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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A meritocracia é uma utopia


POR CLÓVIS GRUNER

Há algumas semanas, José António Baço escreveu aqui no blog sobre meritocracia. Volto ao assunto, mas para abordá-lo sob outro prisma e motivado por um comentário ao texto do Murilo Cleto, publicado no final de semana. Eis o comentário, reproduzido apenas parcialmente:

(...)

Na sociedade de mercado não há essa utopia, há diferenças de classes (como também há nas ditaduras ditas comunistas), porém, quando a sociedade aceita meritocracia e a enxerga com bons olhos, TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de vida.
A ideia de que a riqueza se resume a um bolo fatiado é estapafúrdia! Riqueza produz mais riqueza, a população não tem de se contentar com aquele pedaço do bolo, pois ele se multiplica, basta o cidadão estudar, se qualificar, trabalhar... mas isso poucos querem, então, para muitos, sobra a utopia do comunismo.

Se o autor realmente acredita no que escreveu, e a seguir seu raciocínio, os milhões de corpos que diariamente agonizam de fome são, não em última, mas em primeira instância, os responsáveis pela sua própria miséria. Se “TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de vida”, bastaria ao indivíduo “estudar, se qualificar, trabalhar” e melhorar de vida. Afinal, se a meritocracia provou que “TODOS tem condições” de viver dignamente, é óbvio que o gajo só continua a fuçar no lixão ou a viver em um campo de refugiados porque quer – e porque, no fim das contas, ainda lhe “sobra a utopia do comunismo” a compensar o mau cheiro e a condição degradante de refugiado.

Minha fé na humanidade anda quase no negativo, mas mesmo assim me choca a ideia de alguém expressar em tão poucas linhas tanto desprezo e insensibilidade pelo sofrimento alheio. Quero acreditar que não foi intencional: ele apenas repetiu o que deve ter lido em algum lugar – uma página do Facebook, algum blog de direita, talvez um artigo assinado por um dos profetas do neoliberalismo que pipocam nas colunas de opinião. Nesse caso, o problema não é a indiferença, ou não só ela, mas a ignorância conceitual e histórica. E para isso há chance de cura: basta o cidadão estudar e se qualificar. O que, no fim das contas, dá sempre um pouco de trabalho.

MÉRITO PARA QUEM? – A ideia de “meritocracia” tem sua história, e ela é mais ou menos recente. Filha dileta e direta do liberalismo iluminista, ela surge em um contexto onde imperavam o privilégio dinástico e hereditário, em detrimento dos valores e qualidades individuais. Falo das chamadas “sociedades de corte”, com sua hierarquia social no limite da imobilidade e onde se decidia, desde o berço, quais as posições e funções sociais a serem ocupadas e exercidas. No Antigo Regime, e quem passou por um banco escolar sabe disso, imperava o “privilégio” em detrimento do “mérito”.

Os liberais dos séculos XVII e XVIII teceram severas críticas a uma sociedade que produzia permanentemente as condições – culturais, sociais, políticas, econômicas – de sua própria reprodução, privilegiando sempre os já privilegiados. Um dos alicerces dos seguidos ataques desferidos contra a aristocracia e a nobreza, a meritocracia surge radicalmente subversiva: por meio dela, não apenas se defendia o valor individual em detrimento das posições nobiliárquicas, como ao fazê-lo se asseverava a possibilidade de mobilidade e ascensão daqueles indivíduos dispostos a fazer um bom uso de sua inteligência (a expressão é kantiana) para ascender e conquistar, por merecimento, melhores e mais vantajosas posições sociais e econômicas.

Mas há um elemento fundamental que não escapou à sensibilidade dos primeiros liberais: o mérito, por individual que seja, não aflora senão em uma sociedade de igualdade; igualdade não ontológica, mas de condições e de oportunidades para todos os homens diferentes entre si. A meritocracia, noção tão castigada pelos liberais de internet, é produto de uma utopia, a do liberalismo, que opõem a uma sociedade atravessada por muitas desigualdades, a promessa de uma isonomia necessária para que os indivíduos pudessem exercer seus talentos sem que as condições desiguais entre eles favorecessem uns em detrimento de outros.

