POR CLÓVIS GRUNER
No último sábado, dia 13 de julho, cerca de três mil pessoas
ocuparam as ruas do centro de Curitiba, durante a terceira Marcha das Vadias. Parte do calendário de manifestações da cidade,
seguindo uma tendência iniciada em 2011, em Toronto, no Canadá, e que
rapidamente se internacionalizou, a deste ano teve como
tema “Desconstruindo o machismo dentro de todxs nós”. Aos desavisados ou
insensíveis, pode parecer estranho falar de machismo
em pleno século XXI. Mas não é preciso ser mulher para saber que não: apesar
dos avanços, ainda há muito por fazer e mudar.
Hoje como ontem, o machismo continua a produzir violência. E
não apenas nas sociedades e culturas orientais, importante dizer, e tampouco apenas a física. Igualmente cruel e
violento é o machismo banalizado nas relações cotidianas, a naturalizar práticas
e discursos que inferiorizam a mulher, quando mesmo não a tomam e tornam
culpada pela brutalidade de que é frequentemente vítima. Um dos cartazes
recorrentes nas Marchas, aliás, denuncia um dos traços emblemáticos desta
atitude: vivemos em uma sociedade que insiste em ensinar às mulheres como não
serem estupradas, quando o correto e necessário é ensinar os homens a não
estuprar.
A POLÍTICA DO DESCONFORTO – Não é casual, portanto, que o
corpo se faça presente na Marcha das Vadias de maneira tão intensa, nos
cartazes, nas faixas, nas palavras de ordem. Mas ele é também um “campo de
batalha”, transformado ele próprio em um discurso, um meio e sua mensagem. E não
se trata apenas de reivindicar uma política que assegure, entre outras coisas,
o direito ao corpo, mas de inseri-lo efetivamente na política. Esta é uma das
razões pelas quais a Marcha das Vadias, e o feminismo de modo geral, provoca
ainda tanto incômodo. Para muitos de nós, ver e ouvir mulheres afirmando-se
como sujeitos de direitos é ainda desconfortante. Mas, creio, não são os seios nus a desfilar nas ruas
a razão principal do desconforto.
Mostrar o corpo e exigir respeito e dignidade é confrontar o machismo,
como disse acima, nas maneiras muitas vezes insidiosas com que ele se manifesta
– o direito que os homens acreditam ter de tutelar os modos e maneiras
femininos, por exemplo; ou os muitos meios pelos quais naturalizamos e
justificamos desigualdades de gênero. É subverter a ordem estabelecida segundo
a qual somente os homens héteros detém o privilégio de exercerem livremente sua
sexualidade, relegando à mulher a humilhante condição de “objeto de desejo” do
gozo masculino. É explodir os papeis sociais que definem, desde a infância, os
lugares e as funções que cabem a meninos e meninas, mostrando que as relações
de gênero, com suas muitas hierarquias, não são um dado da natureza, mas
construtos históricos, cultural e socialmente estabelecidos. É expor o ridículo
da postura conservadora e machista que, à falta de argumentos, agarra-se a
estereótipos grosseiros para desqualificar as mulheres, o feminismo e as
mulheres feministas, opondo a ele e a elas as Amélias e Marias do imaginário masculino
Ocidental e cristão.
O CORPO É LAICO – De um modo muito singular e intenso, a
Marcha das Vadias expõe ainda uma de nossas mais lamentáveis contradições: a precária laicidade do Estado brasileiro. E o faz trazendo para o espaço
público um direito que os seguidos governos, à direita e à esquerda, insistem
em negar, reféns que foram e são do fundamentalismo religioso: o aborto. Assunto
polêmico e controverso, mas ao mesmo tempo incontornável, trata-se de uma pauta
que apareceu já nas primeiras Marchas. Se na Europa a
descriminalização do aborto já é realidade na maioria dos países, na América Latina
caminhamos a passo de tartaruga, quando não de caranguejo: à exceção do
Uruguai, de Cuba e em algumas cidades do México – incluindo a capital –, nos
demais países a legislação tem viés criminalizador.
Por que o tema é importante? Ora, porque neste caso não se
trata apenas do direito ao corpo, um motivo em si legítimo, mas de reconhecer à
mulher o direito de não ser tratada como criminosa por decidir e escolher,
livremente, sobre seu corpo, sua vida, seu futuro, etc... Mas trata-se também
de um caso de saúde pública: praticado em larga escala, e muitas vezes sem as
mínimas condições de higiene, ele tem sido responsável pela morte de milhares
de mulheres e pela traumatização de outras tantas, submetidas a uma intervenção
extremamente invasiva sem recursos adequados e sem apoio, principalmente
psicológico.
Tal como disposto hoje, o
debate privilegia unicamente o embrião e desconsidera a pessoa
com projetos e propósitos, a mulher grávida. Tal inversão se sustenta em
um mito moral: o da maternidade como sendo algo instintivo, parte da “natureza feminina”, o sofrimento tornado compulsório: ser mãe, afinal, é padecer no
paraíso. Não é. Descriminalizar o aborto não é uma panaceia. Não se
formarão filas quilométricas de gestantes nos postos de saúde – descriminalizar
o aborto não se confunde com incentivá-lo. Trata-se de um direito de escolha
que não pode ser tolhido a quem dele necessite ou queira a ele recorrer, porque
outros julgam que seus valores e princípios são não apenas corretos, mas universalmente
válidos. O corpo é laico, e não pertence ao Estado, nem tampouco à religião. As vadias
estão a gritar isso nas ruas. Estamos dispostos a ouvi-las?