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quinta-feira, 10 de abril de 2014

Mulheres não merecem ser estupradas


POR CLÓVIS GRUNER

A estas alturas todo mundo já sabe do erro crasso do IPEA na divulgação dos resultados da pesquisa, segundo a qual 65% dos brasileiros consideram que a mulher, a depender do tipo de roupa que usa ou de seu comportamento em público, merece ser estuprada. O equívoco, que entre outras coisas resultou na demissão do diretor do Instituto, provocou reações muitas e variadas. No seu texto de segunda, Jordi Castan sugere interesses escusos por detrás da pesquisa: “Por que divulgá-la justo agora?”, questiona. A pulga não incomodou apenas atrás da orelha do meu colega de blog: aqui e acolá, e antes mesmo do IPEA assumir o erro, li gente questionando sobre as “razões ocultas” do estudo.

É verdade que poucos foram tão longe quanto o delirante comentarista que, por falta de respeito, coragem ou os dois, preferiu manter-se anônimo: truculento como a maioria dos inominados, acusou Fernanda Pompermaier de “inocente útil” no grande plano petista de dominar a vida, o Universo e tudo mais. Segundo nosso leitor, que além de anônimo assume-se preguiçoso, a pesquisa foi “uma manobra bem urdida pelos porões pestistas (sic) para alavancar a anta deles, afinal, a poucos meses da eleição, que tal reforçar a visão de que as mulheres são vítimas dos machistas, assim, sempre que um candidato opositor, por acaso todos machos, falar mal da anta deles será visto como um monstro do lago Ness”. Certo, certo, sabemos que o machismo, o racismo, a homofobia e as diferenças e conflitos de classe são invenções do governo do PT e inexistiam antes de 2002.

Também é óbvio que não há distinção entre críticas à presidente e violência contra a mulher, dois eventos que devem ser tratados como absolutamente simétricos. Assim, durante a campanha, sempre que a candidata Dilma Rousseff for pressionada pelos concorrentes, “todos machos”, poderá erguer os braços e gritar: “estupro!”. Mas se a pesquisa foi uma “manobra bem urdida pelos porões pestistas (sic)” com fins eminentemente eleitoreiros, por que divulgar o erro e expor governo e candidata, submetendo-os à crítica sempre refinada da oposição, e nos obrigar a ler estultices como o comentário do nosso preguiçoso leitor? Afinal, a tal maquinação só surtiria efeito se continuássemos a acreditar nos primeiros resultados divulgados, não é mesmo? Ah, a preguiça...

CULTURA DO ESTUPRO – Estupro é coisa séria, e é sempre temerário quando um assunto dessa gravidade é tratado com irresponsabilidade – e pouco importa se o irresponsável é um Instituto ligado ao governo ou um leitor, anônimo, preguiçoso, paranoico e pouco capacitado intelectualmente. E não há motivo algum para comemorar o erro: é uma vergonha que 26% dos brasileiros considerem a mulher responsável pelo estupro. É uma infâmia que 26% dos brasileiros acreditem que o tipo de roupa ou o comportamento feminino induz ao ou facilita o estupro.

Os números reais não nos colocam numa posição confortável. Como se não bastasse, eles tem servido nesses dias para a propagação de um discurso que minimiza ou simplesmente nega as muitas violências, simbólicas e físicas, perpetradas diariamente contra a mulher. Os exemplos são muitos, a começar pela ignomínia que é equiparar o feminismo a um regime totalitário e genocida, presente na denominação “feminazi”, esse neologismo grosseiro tão ao sabor dos conservadores brasileiros. Nos ônibus, no metrô (e na campanha do metrô), nas ruas, no ambiente de trabalho, em casa: em que pese as mudanças percebidas principalmente nas últimas décadas, ainda há muito por fazer e mudar para tornar menos desigual (e eu não falo de diferença, mas de desigualdade) as relações de gênero. 

No caso específico do estupro, entre nós o tema é ainda muitas vezes banalizado, motivo de piada e tratado com arrogância e desdém, como no episódio do humorista Rafinha Bastos, para quem mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Ou na indiferença do Conar à campanha da Nova Schin, mantida no ar pelos marmanjos que comandam o órgão sob a alegação de ser “baseada em uma situação absurda”: afinal, na peça publicitária, o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando visível horror e medo, é invisível. Para alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido.

AS ESTATÍSTICAS DO HORROR – Os índices de violência física não minimizam, agravam a sensação de que vivemos em uma cultura que tem feito pouco das agressões contra mulheres. O Mapa da Violência de 2012, estudo conduzido há anos pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, dedicou um apêndice para tratar exclusivamente da violência de gênero. E anota uma tendência ao crescimento nas taxas de homicídio ao longo das últimas três décadas, chegando a quase 4.500 em 2010 (4,6 homicídios por 100 mil habitantes). Há uma breve interrupção na curva ascendente em 2007, que os pesquisadores atribuem à aprovação da Lei Maria da Penha no ano anterior. Breve, porque dos 3,9 por 100 mil habitantes registrados naquele ano, o número volta a crescer nos subsequentes (respectivamente, por 100 mil/hab.: 4,2 em 2008; 4,4 em 2009; e 4,6 em 2010). Importante registrar que os índices se referem exclusivamente a homicídios motivados por questões de gênero e exclui aqueles em que mulheres foram vítimas de assassinatos “comuns”.