ASPIRAR A IGUALDADE – Diferente do comentário que motivou esse texto, a meritocracia não é uma panaceia a justificar a desigualdade social apelando à competência de alguns poucos enquanto acusa, irresponsavelmente, a indolência da maioria. Ela contém, desde o berço, a possibilidade utópica de que as condições objetivas mínimas de igualdade serão asseguradas para que os indivíduos possam, livremente, exercer seus talentos. Daí o projeto, acalentado pelos iluministas do setecentos, de uma educação universal, entendida como condição primária à aquisição das habilidades necessárias para que se pudesse, efetivamente, falar em uma sociedade baseada no mérito.

E não é preciso devorar tratados filosóficos, porque tudo isso está nos documentos fundadores do liberalismo político e da noção moderna de democracia: a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; e as Constituições americana e francesa, ambas de 1791. Em que pese as diferenças, há neles alguns conceitos chaves firmemente reiterados: todos os homens nascem e são iguais, e a cada um deles deve ser assegurado o direito à liberdade, a propriedade e a busca da felicidade.

Poucas ideias trazem uma energia tão utópica quanto essas. E poucas doutrinas aspiraram tanto à igualdade quanto o liberalismo. E é lamentável que o que sobrou foi pouco, tão pouco, ao ponto de poder-se  hoje resumir ideias e projetos políticos tão engenhosa e criativamente urdidos em meia dúzia de sentenças doutrinárias infelizes, que cabem na caixa de comentários de um blog.


sábado, 22 de fevereiro de 2014

A onda


POR MURILO CLETO

Existe um erro categórico na pressuposição de que os movimentos contra o que se consideram injustiças venham exclusivamente da esquerda. Mas é verdade, por outro lado, que ondas conservadoras só tenham aparecido em momentos de significativa transformação social, como a que se consolida desde a última década no Brasil. 

Em 2011, o país atingiu o menor índice de desigualdade social da história. Entre 2001 e 2011, o crescimento real da renda dos 10% mais pobres foi de 91,2%, ao passo que entre os mais ricos a ascensão foi de 16%. Desde 2003, a economia brasileira cresceu 40,7%; enquanto o PIB, 27,7%. O resultado? Uma melhoria considerável da situação dos domicílios. Em 10 anos, o Bolsa Família tirou 36 milhões de pessoas da extrema pobreza.

Levando em consideração que o pior índice de igualdade social no país foi registrado em 1989, o avanço desde a instituição do Plano Real é mais do que surpreendente. No último ano do governo Sarney, a inflação acumulada chegou a 1764,86%, enquanto os 10% mais ricos do país detinham mais de 50% de toda a renda e metade do população dividia 10,56% dela. Mas se engana quem acredita que descende apenas da catastrófica gestão de Sarney este panorama assustador: como se sabe, o Brasil que primeiro fez crescer o bolo pra depois dividir esqueceu de completar a tarefa e, em 1976, o índice foi quase tão ruim quanto às vésperas da primeira eleição em quase 30 anos depois do regime militar.

O papel do Estado tem sido vital nesta atual guinada. Somente o Programa Bolsa Família é responsável por 13% desta redução da desigualdade, somada a 22% de outros repasses, incluindo aposentadorias e pensões. Apesar disso, mais da metade desta evolução na economia está atrelada à renda do trabalho, sobretudo o formal, que simplesmente dobrou desde 2004.

Apesar de ganhar ainda, em média, 40% menos, a população negra do país dobrou o crescimento da renda em relação aos brancos entre 2007 e 2010. Em 2001, 56% dos negros tinham geladeira em casa; em 2010, já eram 97%. Durante a última década, o acesso de negros à internet decuplicou. Em 10 anos, graças a política de cotas, triplicou o número de negros na Universidade. Entre 2002 e 2011, a renda das mulheres aumentou 68%, bem mais que o índice masculino referente ao mesmo período, de 43,1%, ainda que o desnível de gênero continue gritante. 

