POR CLÓVIS GRUNER
Há algumas semanas, José António
Baço escreveu aqui no blog sobre meritocracia. Volto ao assunto, mas para abordá-lo sob
outro prisma e motivado por um comentário ao texto do Murilo Cleto, publicado
no final de semana. Eis o comentário, reproduzido apenas parcialmente:
(...)
Na sociedade de mercado
não há essa utopia, há diferenças de classes (como também há nas ditaduras
ditas comunistas), porém, quando a sociedade aceita meritocracia e a enxerga
com bons olhos, TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de vida.
A ideia de que a riqueza se resume a um bolo fatiado é estapafúrdia! Riqueza produz mais riqueza, a população não tem de se contentar com aquele pedaço do bolo, pois ele se multiplica, basta o cidadão estudar, se qualificar, trabalhar... mas isso poucos querem, então, para muitos, sobra a utopia do comunismo.
A ideia de que a riqueza se resume a um bolo fatiado é estapafúrdia! Riqueza produz mais riqueza, a população não tem de se contentar com aquele pedaço do bolo, pois ele se multiplica, basta o cidadão estudar, se qualificar, trabalhar... mas isso poucos querem, então, para muitos, sobra a utopia do comunismo.
Se o autor realmente acredita
no que escreveu, e a seguir seu raciocínio, os milhões de corpos que diariamente
agonizam de fome são, não em última, mas em primeira instância, os responsáveis
pela sua própria miséria. Se “TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de
vida”, bastaria ao indivíduo “estudar, se qualificar, trabalhar” e melhorar de
vida. Afinal, se a meritocracia provou que “TODOS tem condições” de viver dignamente,
é óbvio que o gajo só continua a fuçar no lixão ou a viver em um campo de
refugiados porque quer – e porque, no fim das contas, ainda lhe “sobra a utopia
do comunismo” a compensar o mau cheiro e a condição degradante de refugiado.
Minha fé na humanidade
anda quase no negativo, mas mesmo assim me choca a ideia de alguém expressar em
tão poucas linhas tanto desprezo e insensibilidade pelo sofrimento alheio. Quero
acreditar que não foi intencional: ele apenas repetiu o que deve ter lido em
algum lugar – uma página do Facebook, algum blog de direita, talvez um artigo assinado
por um dos profetas do neoliberalismo que pipocam nas colunas de opinião. Nesse
caso, o problema não é a indiferença, ou não só ela, mas a ignorância conceitual
e histórica. E para isso há chance de cura: basta o cidadão estudar e se
qualificar. O que, no fim das contas, dá sempre um pouco de trabalho.
MÉRITO PARA QUEM? – A
ideia de “meritocracia” tem sua história, e ela é mais ou menos recente. Filha
dileta e direta do liberalismo iluminista, ela surge em um contexto onde
imperavam o privilégio dinástico e hereditário, em detrimento dos valores e
qualidades individuais. Falo das chamadas “sociedades de corte”, com sua
hierarquia social no limite da imobilidade e onde se decidia, desde o berço,
quais as posições e funções sociais a serem ocupadas e exercidas. No Antigo Regime, e
quem passou por um banco escolar sabe disso, imperava o “privilégio” em
detrimento do “mérito”.
Os liberais dos séculos
XVII e XVIII teceram severas críticas a uma sociedade que produzia permanentemente
as condições – culturais, sociais, políticas, econômicas – de sua própria reprodução,
privilegiando sempre os já privilegiados. Um dos alicerces dos seguidos ataques
desferidos contra a aristocracia e a nobreza, a meritocracia surge radicalmente
subversiva: por meio dela, não apenas se defendia o valor individual em
detrimento das posições nobiliárquicas, como ao fazê-lo se asseverava a
possibilidade de mobilidade e ascensão daqueles indivíduos dispostos a fazer um
bom uso de sua inteligência (a expressão é kantiana) para ascender e conquistar,
por merecimento, melhores e mais vantajosas posições sociais e econômicas.
Mas há um elemento
fundamental que não escapou à sensibilidade dos primeiros liberais: o mérito,
por individual que seja, não aflora senão em uma sociedade de igualdade;
igualdade não ontológica, mas de condições e de oportunidades para todos os
homens diferentes entre si. A meritocracia, noção tão castigada pelos liberais
de internet, é produto de uma utopia, a do liberalismo, que opõem a uma
sociedade atravessada por muitas desigualdades, a promessa de uma isonomia
necessária para que os indivíduos pudessem exercer seus talentos sem que as condições
desiguais entre eles favorecessem uns em detrimento de outros.
ASPIRAR A IGUALDADE – Diferente
do comentário que motivou esse texto, a meritocracia não é uma panaceia a
justificar a desigualdade social apelando à competência de alguns poucos enquanto
acusa, irresponsavelmente, a indolência da maioria. Ela contém, desde o berço, a
possibilidade utópica de que as condições objetivas mínimas de igualdade serão
asseguradas para que os indivíduos possam, livremente, exercer seus talentos. Daí
o projeto, acalentado pelos iluministas do setecentos, de uma educação
universal, entendida como condição primária à aquisição das habilidades
necessárias para que se pudesse, efetivamente, falar em uma sociedade baseada
no mérito.
E não é preciso devorar
tratados filosóficos, porque tudo isso está nos documentos fundadores do
liberalismo político e da noção moderna de democracia: a Declaração de
Independência dos Estados Unidos, de 1776; a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 1789; e as Constituições americana e francesa, ambas de 1791. Em
que pese as diferenças, há neles alguns conceitos chaves firmemente reiterados: todos os
homens nascem e são iguais, e a cada um deles deve ser assegurado o direito à
liberdade, a propriedade e a busca da felicidade.
Poucas ideias trazem uma
energia tão utópica quanto essas. E poucas doutrinas aspiraram tanto à
igualdade quanto o liberalismo. E é lamentável que o que sobrou foi pouco, tão pouco, ao
ponto de poder-se
hoje resumir ideias e projetos políticos tão engenhosa e criativamente urdidos
em meia dúzia de sentenças doutrinárias infelizes, que cabem na caixa de comentários de um blog.