Mostrando postagens com marcador gênero. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador gênero. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Os homens que não amam as mulheres


POR CLÓVIS GRUNER
Um juiz de Mococa, interior de São Paulo, ordenou judicialmente a esterilização de uma mulher, Janaína Aparecida Quirino, depois que o promotor público Frederico Liserre Barruffini instaurou ação judicial com o intento de constrangê-la a realizar o procedimento compulsoriamente. A alegação da promotoria foi que, moradora de rua, mãe de seis filhos e grávida de um sétimo, ela se recusou a fazer a laqueadura voluntariamente. A história veio à luz sábado último (09), na coluna do professor de Direito Constitucional, Oscar Vilhena, na Folha de São Paulo.

Desde então, o episódio repercutiu em outros veículos que ampliaram a cobertura e revelaram mais detalhes do caso, além de manifestações nas redes sociais, incluindo o apoio inconteste e irrestrito à medida da outrora estelar Janaina Paschoal, e um desmentido do juiz responsável pelo caso, Djalma Moreira Gomes Junior. Segundo ele, o procedimento foi realizado com o consentimento de Janaína Quirino, atualmente cumprindo pena por tráfico de drogas.

A trajetória de Janaína não é única em um país atravessado, historicamente, por contradições e desigualdades aparentemente insolúveis. A decisão do juiz, por outro lado e até onde sei, é inédita. Mas sua novidade, no entanto, está circunscrita ao ato – aliás, inconstitucional, o que tampouco parece fazer diferença em um país onde juízes driblam a legislação para contabilizar ganhos acima do teto constitucional.

No Brasil, a guerra contra os pobres vem de longa data. Mesmo antes de nos tornarmos nação, após nossa independência e durante o século XX, já no período republicano, nossas elites (econômicas, políticas ou intelectuais) não se furtaram a defender medidas drásticas, às vezes com o lastro da ciência, quando se tratou de sujeitar grupos vulneráveis. A decisão do juiz de Mococa é inédita, mas não é nova, porque retoma e atualiza uma ideia que foi lugar comum nas democracias ocidentais há até pouco menos de um século.

Eugenia e políticas de esterilização – Impulsionadas pelas teses naturalistas surgidas ainda nas primeiras décadas do século XIX, as teorias eugênicas se desenvolveram ao longo da segunda metade do oitocentos. Em seu cerne, a concepção da evolução humana como resultado imediato de leis biológicas e naturais que determinam o comportamento humano, sendo as raças constitutivas de um processo evolutivo no interior do qual se configuraram e cristalizaram as desigualdades.

A naturalização das diferenças legitimou um conjunto de proposições com desdobramentos políticos significativos: se as desigualdades são racialmente determinadas e estruturadas na natureza das populações, é possível asseverar a superioridade de uma raça sobre outras, mesmo a um nível mais cotidiano, afirmando a continuidade entre os caracteres racialmente determinados e a conduta moral dos indivíduos, por exemplo. A expansão colonialista levada a cabo pelas potências europeias se assentou, em grande medida, nesses discursos.

Amplamente aceita pela comunidade científica, a eugenia orientou igualmente ações políticas e governamentais dentro dos próprios países em que foi formulada. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente, a esmagadora maioria mulheres, nas primeiras décadas do século XX. Os esforços americanos chamaram a atenção de Hitler, que tratou de aprimorar as tecnologias de eliminação dos indesejados, elevando-as a parâmetros industriais de resultados bárbaros e trágicos amplamente conhecidos.

A política eugenista de esterilização em massa seduziu também cientistas e políticos brasileiros. Uma das bandeiras da Sociedade Eugênica de São Paulo, criada pelo médico Renato Kehl em 1918 e que nos anos subsequentes tornou-se um movimento mais nacional, era a revisão do Código Civil. Ele defendia a inclusão de um dispositivo que autorizasse o Estado a proibir o casamento entre indivíduos que apresentassem algum risco da geração de uma prole com tendência à degenerescência. Em algumas versões, a proibição do casamento foi substituída pela esterilização compulsória.

Guerra contra os fracos – Houve um recuo dos discursos eugênicos depois da Segunda Guerra, por razões óbvias. Mas isso tampouco significou, particularmente no Brasil, um abrandamento das relações tensas e violentas entre o Estado e os grupos dominantes, cujos interesses sempre coincidiram, e as populações fragilizadas. Do golpe de 64 aos esquadrões da morte e à Candelária; dos massacres de Eldorado do Carajás ao Carandiru; de Belo Monte à Maré; da prisão de Rafael Braga ao assassinato de Marielle Franco, o Estado de exceção tem sido a regra.

Não surpreende que o recrudescimento de discursos eugênicos, incluindo a defesa da esterilização compulsória, ganhou novo fôlego com as políticas públicas de inclusão que, nas primeiras gestões petistas, impulsionaram a ascensão social de parcelas da população mais pobre. Misto de desinformação e preconceito, proliferaram desde então discursos que insistem em condenar grupos inteiros a uma espécie de subcidadania. E eles incluem assegurar ao Estado o direito de interferir nos corpos, notadamente naqueles considerados descartáveis, precários, indignos mesmo do luto, na expressão de Judith Butler.