NOSTALGIA CONSERVADORA - Enquanto isso, uma onda tem tomado conta do país. É a que torce o nariz pra esse bolo que cresce e começa a se dividir ainda dentro no forno. Mais do que nunca, os veículos de comunicação estão tomados por uma reação nervosa diante disso. Inconformado com as políticas públicas do governo Lula, Diogo Mainardi deixou a Veja pra figurar entre os mais ilustres comentaristas da direita sofisticada no Manhattan Connection, exibido pelo GNT; Reinaldo Azevedo, outro ícone da rejeição a este movimento também migrou para a Folha de S. Paulo e a sua popularidade cresceu progressivamente; Rachel Sheherazade foi recentemente levada para a badalada seção Tendências e Debates do mesmo jornal para fazer um pout pourri sobre Cuba e o Primeiro Comando da Capital, passando pela Copa do Mundo e o Estatuto da Criança e do Adolescente, para justificar o seu posicionamento de "compreensão" diante dos "justiceiros" que amarraram um "marginalzinho" de 15 anos num poste do Flamengo; Lobão deixou de vociferar apenas no Twitter para ocupar as páginas da revista Veja e, dentre outras patacoadas, dizer que reclamam de tortura nos anos de chumbo aqueles que tiveram "umas unhazinhas arrancadas"; Demétrio Magnoli trilha o mesmo caminho quando se refere aos anos de chumbo como "ditabranda" e milita pelo fim da política de cotas.

Infelizmente, a onda não está somente nos jornais. Em Brasília, Aloysio Nunes quase aproveitou a esteira conservadora pra conseguir emenda na Constituição pela redução da maioridade penal. Nada menos que 93% dos paulistanos estão com ele, ainda que, nas estatísticas, os jovens sejam, na verdade, as maiores vítimas da violência. Somente em 2010, foram mortos 8.600 jovens no país. Em 2012, mais de 12.000 crianças foram vítimas de maus-tratos. Entre os adolescentes em conflito com a lei, apenas 8,4% cometeram homicídios. Na Fundação Casa, somente 0,9% deles estiveram envolvidos com latrocínio. Dos favoráveis à redução proposta por Nunes, 9% ainda defendem que a maioridade penal seja de 12 anos. No Congresso, tramitam 34 projetos que propõem mudanças na legislação sobre o aborto. 31 deles defendem o recrudescimento das políticas públicas sobre a autonomia da mulher na prática abortiva. É lá também que hoje um projeto de lei "antiterrorismo" figura entre as prioridades de uma lavra que se aproveita do clima de comoção nacional diante do descontrole do Estado frente às manifestações e criminaliza movimentos populares com critérios evasivos de jurisdição.

A onda não está somente em Brasília. Nas ruas, caseiros são espancados até a morte por serem confundidos com ladrões de celular e suspeitos de pequenos furtos amarrados em postes, assim como deficientes mentais pretos e pobres; professores de ensino superior ridicularizam passageiros que usam bermuda nos aeroportos; cobradores são chamados de "pretos safados" nos ônibus; "rolezinhos" nos shoppings são sumariamente proibidos, apesar da inexistente correlação alarmante entre a presença de seu integrantes nos espaços de consumo e quaisquer delitos; PMs praticam indiscriminadamente a tortura sobre os morros, enquanto comentaristas de portal exigem ainda mais violência contra bandidos

Enquanto a renda é redistribuída e recolorida, e o acesso a bens antes exclusivos de uma elite muito bem marcada torna-se cada vez maior, não parece muita novidade a onda reacionária que tem ocupado cada vez mais espaço nas ruas, aeroportos e jornais. No primeiro ano de Allende no Palácio La Moneda, no Chile, o aumento dos salários em relação ao custo de vida no ano anterior foi de 120%, em consonância com a triplicação na construção de casas populares, enquanto o boicote dos jornais era descarado e omitia escândalos de corrupção de governos e agremiações simpatizantes. 

Às vésperas de março, no Estado de S. Paulo, o general Carmelo Regis trouxe a solução para o incômodo manifestado pela onda a partir da última década de mudanças no Brasil: "As Forças Armadas continuam sendo a instituição de maior credibilidade no País, e isso se deve não apenas à eficiência, à noção de responsabilidade, ao trato da coisa pública, mas, sobretudo, aos valores morais que são cultivados em todos os seus escalões. A honestidade, a probidade, a disciplina e o empenho no cumprimento da missão são algumas virtudes que norteiam as Forças Armadas e que deveriam também ser exercidas pelos diversos mandatários dos governos de nosso país. O que, infelizmente, não ocorre." O Itaú já incluiu o evento no calendário. 

Desejo a todos uma ótima década de 60.