Razão pela qual a violência contra a mulher não pode ser jogada na vala comum dos índices de criminalidade, porque se trata de um fenômeno específico, não raro praticada  nos limites de ambientes como o trabalho e a casa e perpetrada por homens conhecidos, em muitos casos colegas e membros da própria família, pais e maridos inclusive. Como é o caso do estupro: em 2012, foram mais de 51 mil casos registrados, uma taxa de 26,3 por 100 mil habitantes, segundo o Anuário de Segurança de 2013. Como a qualidade dos registros varia entre os estados, e muitos casos sequer chegam a ser denunciados, é bastante provável que os números, já altos, sejam ainda maiores: sabe-se que muitas vezes as vítimas, por vergonha ou porque ameaçadas, optam pelo silêncio.

Como se vê, não há muito que comemorar com o equívoco do IPEA. Mesmo com e apesar dele, os índices de violência contra a mulher deveriam ser motivo de preocupação: estamos entre os 10 países mais violentos do mundo, distante e à frente inclusive de nações vizinhas como a Argentina e o Chile. Lamentavelmente, vivemos uma realidade onde alguns preferem cruzar os braços, indiferentes à barbárie. Uma das coisas mais abjetas que li sobre o assunto nesses últimos dias foi assinada por Rodrigo Constantino, um dos blogueiros do conservadorismo de boutique tão em voga no país: para ele, “moças direitas” tem menos chance de serem vítimas de violência porque “não se faz um banquete diante de famintos”. Alguém precisa avisar o menino que mulheres não são um pedaço de carne, e que estupro é um ato de força e poder: não é sobre sexo, é sobre violência.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

As estatísticas do IPEA e outras peças de ficção

POR JORDI CASTAN



A divulgação, de forma irresponsável, de uma pesquisa elaborada pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Aplicadas) e que, entre outros dados, informava que 65% dos brasileiros achavam que a forma de vestir das mulheres era um incentivo ao estupro, gerou uma forte reação em todo o país. Os dados apresentados pelo IPEA colocaram de uma hora para outra o Brasil na Idade Média ou na barbárie da Índia de hoje.



Se a fonte não fosse o IPEA, um mínimo de sentido comum deveria ter permitido identificar que os dados apresentados não faziam sentido. Se é verdade que isto não é Suécia tampouco vivemos na Índia ou no Afeganistão, países e sociedades em que o estupro não é visto como uma brutalidade inaceitável e milhares de mulheres são estupradas anualmente, com o silêncio cúmplice de toda a sociedade.

No Brasil, os casos de furtos, roubos e estupros lideram as pesquisas e junto com homicídios, latrocínios e assaltos ocupam um lugar predominante no ranking da violência e da criminalidade, neste país em que a vida vale cada dia menos.

Voltemos às pesquisas. A minha pesquisa favorita é a que utiliza a "teoria do frango" como metodologia. Ela parte da premissa que se hoje eu comi um frango e você nenhum, cada um de nos comeu meio frango. E estamos bem alimentados. Outros denominam esta metodologia "do freezer", aquela que diz que se colocamos a cabeça no forno e os pés no freezer a temperatura média será perfeita.

Aplicando esta lógica simples, para que 65% dos brasileiros achassem que a forma de vestir incentivava o estupro, seria preciso que em algumas regiões ou grupos pesquisados, praticamente a totalidade da população pesquisada manifestasse a sua concordância, para compensar o grupo, entre os que me incluo, que acha que cada um é livre para se vestir da forma que achar adequado, sem que isso possa servir de justificativa para que alguém seja estuprado.

As perguntas que não saem da minha cabeça são:
- Por que divulgar esta pesquisa justamente agora?
- Quem á encomendou e com que objetivo?
- Por que não houve uma análise mais criteriosa dos dados, quando foram divulgados?
- Ninguém percebeu o absurdo do resultado? Casualidade?

Não acredito em casualidades, tampouco acredito que Deus jogue dados. Acho sim que os pesquisadores do IPEA jogaram com os dados. Pode ser que os dados utilizados pelo IPEA sejam aqueles com seis lados, em que cada um dos lados está numerado de 1 a 6 e que são lançados ao azar, para quem gosta de acreditar na sorte.

Este episódio me deixa com a impressão que o nosso índice de crendice é muito elevado e a capacidade de análise dos dados e informações que recebemos a cada dia é cada vez menor. E assim ficamos mais vulneráveis e fazeis de manipular.