POR CLÓVIS GRUNER
A invenção dos direitos humanos é recente: o conceito de que
indivíduos devem ter assegurados pelos seus governos alguns direitos
fundamentais remonta ao final do século XVII, consolidando-se principalmente ao
longo do XVIII. É verdade que nem sempre há coincidência entre as palavras e as
coisas, como atestam os milhares de mortos durante o Terror jacobino na França
revolucionada. Por outro lado, é igualmente
significativo que alguns dos principais documentos que estabeleceram os
parâmetros dos direitos humanos apareceram quase sempre em momentos de crise,
seja para afirmá-los ou defendê-los.
Foi assim com a Declaração de Independência dos Estados
Unidos, de 1776; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Em
contextos distintos, ambas são marcadas pela insubmissão à tirania e ao
absolutismo. Inspirados no liberalismo e no iluminismo, cidadãos americanos e
franceses denunciaram o despotismo e defenderam o direito à liberdade, à
segurança e à busca da felicidade – que, naquele momento, possuía um conteúdo
político fundamental, pouco tendo a ver com a noção algo banalizada que temos
hoje da palavra “felicidade”.
No final do século seguinte seria a vez da Igreja Católica.
Com a encíclica Rerum Novarum, de
1891, Leão XIII se posicionava e a Santa Sé, frente às muitas mudanças
experimentadas ao longo do oitocentos. É verdade que o documento é
bastante conservador – afinal, trata-se de uma encíclica papal –, e traz nas entrelinhas um indisfarçável desejo de conter o avanço dos grupos e doutrinas socialistas que ganhavam
força na Europa. Mas ele revela, igualmente, a vontade política da igreja de
estabelecer uma doutrina social preocupada em assegurar e ampliar os direitos
dos mais fragilizados pela consolidação do capitalismo industrial – preocupação
abandonada nas décadas seguintes, exceção feita talvez ao pontificado de João
XXIII e à Teologia da Libertação.
Não é preciso me alongar muito sobre o contexto do
surgimento, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: saíamos de
dois conflitos mundiais com milhões de mortos; o mundo viu e viveu a
experiência da Shoah e das bombas atômicas.
Alguém poderá sempre objetar que se trata, uma vez mais, de palavras, e
que atrocidades continuaram e continuam a ocorrer mundo afora. E é verdade, ao
menos em parte. Mas eu continuo a afirmar a pertinência da Declaração e dos
documentos produzidos a partir dela – e o fato de que a maior potência mundial,
os Estados Unidos, tenha se recusado a assinar alguns deles, tais como a
criação do Tribunal Penal Internacional e o Protocolo de Kyoto (sim, a questão
ambiental é um problema de direitos humanos), me parece um bom indicativo de seu
valor.
RETROCEDEMOS – No Brasil, o tema nunca foi tratado de
maneira responsável por nenhum de seus governos democráticos – e desta noção estão
excluídas, obviamente, a Monarquia e as ditaduras do período republicano. Nos
anos imediatamente subsequentes ao fim da última ditadura civil militar,
continuamos a conviver com os muitos resquícios de uma herança sórdida, como
dão testemunho as chacinas do Carandiru e da Candelária, para ficar apenas nos
exemplos mais eloquentes. Vislumbrei alguma perspectiva de mudança com a
eleição de FHC, por conta de sua trajetória pregressa. Mas minhas expectativas
morreram junto com os 19 sem-terra massacrados em Eldorado do Carajás. Alguma
coisa mudou nos governos Lula, em parte por conta da
institucionalização das muitas demandas dos movimentos sociais, incorporadas ao
Estado e transformadas em políticas públicas oficias – processo que mereceria
uma análise mais cuidadosa, o que não farei aqui.
Nos últimos anos, no entanto, retrocedemos em relação ao
pouco que avançamos. E não me refiro apenas a excrescência que é ter Marco
Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a usar a
autoridade e a visibilidade que o cargo lhe confere para barrar iniciativas
como a campanha de prevenção a Aids ou de combate à homofobia nas escolas. Fosse
isso, e já era muito. Mas não é. Na semana que findou, foi publicado o
Informe 2013 da Anistia Internacional. O capítulo dedicado ao Brasil traça um perfil lamentável: temos uma das polícias mais violentas do mundo,
responsável pelo assassinato diário de dezenas de pessoas nas periferias das
cidades brasileiras. Nosso índice de encarceramento é um dos mais altos entre
os países democráticos, e nossas prisões há tempos tornaram-se inviáveis (se algum
dia já foram viáveis), reféns do descaso oficial e do crime organizado. Os elevados
índices de desigualdade social, que insistem em permanecer apesar das
iniciativas e da propaganda oficial, continuam a fazer recrudescer a violência
e, com ela, a intolerância de setores principalmente das camadas médias
urbanas, desejosos por medidas igualmente violentas, mas com respaldo estatal,
tal como a redução da maioridade penal.