* Murilo Cleto é licenciado em História, especialista em História Cultural e mestre em Ciências Humanas pela Universidade Tuiuti do Paraná. Atua como coordenador municipal de cultura e professor do colégio Objetivo e do curso de História das Faculdades Integradas de Itararé-SP. Escreve para o blog Desafinado.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Casar virgem. Por quê?



POR FERNANDA M. POMPERMAIER

Fiquei sabendo recentemente que existe um movimento novo entre jovens religiosos: o de casar-se virgem. 

Ok. Não parece um movimento novo já que nos faz lembrar os anos 1950, mas é recente. 
O interessante é que ele está atingindo meninos e meninas, o que faz com que o movimento seja menos machista, convenhamos.  
Afinal, a quem interessa que os jovens casem-se virgens? 
Não ter nenhuma experiência na cama pode fazer de alguém melhor ou pior parceiro na vida? Só posso concluir que é para pior porque a ausência dessa intimidade antes do casamento faz com que ambos se conheçam ainda menos. E fiquem curiosos, E acabem casando cedo porque né, é difícil segurar.

O tabu que existe em torno de experiência sexual no Brasil é extremamente contraditório, já que o que mais vendemos da nossa imagem são as mulheres seminuas nas praias e nas festas de carnaval. Todo mundo conhece o turismo sexual do Brasil e imagina que somos o país mais liberto e libertino da América. Mas, leve engano, pura hipocrisia, pode olhar, mas não pode tocar, pode tocar mas não pode comer. Deu? Tá rodada, minha amiga, não serve pra casar. Aliás o que é rodada, né, uma menina que fez sexo com 10 homens diferentes durante toda a vida, ou outra que faz todos os dias com o mesmo homem? A segunda pode ser bem mais experiente, mas a primeira vai ter um comportamento que não é "socialmente aceito". Os preconceitos mais antigos da história do machismo. 

Uma das coisas mais estúpidas que já escutei com relação a homens saiu mais ou menos assim: "cuidado com os homens, eles só querem se aproveitar de você, depois do sexo, te dispensam".

"Eles só querem se aproveitar" - ãh? E a mulher quer o quê?
"Depois do sexo, te dispensam" - minha amiga, se o cara te dispensou depois de ter feito sexo com ele por esse específico motivo, que assim seja, já vai tarde. Um homem que valoriza uma mulher pela sua virgindade ou pela sua resumida experiência sexual é um ignorante que não merece a sua companhia. Simples assim. Se o cara não consegue ver a mulher/ser humano por trás da vagina, faça o que tem de ser feito e dispense o neandertal.

O pior de tudo é que acreditei nessas bobagens quando era nova e perdi inúmeras oportunidades de sentir prazer, explorando o meu corpo e o de belos homens com quem fiquei. Muitas vezes pensei: não posso, não quero virar menina de uma noite, o que meus pais pensariam,...Deus está vendo.... e por aí vai a neura. O sentimento de culpa demorou para sumir e agora desejaria que ele jamais tivesse existido, e tudo teria sido mais leve, descomplicado e prazeroso, como sexo deve ser.

É engraçado porque é nítida a diferença na educação de meninas e de meninos com relação ao sexo. Para o homem experiência sexual vasta é motivo de orgulho, para a mulher pode ser sinônimo de depravação. E como se muda essa percepção? Quem deseja toda essa repressão para as mulheres? Homens machistas se sentem muito mal na presença de mulheres bem resolvidas sexualmente. É uma situação com a qual não estão habituados. Eles desejam mulheres frágeis, vulneráveis, sensíveis, inexperientes para que possam exercer sua dominação mais facilmente.
Mas os tempos são outros.
Vamos aprender a lidar com mulheres que sabem o que querem, dizem o que querem, tem controle sobre sua vida sexual e usam seus corpos e dos parceiros para o seu prazer.  

Eu não desejaria que ninguém casasse virgem, pelo contrário, torço para que o sexo seja cada vez menos tema tabu e seja encarado mais naturalmente. 
Sem "santas ou putas, apenas livres". 
(Frase retirada de cartaz da marcha das vadias, um grupo que luta por igualdade de direitos - tema para outro post).

sábado, 25 de maio de 2013

Tal país, quais direitos?



