Existe um erro categórico na
pressuposição de que os movimentos contra o que se consideram injustiças venham
exclusivamente da esquerda. Mas é verdade, por outro lado, que ondas
conservadoras só tenham aparecido em momentos de significativa transformação social,
como a que se consolida desde a última década no Brasil.
Em 2011, o país atingiu o menor índice de desigualdade social da história. Entre 2001 e
2011, o crescimento real da renda dos 10% mais pobres foi de 91,2%, ao passo
que entre os mais ricos a ascensão foi de 16%. Desde 2003, a economia
brasileira cresceu 40,7%; enquanto o PIB, 27,7%. O resultado? Uma melhoria
considerável da situação dos domicílios. Em 10 anos, o Bolsa Família tirou 36 milhões de pessoas da extrema pobreza.
Levando em consideração que
o pior índice de igualdade social no país foi registrado em
1989, o avanço desde a instituição do Plano Real é mais do que surpreendente.
No último ano do governo Sarney, a inflação acumulada chegou a 1764,86%,
enquanto os 10% mais ricos do país detinham mais de 50% de toda a renda e
metade do população dividia 10,56% dela. Mas se engana quem acredita que
descende apenas da catastrófica gestão de Sarney este panorama assustador: como
se sabe, o Brasil que primeiro fez crescer o bolo pra depois dividir esqueceu
de completar a tarefa e, em 1976, o índice foi quase tão ruim quanto às
vésperas da primeira eleição em quase 30 anos depois do regime militar.
O papel do Estado tem sido vital
nesta atual guinada. Somente o Programa Bolsa Família é responsável por 13%
desta redução da desigualdade, somada a 22% de outros repasses, incluindo
aposentadorias e pensões. Apesar disso, mais da metade desta evolução na
economia está atrelada à renda do trabalho, sobretudo o formal, que
simplesmente dobrou desde 2004.
Apesar de ganhar ainda, em média,
40% menos, a população negra do país dobrou o crescimento da renda em relação aos brancos entre
2007 e 2010. Em 2001, 56% dos negros tinham geladeira em casa; em 2010, já eram
97%. Durante a última década, o acesso de negros à internet decuplicou. Em 10
anos, graças a política de cotas, triplicou o número de negros na Universidade. Entre 2002 e 2011, a renda das
mulheres aumentou 68%, bem mais que o índice masculino referente ao
mesmo período, de 43,1%, ainda que o desnível de gênero continue
gritante.
NOSTALGIA CONSERVADORA - Enquanto isso, uma onda tem
tomado conta do país. É a que torce o nariz pra esse bolo que cresce e começa a
se dividir ainda dentro no forno. Mais do que nunca, os veículos de comunicação
estão tomados por uma reação nervosa diante disso. Inconformado com as
políticas públicas do governo Lula, Diogo Mainardi deixou a Veja pra figurar
entre os mais ilustres comentaristas da direita sofisticada no Manhattan
Connection, exibido pelo GNT; Reinaldo Azevedo, outro ícone da rejeição a este
movimento também migrou para a Folha de S. Paulo e a sua popularidade
cresceu progressivamente; Rachel Sheherazade foi recentemente levada para a
badalada seção Tendências e Debates do mesmo jornal para fazer um pout
pourri sobre Cuba e o Primeiro Comando da Capital, passando pela Copa do
Mundo e o Estatuto da Criança e do Adolescente, para justificar o seu
posicionamento de "compreensão" diante dos "justiceiros"
que amarraram um "marginalzinho" de 15 anos num poste do Flamengo;
Lobão deixou de vociferar apenas no Twitter para ocupar as páginas da revista
Veja e, dentre outras patacoadas, dizer que reclamam de tortura nos anos de
chumbo aqueles que tiveram "umas unhazinhas arrancadas"; Demétrio
Magnoli trilha o mesmo caminho quando se refere aos anos de chumbo como
"ditabranda" e milita pelo fim da política de cotas.
Infelizmente, a onda não está
somente nos jornais. Em Brasília, Aloysio Nunes quase aproveitou a esteira
conservadora pra conseguir emenda na Constituição pela redução da maioridade
penal. Nada menos que 93% dos paulistanos estão com ele, ainda que, nas
estatísticas, os jovens sejam, na verdade, as maiores vítimas da violência.
Somente em 2010, foram mortos 8.600 jovens no país. Em 2012, mais de 12.000 crianças foram
vítimas de maus-tratos. Entre os adolescentes em conflito com a lei, apenas
8,4% cometeram homicídios. Na Fundação Casa, somente 0,9% deles estiveram
envolvidos com latrocínio. Dos favoráveis à redução proposta por Nunes, 9%
ainda defendem que a maioridade penal seja de 12 anos. No Congresso, tramitam
34 projetos que propõem mudanças na legislação sobre o aborto. 31 deles
defendem o recrudescimento das políticas públicas sobre a autonomia da
mulher na prática abortiva. É lá também que hoje um projeto de lei
"antiterrorismo" figura entre as prioridades de uma lavra que se
aproveita do clima de comoção nacional diante do descontrole do Estado frente
às manifestações e criminaliza movimentos populares com critérios evasivos de
jurisdição.
A onda não está somente em
Brasília. Nas ruas, caseiros são espancados até a morte por serem confundidos com ladrões de
celular e suspeitos de pequenos furtos amarrados em postes, assim como deficientes mentais pretos e pobres; professores de
ensino superior ridicularizam passageiros que usam bermuda nos aeroportos;
cobradores são chamados de "pretos safados" nos ônibus; "rolezinhos" nos shoppings são sumariamente proibidos,
apesar da inexistente correlação alarmante entre a presença de seu integrantes
nos espaços de consumo e quaisquer delitos; PMs praticam indiscriminadamente a
tortura sobre os morros, enquanto comentaristas de portal exigem ainda mais violência contra bandidos.
Enquanto a renda é redistribuída
e recolorida, e o acesso a bens antes exclusivos de uma elite muito bem marcada
torna-se cada vez maior, não parece muita novidade a onda reacionária que tem
ocupado cada vez mais espaço nas ruas, aeroportos e jornais. No primeiro ano de
Allende no Palácio La Moneda, no Chile, o aumento dos salários em relação ao
custo de vida no ano anterior foi de 120%, em consonância com a triplicação na
construção de casas populares, enquanto o boicote dos jornais era descarado e
omitia escândalos de corrupção de governos e agremiações
simpatizantes.
Às vésperas de março, no Estado de S. Paulo, o general Carmelo Regis trouxe a
solução para o incômodo manifestado pela onda a partir da última década de
mudanças no Brasil: "As Forças Armadas continuam sendo a instituição de
maior credibilidade no País, e isso se deve não apenas à eficiência, à noção de
responsabilidade, ao trato da coisa pública, mas, sobretudo, aos valores morais
que são cultivados em todos os seus escalões. A honestidade, a probidade, a
disciplina e o empenho no cumprimento da missão são algumas virtudes que
norteiam as Forças Armadas e que deveriam também ser exercidas pelos diversos
mandatários dos governos de nosso país. O que, infelizmente, não ocorre."
O Itaú já incluiu o evento no calendário.
Desejo a todos uma ótima década
de 60.
* Murilo Cleto é licenciado em
História, especialista em História Cultural e mestre em Ciências Humanas
pela Universidade Tuiuti do Paraná. Atua como coordenador municipal de cultura
e professor do colégio Objetivo e do curso de História das Faculdades
Integradas de Itararé-SP. Escreve para o blog Desafinado.