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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Eleições em Joinville: um candidato, um livro











POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Falta pouquíssimo tempo os eleitores joinvilenses irem às urnas. Os candidatos a prefeito estão a viver um período de maior calma. Como ele vão aproveitar esse tempo? Ora, atrevo-me a sugerir a leitura de alguns livros que, no meu modesto entendimento, podem proporcionar momentos de descanso, aprendizado e até de reflexão. E lembrei-me de alguns títulos interessantes para indicar a cada um dos candidatos.

UDO DOHLER
A peste – Albert Camus

A história se desenrola em Oran, uma cidade onde o que importa são os negócios e as relações humanas recebem pouca importância. Um dia ratos invadem a cidade para morrer, num prenúncio de que algo de muito mau está por vir. A população entra em estado de negação e as se negam a reconhecer a epidemia. Até que as consequências se tornam avassaladoras. Parece apenas a história de uma epidemia, mas o autor Albert Camus explicou, tempos depois, ser uma alegoria dos regimes totalitários. A época em que se passa a ação – o livro foi escrito durante a Segunda Guerra – não é despicienda.

MARCO TEBALDI
The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde – Robert Louis Stevenson

A hipocrisia é um dos temas de fundo do livro. Ou seja, um embate entre o lado “sujo” e o lado “limpo” de um homem: o Dr. Jekill, que vive entre duas personalidades. De um lado, o homem que se autorreferencia como alguém de conduta exemplar. Do outro, uma personalidade de escrúpulos duvidosos, que não se coíbe em cometer vilanias. Há uma poção (talvez uma representação metafórica do poder) que produz essa transmutação.

RODRIGO BORNHOLDT
Cândido  – Voltaire

O livro narra a história de Cândido, um jovem que vive pelos ensinamentos do seu mentor, o professor Pangloss, um filósofo dogmático e otimista. Por mais desgraças que visse, o velho mentor dizia sempre “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. Por seu lado, quando começa a perceber que o mundo produz muitas desilusões, Cândido começa a se desgostar com a realidade e passa a usar um novo lema de conduta: “devemos cultivar o nosso jardim”.

IVAN ROCHA
As aventuras de Huckleberry Finn – Mark Twain

O livro narra a história de um jovem que se sentia um outsider na sociedade em que vivia. Um dia Huck decide abandonar essa sociedade e empreende uma fuga (que aqui pode ter um valor metafórico). Na jornada encontra Jim, um escravo que também busca a liberdade e juntos partem para uma vida de aventuras. É uma história que fala sobre dilemas éticos e morais, tendo como pano de fundo um ambiente de violência civilizacional.

DR. XUXO
Leite Derramado – Chico Buarque

É a história de um homem, já velho e prostrado numa cama de hospital, que faz um monólogo acerca de uma saga familiar. O pano de fundo é a decadência social e econômica, em meio a um ambiente marcado por preconceitos, corrupção e machismo, para citar apenas estas distopias da sociedade brasileira. O que mais chama a atenção no livro é a narrativa por vezes aleatória, outras circular e sempre cheia de recomeços.

CARLITO MERSS
O Marinheiro de Perdeu as Graças do Mar – Yukio Mishima

Quem quiser encarar o livro como um simples romance vai encontrar uma história de erotismo, poesia e sacrifício. Mas Yukio Mishima é mais que isso. A história pode também ser uma metáfora do homem que deixa o seu habitat natural (o mar) para viver em outro (terra firme). Mas nesse ambiente os valores são outros e não tarda até que o marinheiro seja julgado e perca a grandeza, a glória e o brilho. Afinal, como alerta o próprio autor, “a glória, como vós sabeis, é uma coisa amarga”.

DARCI DE MATOS
Vinhas da Ira – John Steinbeck

Vinhas da Ira narra a trajetória de uma família pobre de agricultores, num processo de migração de um estado para outro. Durante muito tempo tinham vivido como meeiros numa propriedade agrícola, mas a vida foi ficando cada vez mais difícil e viram-se obrigados a procurar um novo lugar para viver. A revela uma sociedade onde as pessoas trabalham duro e são mal remuneradas. O livro faz uma crítica política (e incomodou muitos políticos).

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O Estrangeiro e as Clandestinas


POR CAROLINA PETERS


A “Menina Zero” (M.O.).

Por esses dias eu lembrei uma história triste na qual há muito não pensava.

Era adolescente, época em que explodiu a onda dos Fotologs – uma espécie de instagram rudimentar, um tanto mais próxima dos blogs, que se iniciavam no mesmo período. Estudava em um colégio católico bastante tradicional, líamos Capricho, namorávamos “sério” e nunca falávamos sobre sexo. Começamos uma semana chuvosa com a notícia da morte de uma menina um ano mais velha que eu. Não a conheci pessoalmente nem lembro seu nome, mas era muito amiga de amigas minhas, o que tornou a morte mais próxima. O laudo oficial falava em “infecção generalizada”.

Foi uma história conturbada, daquelas que com o passar dos anos se tornam quase lendas urbanas e que nos dias que seguiram o velório levantou inúmeras conspirações pelos corredores. Diziam as amigas que ela tinha um namorado problemático, falavam em drogadição. Não sei quem era, se era mal sujeito, ou se não gostavam dele porque não fazia parte dos nossos círculos. O pai da menina morrera dias antes, um ataque cardíaco fulminante. Era jovem ainda, não devia ter cinquenta anos. No dia do enterro, o ex-namorado invadiu seu fotolog da menina e postou uma imagem de sapatinhos de tricô, daqueles de bebê. Os menos chegados e mais fofoqueiros que estiveram presentes no velório relataram um corpo inchado, sobretudo no abdome. E logo se espalhou da forma mais desonesta possível o rumor de que M.O. fizera um aborto.