POR CLÓVIS GRUNER

A invenção dos direitos humanos é recente: o conceito de que indivíduos devem ter assegurados pelos seus governos alguns direitos fundamentais remonta ao final do século XVII, consolidando-se principalmente ao longo do XVIII. É verdade que nem sempre há coincidência entre as palavras e as coisas, como atestam os milhares de mortos durante o Terror jacobino na França revolucionada. Por outro lado, é igualmente significativo que alguns dos principais documentos que estabeleceram os parâmetros dos direitos humanos apareceram quase sempre em momentos de crise, seja para afirmá-los ou defendê-los.

Foi assim com a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Em contextos distintos, ambas são marcadas pela insubmissão à tirania e ao absolutismo. Inspirados no liberalismo e no iluminismo, cidadãos americanos e franceses denunciaram o despotismo e defenderam o direito à liberdade, à segurança e à busca da felicidade – que, naquele momento, possuía um conteúdo político fundamental, pouco tendo a ver com a noção algo banalizada que temos hoje da palavra “felicidade”.

No final do século seguinte seria a vez da Igreja Católica. Com a encíclica Rerum Novarum, de 1891, Leão XIII se posicionava e a Santa Sé, frente às muitas mudanças experimentadas ao longo do oitocentos. É verdade que o documento é bastante conservador – afinal, trata-se de uma encíclica papal –, e traz nas entrelinhas um indisfarçável desejo de conter o avanço dos grupos e doutrinas socialistas que ganhavam força na Europa. Mas ele revela, igualmente, a vontade política da igreja de estabelecer uma doutrina social preocupada em assegurar e ampliar os direitos dos mais fragilizados pela consolidação do capitalismo industrial – preocupação abandonada nas décadas seguintes, exceção feita talvez ao pontificado de João XXIII e à Teologia da Libertação.

Não é preciso me alongar muito sobre o contexto do surgimento, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: saíamos de dois conflitos mundiais com milhões de mortos; o mundo viu e viveu a experiência da Shoah e das bombas atômicas.  Alguém poderá sempre objetar que se trata, uma vez mais, de palavras, e que atrocidades continuaram e continuam a ocorrer mundo afora. E é verdade, ao menos em parte. Mas eu continuo a afirmar a pertinência da Declaração e dos documentos produzidos a partir dela – e o fato de que a maior potência mundial, os Estados Unidos, tenha se recusado a assinar alguns deles, tais como a criação do Tribunal Penal Internacional e o Protocolo de Kyoto (sim, a questão ambiental é um problema de direitos humanos), me parece um bom indicativo de seu valor.

RETROCEDEMOS – No Brasil, o tema nunca foi tratado de maneira responsável por nenhum de seus governos democráticos – e desta noção estão excluídas, obviamente, a Monarquia e as ditaduras do período republicano. Nos anos imediatamente subsequentes ao fim da última ditadura civil militar, continuamos a conviver com os muitos resquícios de uma herança sórdida, como dão testemunho as chacinas do Carandiru e da Candelária, para ficar apenas nos exemplos mais eloquentes. Vislumbrei alguma perspectiva de mudança com a eleição de FHC, por conta de sua trajetória pregressa. Mas minhas expectativas morreram junto com os 19 sem-terra massacrados em Eldorado do Carajás. Alguma coisa mudou nos governos Lula, em parte por conta da institucionalização das muitas demandas dos movimentos sociais, incorporadas ao Estado e transformadas em políticas públicas oficias – processo que mereceria uma análise mais cuidadosa, o que não farei aqui.

Nos últimos anos, no entanto, retrocedemos em relação ao pouco que avançamos. E não me refiro apenas a excrescência que é ter Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a usar a autoridade e a visibilidade que o cargo lhe confere para barrar iniciativas como a campanha de prevenção a Aids ou de combate à homofobia nas escolas. Fosse isso, e já era muito. Mas não é. Na semana que findou, foi publicado o Informe 2013 da Anistia Internacional. O capítulo dedicado ao Brasil traça um perfil lamentável: temos uma das polícias mais violentas do mundo, responsável pelo assassinato diário de dezenas de pessoas nas periferias das cidades brasileiras. Nosso índice de encarceramento é um dos mais altos entre os países democráticos, e nossas prisões há tempos tornaram-se inviáveis (se algum dia já foram viáveis), reféns do descaso oficial e do crime organizado. Os elevados índices de desigualdade social, que insistem em permanecer apesar das iniciativas e da propaganda oficial, continuam a fazer recrudescer a violência e, com ela, a intolerância de setores principalmente das camadas médias urbanas, desejosos por medidas igualmente violentas, mas com respaldo estatal, tal como a redução da maioridade penal. 

