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quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma introdução à vida não machista

POR CLÓVIS GRUNER

No último sábado, dia 13 de julho, cerca de três mil pessoas ocuparam as ruas do centro de Curitiba, durante a terceira Marcha das Vadias. Parte do calendário de manifestações da cidade, seguindo uma tendência iniciada em 2011, em Toronto, no Canadá, e que rapidamente se internacionalizou, a deste ano teve como tema “Desconstruindo o machismo dentro de todxs nós”. Aos desavisados ou insensíveis, pode parecer estranho falar de machismo em pleno século XXI. Mas não é preciso ser mulher para saber que não: apesar dos avanços, ainda há muito por fazer e mudar.

Hoje como ontem, o machismo continua a produzir violência. E não apenas nas sociedades e culturas orientais, importante dizer, e tampouco apenas a física. Igualmente cruel e violento é o machismo banalizado nas relações cotidianas, a naturalizar práticas e discursos que inferiorizam a mulher, quando mesmo não a tomam e tornam culpada pela brutalidade de que é frequentemente vítima. Um dos cartazes recorrentes nas Marchas, aliás, denuncia um dos traços emblemáticos desta atitude: vivemos em uma sociedade que insiste em ensinar às mulheres como não serem estupradas, quando o correto e necessário é ensinar os homens a não estuprar.

A POLÍTICA DO DESCONFORTO – Não é casual, portanto, que o corpo se faça presente na Marcha das Vadias de maneira tão intensa, nos cartazes, nas faixas, nas palavras de ordem. Mas ele é também um “campo de batalha”, transformado ele próprio em um discurso, um meio e sua mensagem. E não se trata apenas de reivindicar uma política que assegure, entre outras coisas, o direito ao corpo, mas de inseri-lo efetivamente na política. Esta é uma das razões pelas quais a Marcha das Vadias, e o feminismo de modo geral, provoca ainda tanto incômodo. Para muitos de nós, ver e ouvir mulheres afirmando-se como sujeitos de direitos é ainda desconfortante. Mas, creio, não são os seios nus a desfilar nas ruas a razão principal do desconforto.

Mostrar o corpo e exigir respeito e dignidade é confrontar o machismo, como disse acima, nas maneiras muitas vezes insidiosas com que ele se manifesta – o direito que os homens acreditam ter de tutelar os modos e maneiras femininos, por exemplo; ou os muitos meios pelos quais naturalizamos e justificamos desigualdades de gênero. É subverter a ordem estabelecida segundo a qual somente os homens héteros detém o privilégio de exercerem livremente sua sexualidade, relegando à mulher a humilhante condição de “objeto de desejo” do gozo masculino. É explodir os papeis sociais que definem, desde a infância, os lugares e as funções que cabem a meninos e meninas, mostrando que as relações de gênero, com suas muitas hierarquias, não são um dado da natureza, mas construtos históricos, cultural e socialmente estabelecidos. É expor o ridículo da postura conservadora e machista que, à falta de argumentos, agarra-se a estereótipos grosseiros para desqualificar as mulheres, o feminismo e as mulheres feministas, opondo a ele e a elas as Amélias e Marias do imaginário masculino Ocidental e cristão.

O CORPO É LAICO – De um modo muito singular e intenso, a Marcha das Vadias expõe ainda uma de nossas mais lamentáveis contradições: a precária laicidade do Estado brasileiro. E o faz trazendo para o espaço público um direito que os seguidos governos, à direita e à esquerda, insistem em negar, reféns que foram e são do fundamentalismo religioso: o aborto. Assunto polêmico e controverso, mas ao mesmo tempo incontornável, trata-se de uma pauta que apareceu já nas primeiras Marchas. Se na Europa a descriminalização do aborto já é realidade na maioria dos países, na América Latina caminhamos a passo de tartaruga, quando não de caranguejo: à exceção do Uruguai, de Cuba e em algumas cidades do México – incluindo a capital –, nos demais países a legislação tem viés criminalizador.

Por que o tema é importante? Ora, porque neste caso não se trata apenas do direito ao corpo, um motivo em si legítimo, mas de reconhecer à mulher o direito de não ser tratada como criminosa por decidir e escolher, livremente, sobre seu corpo, sua vida, seu futuro, etc... Mas trata-se também de um caso de saúde pública: praticado em larga escala, e muitas vezes sem as mínimas condições de higiene, ele tem sido responsável pela morte de milhares de mulheres e pela traumatização de outras tantas, submetidas a uma intervenção extremamente invasiva sem recursos adequados e sem apoio, principalmente psicológico.

Tal como disposto hoje, o debate privilegia unicamente o embrião e desconsidera a pessoa com projetos e propósitos, a mulher grávida. Tal inversão se sustenta em um mito moral: o da maternidade como sendo algo instintivo, parte da “natureza feminina”, o sofrimento tornado compulsório: ser mãe, afinal, é padecer no paraíso. Não é. Descriminalizar o aborto não é uma panaceia. Não se formarão filas quilométricas de gestantes nos postos de saúde – descriminalizar o aborto não se confunde com incentivá-lo. Trata-se de um direito de escolha que não pode ser tolhido a quem dele necessite ou queira a ele recorrer, porque outros julgam que seus valores e princípios são não apenas corretos, mas universalmente válidos. O corpo é laico, e não pertence ao Estado, nem tampouco à religião. As vadias estão a gritar isso nas ruas. Estamos dispostos a ouvi-las?