POR CLÓVIS GRUNER
A estas alturas todo mundo já sabe do erro crasso do IPEA na
divulgação dos resultados da pesquisa, segundo a qual 65% dos brasileiros consideram que a mulher, a depender do tipo de roupa que usa ou de seu comportamento em público, merece ser estuprada. O equívoco, que entre outras coisas resultou na demissão do diretor do Instituto, provocou reações muitas e variadas. No
seu texto de segunda, Jordi Castan sugere interesses escusos por detrás
da pesquisa: “Por que divulgá-la justo agora?”, questiona. A pulga não incomodou apenas atrás da orelha do meu colega de blog: aqui e
acolá, e antes mesmo do IPEA assumir o erro, li gente questionando sobre as “razões
ocultas” do estudo.
É verdade que poucos foram tão longe quanto o delirante comentarista que, por falta de respeito, coragem ou os dois, preferiu manter-se anônimo: truculento como a maioria dos inominados, acusou Fernanda Pompermaier de “inocente útil” no grande plano petista de dominar a vida, o Universo e tudo mais. Segundo nosso leitor, que além de anônimo assume-se preguiçoso, a pesquisa foi “uma manobra bem urdida pelos porões pestistas (sic) para alavancar a anta deles, afinal, a poucos meses da eleição, que tal reforçar a visão de que as mulheres são vítimas dos machistas, assim, sempre que um candidato opositor, por acaso todos machos, falar mal da anta deles será visto como um monstro do lago Ness”. Certo, certo, sabemos que o machismo, o racismo, a homofobia e as diferenças e conflitos de classe são invenções do governo do PT e inexistiam antes de 2002.
É verdade que poucos foram tão longe quanto o delirante comentarista que, por falta de respeito, coragem ou os dois, preferiu manter-se anônimo: truculento como a maioria dos inominados, acusou Fernanda Pompermaier de “inocente útil” no grande plano petista de dominar a vida, o Universo e tudo mais. Segundo nosso leitor, que além de anônimo assume-se preguiçoso, a pesquisa foi “uma manobra bem urdida pelos porões pestistas (sic) para alavancar a anta deles, afinal, a poucos meses da eleição, que tal reforçar a visão de que as mulheres são vítimas dos machistas, assim, sempre que um candidato opositor, por acaso todos machos, falar mal da anta deles será visto como um monstro do lago Ness”. Certo, certo, sabemos que o machismo, o racismo, a homofobia e as diferenças e conflitos de classe são invenções do governo do PT e inexistiam antes de 2002.
Também é óbvio que não há distinção entre críticas à
presidente e violência contra a mulher, dois eventos que devem ser tratados
como absolutamente simétricos. Assim, durante a campanha, sempre que a
candidata Dilma Rousseff for pressionada pelos concorrentes, “todos machos”, poderá
erguer os braços e gritar: “estupro!”. Mas se a pesquisa foi uma “manobra bem
urdida pelos porões pestistas (sic)” com fins eminentemente eleitoreiros, por
que divulgar o erro e expor governo e candidata, submetendo-os à crítica sempre
refinada da oposição, e nos obrigar a ler estultices como o comentário do nosso
preguiçoso leitor? Afinal, a tal maquinação só surtiria efeito se
continuássemos a acreditar nos primeiros resultados divulgados, não é mesmo? Ah,
a preguiça...
CULTURA DO ESTUPRO – Estupro é coisa séria, e é sempre
temerário quando um assunto dessa gravidade é tratado com irresponsabilidade – e pouco importa se o irresponsável é um Instituto ligado
ao governo ou um leitor, anônimo, preguiçoso, paranoico e pouco capacitado intelectualmente.
E não há motivo algum para comemorar o erro: é uma vergonha que 26% dos
brasileiros considerem a mulher responsável pelo estupro. É uma infâmia que 26%
dos brasileiros acreditem que o tipo de roupa ou o comportamento feminino induz
ao ou facilita o estupro.