E tem sido sobretudo os corpos femininos o objeto privilegiado desse novo front reacionário. Um exemplo: em 2014, o deputado estadual Carlos Bolsonaro, um dos herdeiros de Voldemort, defendeu que o Bolsa Família fosse concedido apenas às famílias cujas mulheres aceitassem se submeter “às cirurgias de laqueadura”. Como bom “liberal conservador”, Bolsonaro argumentava a favor da “liberdade individual” porque, mesmo garantindo ao Estado normatizar e condicionar o recebimento de um benefício à esterilização das beneficiadas, a cirurgia seria “uma escolha do cidadão”. O pai deve ter se sentido orgulhoso.

Não há nisso surpresa ou coincidência. De um lado, parte dos programas sociais, como o Bolsa Família, transfere a elas responsabilidades e lhes dá maior autonomia, “empoderando” mulheres de extratos economicamente mais desassistidos. De outro, assistimos uma ofensiva que desqualifica as políticas e discussões de gênero, vinda de parlamentares e entidades como o Escola sem Partido. A violência contra Janaína Quirino, nesse sentido, é a expressão de um desejo cada vez menos contido de estendê-la a outros e, principalmente, a outras Janaínas. A guerra contra os fracos não tem fim. Contra as mulheres, tampouco.

terça-feira, 7 de março de 2017

Dia das mulheres: da luta ao consumo

POR SORAYA BARRETO
Embora algumas autoras tenham desmitificado o episódio que envolveu mulheres queimadas vivas numa fábrica inglesa, a data que marca o “Dia Internacional das Mulheres” é um dia de luta e reflexão sobre direitos, conquistas e perdas para mulheres ao redor do mundo. O 8 de Março é para todas nós necessário pelos diversos tipos de opressões e violências ainda vivenciadas pelas mulheres, em um suposto estado de direitos, até hoje. No dia em que nós, mulheres, formos verdadeiramente tratadas como iguais poderemos celebrar essa data, transformá-la em uma comemoração, por enquanto, ainda é uma dia à refletir, protestar e lutar.

Notamos desde as flores e chocolates, até as campanhas de cosméticos que a data vem ganhando uma significação capitalista esvaziada de seu verdadeiro teor. O 8 de março começou a ser explorado de forma comercial no inicio da década de 90. Muito diferente do real sentido concebido em 1910, durante a II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, na Dinamarca. A resolução propunha a criação de uma data anual para o debate dos direitos da mulher, e o objetivo era refletir sobre as lutas femininas e dessa forma obter suporte para conquistar o sufrágio universal.

Os Feminismos devem ser entendidos como movimentos sociais e populares que estão em luta, denunciando as diversas formas de opressão contra as mulheres, principalmente na lógica social que combina patriarcado e capitalismo. Este se fundamenta no incentivo ao consumo orientando a vida e as relações de poder, sendo fácil perceber a expansão da mercantilização em todas as suas dimensões. Sentimos este impacto especialmente com a exploração do corpo das mulheres e ao incentivo aos ditos papéis sociais, instituídos socialmente para as mulheres em “lugares domesticados” e inferiorizados.

Como exemplo, podemos citar a atual campanha da livraria Saraiva que lançou recentemente uma campanha para a “comemoração” desse dia de luta, promovendo 50% de desconto na compra de livros. Entretanto, o site da livraria disponibiliza apenas alguns títulos e temas específicos: “Os livros foram divididos nas categorias femininas: com atitude, românticas, que se cuidam, fashionistas, religiosas, que gostam de dançar, que fizeram história, mamães, de negócios, organizadas, geeks, conectadas, que curtem boa música ou que amam filme com pipoca”. Afinal de contas é assim que somos vistas, como cuidadoras, vaidosas e mães, com gêneros literários relacionados ao que se chama de “universo feminino”. O desconto não é válido para as áreas de exatas como Contabilidade e Engenharias, nem de saúde como as Ciências Biológicas, Medicina e muito menos Tecnologia. Fica claro o lugar da mulher e a ótica do consumo feminino pelas marcas. 

Conquistamos muito na ordem jurídica, mas ainda nos falta tanto para o real sentido de equidade social e a sua vivencia de forma plena. E contra esse esvaziamento do real sentido da data, pela crescente violência contra as mulheres e as perdas de direitos conquistados, iremos parar no dia 8 de março. 

É imatura e arcaica a forma como as marcas dialogam com as mulheres. Falta consultoria de gênero, estratégias que dialoguem com a equidade de gênero.



Soraya Barreto é professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco, Coordenadora do Curso de Publicidade e Propaganda UFPE e Coordenadora do OBMÍDIA - Observatório de Mídia: Gênero, Democracia e Direitos Humanos da UFPE

segunda-feira, 6 de março de 2017

Semana da mulher no Chuva Ácida: queremos ouvir as mulheres!