Nas últimas semanas, a ocupação das obras da usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará, lançou luz sobre a situação de comunidades indígenas que, à sua revelia, foram ou estão a ser prejudicadas e expulsas de suas terras. Durante os oito dias de ocupação, encerrada por ordem judicial, vigorou a truculência, com patrocínio oficial: forças das polícias federal, militar e rodoviária e do exército, barraram o acesso de civis solidários aos indígenas, censuraram jornalistas, impediram a entrada de advogados; sitiados, os ocupantes não tiveram acesso a carvão para cozinhar, nem aos meios de comunicação. Em um gesto que ilustra exemplarmente a truculência, as forças da ordem bloquearam carros com agentes de saúde, que só tiveram permitido seu acesso as obras a pé. Não vou me alongar mais, porque há muita coisa escrita sobre o impacto humano e ambiental de Belo Monte (o professor Idelber Avelar organizou um extenso dossiê sobre o assunto, disponível em seu ex-blog Um outro olhar); e há ainda o Ocupação Belo Monte, que vale a pena ser lido por quem se interessa sobre o assunto.

PARA ONDE VAMOS, AFINAL? – Como toda explicação parcial, acreditar que este estado de coisas é fruto somente da aliança do governo com setores religiosos e conservadores, pode ofuscar outros aspectos da questão. Primeiro, porque não se trata de problema novo e, sob diferentes prismas, nossa recusa a acertar as contas com o passado recente, como fizeram outros países, e optar pelo caminho enganosamente fácil de uma falsa conciliação, dificulta darmos o passo definitivo em direção à consolidação de uma democracia mais sólida e sensível aos direitos humanos.

Por outro lado, não se pode eximir o atual governo de sua cota de responsabilidade. Aquilo que alguns analistas tratam como uma atualização do discurso nacional-desenvolvimentista negligenciou, quando não mesmo tentou impor o silêncio, aqueles grupos cujos direitos e interesses contradizem os do governo e de seus novos (ou nem tão novos) aliados. É o que está a acontecer, por exemplo, em Belo Monte, onde os direitos das comunidades indígenas têm sido violentados por empreiteiras, como já o foram antes por ruralistas, com o consentimento e a participação do governo. Durante a ocupação, uma verdadeira campanha de desumanização foi movida contra os índios, ecoando inclusive nas páginas daquela imprensa que os governistas chamam de “golpista”.

A estratégia do desenvolvimento a qualquer custo complementa o esforço por diluir o tema dos direitos humanos nos índices de diminuição da pobreza percebidos na última década. Que fique claro: nada tenho contra as ações sociais patrocinadas pelo atual e pelos dois últimos governos; quaisquer iniciativas que tenham por fim diminuir nossos escandalosos índices de miséria são sempre bem vindas. Minha questão é outra. O combate à pobreza e à miséria, em que pese sua urgência, não esgota o problema. Uma política ativa de respeito aos direitos humanos precisa assegurar a laicidade do Estado e a igualdade dos direitos civis; conduzir firmemente o processo de acerto de contas com nosso passado autoritário; respeitar e fazer respeitar as diferenças de gênero, étnicas e religiosas, entre outras; afiançar o acesso à saúde; investir na educação pública e de qualidade, em todos os níveis; combater a violência institucional, dentro e fora das penitenciárias; garantir um marco regulatório sem o qual a liberdade de imprensa resta ameaçada (não, você não leu errado: não é a existência de um marco regulatório que ameaça a liberdade de imprensa, mas a ausência de um); enfrentar a violência que grassa no campo e realizar uma efetiva reforma agrária; promover um desenvolvimento sustentável, atento aos riscos ambientais inerentes ao progresso tecnológico e industrial; etc...

Os critérios pelos quais medimos nosso nível de civilização não podem basear-se apenas no acesso ao mercado e na ampliação do consumo. Isso é bom, necessário até. Mas não é o suficiente. No passado os momentos de crise ou de transformação serviram para reafirmar alguns valores inalienáveis, “por si mesmo evidentes”. Sigamos este exemplo.