Lembro da reação de minhas amigas – nossas amigas – negando a história, e achando o mais absurdo do mundo a difamação que sofria a morta. Para mim, ambos buscavam anular a existência daquela menina: os que a condenavam – e que foram cúmplices desse assassinato; e as que julgavam proteger, quando negavam a essa jovem mulher o direito da escolha e arbítrio sobre seu corpo. Mais uma camuflada na cifra dos abortos clandestinos no país.

Das poucas menções ao debate do aborto que me lembro nos tempos de colégio, nenhuma trazia dados, posições distintas, textos de apoio. Foram homens, párocos, professores de Ensino Religioso, que de maneira cretina passavam de raspão sobre o tema evitando polêmica; mas ideologicamente certeiros para carimbar a posição: o aborto é um crime contra a vida. No limite, ela(s) merecia(m) morrer?

E o que mais me instiga, já longe de Santa Catarina física e moralmente, era saber que essa menina, a amiga da minha amiga que estudava ali, na sala ao lado, é o ponto fora da curva na estatística alta de mortes decorrentes de abortamento no Brasil. Ela tinha todas as condições financeiras e acesso a equipamento hospitalar para recorrer a um procedimento seguro e anônimo. Quem sabe hoje estaria se formando na faculdade, aceitando um pedido de casamento. Planejando, agora sim, engravidar.

Quantas naquele colégios – nesses colégios tradicionais catarinenses – não deveriam ter feito um aborto? Ou pensado sobre isso num eventual atraso da menstruação? Distante, a morte me parece a consequência lógica de outra história do mesmo período, da menina que esperou o oitavo mês de gestação e uma consulta ginecológica forçada pela mãe – preocupada com a interrupção abrupta no ciclo menstrual da filha – para se declarar grávida.

Se o sexo deixa de existir quando não falamos dele, a vida não pode existir tampouco.

A “Mulher Zero”.
Jandira Magdalena dos Santos talvez agora seja não mais que um corpo carbonizado. Ela tinha o dinheiro (quase R$5mil) para abortar, mas esbarrou na clandestinidade e agora seu rosto estampa jornais e portais de notícia.

Jandira é uma das cerca de um milhão de mulheres brasileiras que decidem interromper a gestação. O número é impreciso devido à ilegalidade que impede uma pequisa mais aprofundada, mas há uns anos, pesquisadoras da UnB divulgaram um estudo interessante sobre o perfil dessas mulheres que optam por realizar um aborto são em sua maioria casadas, cristãs, têm mais de trinta anos. As cerca de um milhão de mulheres que abortamos no Brasil podemos ser eu, sua irmã, mãe, tia. Você.

Pode ser inclusive a vovó. E de quantas avós já ouvi histórias... Não há quem não conheça uma mulher que já fez um aborto. Mas acima da idade; das crenças pessoais; do relacionamento estável ou não; de já terem filhos ou não; das condições financeiras, o ponto em comum entre todas elas é a convicção de que têm o direito de ser mães. E como direito, essa é uma escolha delas, não do Estado ou de qualquer religião. A maternidade não é um karma, uma sina, mas uma escolha consciente que as mulheres tomamos. Porque somos sujeitos de nossa própria história. Porque somos gente.

O Estrangeiro.

Assistindo aos debates e ao horário eleitoral, me senti relendo O estrangeiro, de Albert Camus, em uma versão esteticamente pobre. Aos que nunca leram, ou que por ventura não tenham entendido o texto, se trata da história de um homem condenado à morte por não enlutar a mãe. O homem se torna réu pelo assassinato de um árabe, mas este não passa de um episódio secundário que dá corda à trama. A ação principal não é senão a sobreposição do código moral individual sobre o plano público, o qual deveria ser regido por um código autônomo de forma a garantir igualdade de julgamento a todos os indivíduos, independente de suas convicções íntimas – ou antes, as convicções de seus juízes.

O discurso obscurantista que criminaliza e demoniza a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) é um discurso que criminaliza unicamente as mulheres, como se sua gestação fosse fruto de autogênese. Que submete mesmo aquelas que passam por abortamentos espontâneos, em hospitais públicos e privados de primeira linha, a um atendimento vexatório, negligente. Humilhante. É o discurso que coage famílias simples de crianças estupradas a obrigar essas meninas a seguir com uma gravidez que seus pequenos corpos e mentes infantis não têm condições de gestar. Que dificulta o acesso de uma gestante ao aborto legal – previsto por lei – para que possa dar sequência a um tratamento de saúde emergencial. É um discurso de ódio, que faz das mulheres cidadãs de segunda categoria. O discurso que diz defender a “vida”, defende que nossa vida, a vida das mulheres, valha menos ou quase nada.

Que fique claro aos que se chocam com os vídeos enganosos que circulam pela rede: um feto formado vai nascer. Nossa defesa do aborto considera as semanas iniciais da gestação, entre 12ª e 14ª, conforme exemplos que temos pelo mundo. Enquanto o embrião ainda é dependente do corpo da mulher para sobreviver, ou seja, não tem existência autônoma. Aos curiosos em saber como se parece, sugiro esse link aqui.

Legalizar o aborto não é forçar ninguém a violar suas crenças pessoais. É tratar um grave problema de saúde pública que mata e mutila centenas de mulheres todos os anos, e assegurar dignidade e direito de escolha a todas nós.

"A fazedora de anjos", 1908: tríptico de Pedro Weingärtner, do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, retrata o aborto na virada do século XX. De perto é impressionante.