o quê?
"Depois do sexo, te dispensam" - minha amiga, se o cara te dispensou depois de ter feito sexo com ele por esse específico motivo, que assim seja, já vai tarde. Um homem que valoriza uma mulher pela sua virgindade ou pela sua resumida experiência sexual é um ignorante que não merece a sua companhia. Simples assim. Se o cara não consegue ver a mulher/ser humano por trás da vagina, faça o que tem de ser feito e dispense o neandertal.

O pior de tudo é que acreditei nessas bobagens quando era nova e perdi inúmeras oportunidades de sentir prazer, explorando o meu corpo e o de belos homens com quem fiquei. Muitas vezes pensei: não posso, não quero virar menina de uma noite, o que meus pais pensariam,...Deus está vendo.... e por aí vai a neura. O sentimento de culpa demorou para sumir e agora desejaria que ele jamais tivesse existido, e tudo teria sido mais leve, descomplicado e prazeroso, como sexo deve ser.

É engraçado porque é nítida a diferença na educação de meninas e de meninos com relação ao sexo. Para o homem experiência sexual vasta é motivo de orgulho, para a mulher pode ser sinônimo de depravação. E como se muda essa percepção? Quem deseja toda essa repressão para as mulheres? Homens machistas se sentem muito mal na presença de mulheres bem resolvidas sexualmente. É uma situação com a qual não estão habituados. Eles desejam mulheres frágeis, vulneráveis, sensíveis, inexperientes para que possam exercer sua dominação mais facilmente.
Mas os tempos são outros.
Vamos aprender a lidar com mulheres que sabem o que querem, dizem o que querem, tem controle sobre sua vida sexual e usam seus corpos e dos parceiros para o seu prazer.  

Eu não desejaria que ninguém casasse virgem, pelo contrário, torço para que o sexo seja cada vez menos tema tabu e seja encarado mais naturalmente. 
Sem "santas ou putas, apenas livres". 
(Frase retirada de cartaz da marcha das vadias, um grupo que luta por igualdade de direitos - tema para outro post).