Os números reais não nos colocam numa posição confortável. Como
se não bastasse, eles tem servido nesses dias para a propagação de um discurso
que minimiza ou simplesmente nega as muitas violências, simbólicas e físicas,
perpetradas diariamente contra a mulher. Os exemplos são muitos, a começar pela
ignomínia que é equiparar o feminismo a um regime totalitário e genocida,
presente na denominação “feminazi”, esse neologismo grosseiro tão ao sabor dos
conservadores brasileiros. Nos ônibus, no metrô (e na campanha do metrô), nas
ruas, no ambiente de trabalho, em casa: em que pese as mudanças percebidas
principalmente nas últimas décadas, ainda há muito por fazer e mudar para
tornar menos desigual (e eu não falo de diferença, mas de desigualdade) as
relações de gênero.
No caso específico do estupro, entre nós o tema é ainda
muitas vezes banalizado, motivo de piada e tratado com arrogância e desdém,
como no episódio do humorista Rafinha Bastos, para quem mulheres feias devem
não acusar, mas agradecer seu estuprador. Ou na indiferença do Conar à campanha
da Nova Schin, mantida no ar pelos marmanjos que comandam o órgão sob a
alegação de ser “baseada em uma situação absurda”: afinal, na peça
publicitária, o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário,
provocando visível horror e medo, é invisível. Para alguns, se a mulher for
feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido.
AS ESTATÍSTICAS DO HORROR – Os índices de violência física não
minimizam, agravam a sensação de que vivemos em uma cultura que tem feito pouco
das agressões contra mulheres. O Mapa da Violência de 2012, estudo
conduzido há anos pelo sociólogo Julio
Jacobo Waiselfisz, dedicou um apêndice para tratar exclusivamente da violência
de gênero. E anota uma tendência ao crescimento nas taxas de homicídio ao longo
das últimas três décadas, chegando a quase 4.500 em 2010 (4,6 homicídios por
100 mil habitantes). Há uma breve interrupção na curva ascendente em 2007, que
os pesquisadores atribuem à aprovação da Lei Maria da Penha no ano anterior. Breve,
porque dos 3,9 por 100 mil habitantes registrados naquele ano, o número volta a
crescer nos subsequentes (respectivamente, por 100 mil/hab.: 4,2 em 2008;
4,4 em 2009; e 4,6 em 2010). Importante registrar que os índices se referem exclusivamente a homicídios motivados por questões de gênero e
exclui aqueles em que mulheres foram vítimas de assassinatos “comuns”.
Razão pela qual a violência contra a mulher
não pode ser jogada na vala comum dos índices de criminalidade, porque se trata
de um fenômeno específico, não raro praticada nos limites de ambientes como o trabalho e a
casa e perpetrada por homens conhecidos, em muitos casos colegas e membros da
própria família, pais e maridos inclusive. Como é o caso do estupro: em 2012,
foram mais de 51 mil casos registrados, uma taxa de 26,3 por 100 mil
habitantes, segundo o Anuário de Segurança de 2013.
Como a qualidade dos registros varia entre os estados, e muitos casos sequer
chegam a ser denunciados, é bastante provável que os números, já altos, sejam
ainda maiores: sabe-se que muitas vezes as vítimas, por vergonha ou porque ameaçadas,
optam pelo silêncio.
Como se vê, não há muito que comemorar com o equívoco do IPEA. Mesmo com e apesar dele, os índices de violência contra a mulher deveriam ser
motivo de preocupação: estamos entre os 10 países mais violentos do mundo, distante e à frente inclusive de nações vizinhas como a Argentina e o Chile. Lamentavelmente, vivemos uma realidade onde alguns preferem cruzar os braços, indiferentes à barbárie. Uma
das coisas mais abjetas que li sobre o assunto nesses últimos dias foi
assinada por Rodrigo Constantino, um dos blogueiros do conservadorismo de
boutique tão em voga no país: para ele, “moças direitas” tem menos chance de
serem vítimas de violência porque “não se faz um banquete diante de famintos”. Alguém
precisa avisar o menino que mulheres não são um pedaço de carne, e que estupro é um ato de força e poder: não é sobre sexo, é sobre violência.