Nas últimas semanas, a ocupação das obras da usina de Belo
Monte, em Altamira, no Pará, lançou luz sobre a situação de comunidades indígenas
que, à sua revelia, foram ou estão a ser prejudicadas e expulsas de suas terras.
Durante os oito dias de ocupação, encerrada por ordem judicial, vigorou a
truculência, com patrocínio oficial: forças das polícias federal, militar e
rodoviária e do exército, barraram o acesso de civis solidários aos indígenas,
censuraram jornalistas, impediram a entrada de advogados; sitiados, os
ocupantes não tiveram acesso a carvão para cozinhar, nem aos meios de
comunicação. Em um gesto que ilustra exemplarmente a truculência, as forças da
ordem bloquearam carros com agentes de saúde, que só tiveram permitido seu
acesso as obras a pé. Não vou me alongar mais, porque há muita coisa escrita
sobre o impacto humano e ambiental de Belo Monte (o professor Idelber Avelar
organizou um extenso dossiê sobre o assunto, disponível em seu ex-blog
Um outro olhar); e há ainda
o
Ocupação Belo Monte, que vale a pena ser lido por quem se interessa
sobre o assunto.
PARA ONDE VAMOS, AFINAL? – Como toda explicação parcial,
acreditar que este estado de coisas é fruto somente da aliança do governo com
setores religiosos e conservadores, pode ofuscar outros aspectos da questão.
Primeiro, porque não se trata de problema novo e, sob diferentes prismas,
nossa recusa a acertar as contas com o passado recente, como fizeram outros
países, e optar pelo caminho enganosamente fácil de uma falsa conciliação,
dificulta darmos o passo definitivo em direção à consolidação de uma democracia
mais sólida e sensível aos direitos humanos.
Por outro lado, não se pode eximir o atual governo de sua
cota de responsabilidade. Aquilo que alguns analistas tratam como uma
atualização do discurso nacional-desenvolvimentista negligenciou, quando não
mesmo tentou impor o silêncio, aqueles grupos cujos direitos e interesses
contradizem os do governo e de seus novos (ou nem tão novos) aliados. É o que
está a acontecer, por exemplo, em Belo Monte, onde os direitos das comunidades
indígenas têm sido violentados por empreiteiras, como já o foram antes por
ruralistas, com o consentimento e a participação do governo. Durante a ocupação,
uma verdadeira campanha de desumanização foi movida contra os índios, ecoando
inclusive nas páginas daquela imprensa que os governistas chamam de “golpista”.
A estratégia do desenvolvimento a qualquer custo complementa
o esforço por diluir o tema dos direitos humanos nos índices de diminuição da pobreza percebidos na
última década. Que fique claro: nada tenho contra as ações sociais patrocinadas pelo atual e pelos dois últimos governos; quaisquer iniciativas que tenham por fim diminuir nossos escandalosos
índices de miséria são sempre bem vindas. Minha questão é outra. O combate à pobreza
e à miséria, em que pese sua urgência, não esgota o problema. Uma política
ativa de respeito aos direitos humanos precisa assegurar a laicidade do
Estado e a igualdade dos direitos civis; conduzir firmemente o processo de acerto de
contas com nosso passado autoritário; respeitar e fazer respeitar as diferenças de gênero, étnicas e religiosas, entre outras; afiançar o acesso à saúde; investir na
educação pública e de qualidade, em todos os níveis; combater a violência
institucional, dentro e fora das penitenciárias; garantir um marco regulatório
sem o qual a liberdade de imprensa resta ameaçada (não, você não leu errado:
não é a existência de um marco regulatório que ameaça a liberdade de imprensa,
mas a ausência de um); enfrentar a violência que grassa no campo e realizar uma
efetiva reforma agrária; promover um desenvolvimento sustentável, atento aos
riscos ambientais inerentes ao progresso tecnológico e industrial; etc...
Os critérios pelos quais medimos nosso nível de civilização não
podem basear-se apenas no acesso ao mercado e na ampliação do consumo. Isso é bom, necessário até. Mas não é o suficiente. No passado os momentos de crise ou de transformação serviram para
reafirmar alguns valores inalienáveis, “por si mesmo evidentes”. Sigamos este
exemplo.