Iniciamos hoje uma série especial de posts com reflexões sobre a Semana da Mulher.

Embora várias conquistas de equidade de gênero tenham sido alcançadas, elas ainda são insuficientes e estão sempre sob ameaça. No geral, as mulheres continuam a cumprir tripla jornada, são frequentemente preteridas em contratações ou promoções por serem mães ou terem o potencial de engravidar, recebem menos que os homens nas mesmas funções, e sofrem assédio moral e sexual com mais frequência.

Em média 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil, a maioria vítima de companheiros, ex-companheiros ou homens próximos. A especificidade desse tipo de crime é a dependência econômica, emocional e/ou social das mulheres em relação a seus agressores, que dificulta o rompimento do ciclo de violência.

Outro dado alarmante (e subnotificado) é que uma mulher é estuprada no Brasil a cada 11 minutos, muitas vezes dentro de casa. A cultura machista naturaliza o assédio, e pesquisa realizada pela ONG Think Olga mostra que meninas sofrem o primeiro assédio em média aos 9,7 anos de idade.

A violência obstétrica é comum e consiste em negar à gestante/parturiente o direito à informação e a decidir sobre seu corpo, o que gera marcas físicas e emocionais permanentes. Por outro lado, um número absurdo de mulheres morrem ou ficam incapacitadas em virtude de abortos clandestinos, ignorando-se que o aborto, antes de ser uma questão moral pessoal, é um problema de saúde pública.

O 8 de março converteu-se nos últimos anos em uma data comercial, mas a data surgiu no contexto da luta pelo direito ao voto e por melhores condições de vida e trabalho, e é uma oportunidade para refletirmos sobre nossas demandas por segurança, respeito e dignidade.

Este ano, mulheres em dezenas de países vão aderir à Greve Internacional de Mulheres (1), abraçando causas como a campanha argentina “Ni Una Menos” (2). No Brasil haverá manifestações em mais de 30 cidades, criticando principalmente a reforma da previdência proposta pelo governo Temer.

O Chuva Ácida faz um esforço constante para ser um espaço de opinião plural e diverso e uma alternativa à grande mídia. Estamos bastante satisfeitos em termos hoje 4 autoras permanentes e convidadas ocasionais.

Nesta semana em especial, convidamos nossas leitoras a deixar um comentário sobre como a cidade de Joinville pode ser mais segura e acolhedora para as mulheres, em termos de políticas públicas, serviços públicos (creches, escolas, equipamentos de saúde), mobilidade (transporte público, intermodais), segurança (delegacias especializadas, segurança e iluminação nas vias públicas), trabalho, etc.

Nós do Chuva Ácida queremos ouvir as mulheres!



(1) http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/10/estilo/1486744741_095547.html
(2) http://niunamenos.com.ar/

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A mulher, o amante, o marido e as redes sociais

POR CECÍLIA SANTOS

A evolução da sociedade é realmente algo bizarro e contraditório. Nos últimos 100 anos, a tecnologia mudou radicalmente as formas como as pessoas se relacionam.

Na infância da minha mãe, meu avô levou os filhos de uma cidade de interior ao litoral de São Paulo num Fordinho a manivela, numa viagem de pouco mais de 300 km que levou 3 dias.


Pensar em se comunicar instantaneamente por voz e imagem com uma pessoa em qualquer parte do globo a um custo irrisório era, naquela época, uma fantasia improvável da ficção científica. E ainda assim o comportamento social parece ter evoluído muito pouco desde então. As pessoas continuam a ser quase tão moralistas quanto há 100 anos. 

A gente percebe que os papeis de gênero não mudaram quase nada quando um caso de traição vira assunto público e a mulher é o foco de todo escárnio e humilhação. A diferença é que, se antes era em praça pública, agora é nas redes sociais e no aplicativo Whatsapp.

A grande fofoca do dia aconteceu em Belo Horizonte. Um sujeito flagrou a própria mulher com um amigo seu entrando em um motel. O irmão do marido traído gravou um vídeo, alternando a função de videomaker improvisado com a de juiz da cunhada, a quem ofendeu com uma série de impropérios.

A cena toda é de um constrangimento absurdo. E aí a coisa toda se transforma numa espécie de festival de quem faz a piada mais engraçada e compartilhada, mesmo às custas da vida pessoal de uma mulher que está sendo destruída, que vai ser apontada na rua, pode perder o emprego, os amigos, a liberdade, e muitas vezes a coragem de seguir vivendo. 

Mas o importante é acumular seguidores às custas da dignidade alheia. Tristemente, já prevejo que dirão que ela será a culpada e merecedora de tudo de ruim que lhe acontecer, como castigo por ter traído o marido. Ao mesmo tempo, a traição masculina é prática comum e amplamente entendida e até tolerada.

Não é o caso aqui de discutir fidelidade e o contrato entre um casal. O problema é a diferença de tratamento dado ao homem e à mulher. Parece que, essencialmente, na nossa sociedade, o lugar do prazer não pertence à mulher. Muda a tecnologia, mas não muda a mentalidade.