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sexta-feira, 11 de maio de 2018

Outros Maios virão


POR CLÓVIS GRUNER
No texto anterior sobre o cinquentenário de “Maio de 68”, falei que os acontecimentos daqueles dias alteraram nossa maneira de pensar e fazer política. Pois é justamente essa capacidade de mudar nosso modo de conceber o político, restituindo-lhe seu caráter plural, incômodo e emancipador, um dos mais positivos legados de Maio ao presente. É o que pretendo explorar, rapidamente, nessa segunda parte.

Em texto recente, parte de “Levantes”, livro e exposição organizados por Georges Didi-Huberman, o italiano Antonio Negri pergunta: quais as exigências postas a um levante para que se possa fazer dele uma “ontologia positiva”? Ele responde: “estar plantado na terra, enervado de paixões e de interesses; exige vontades radicais e desejos orientados para o futuro. Em segundo lugar, exige tornar-se máquina de produção de subjetividade, que compõem, num ‘nós’ ativo, um conjunto de singularidades”.

Essas duas características – um desejo orientado para o futuro, mas os pés plantados no presente, e a nova subjetividade daí advinda, o “nós ativo” – permite pensá-las de modo a associar episódios distintos, mas próximos em sua natureza: o blackout de Nova York, em 1977; o motim em Los Angeles, em 1992, e nos subúrbios parisienses, em 2005; as manifestações em Seattle contra a OMC, em 1999; passando pela Revolta dos Pinguins, no Chile, em 2006; o Occupy Wall Street, em 2011, ou a tomada da Praça Syntagma, na Grécia, há pouco menos de três anos.

A essa série, gostaria de acrescentar as manifestações de junho de 2013 e as ocupações das escolas paulistas e paranaenses, em 2015 e 2016, respectivamente. Embora, como o próprio Negri afirma, se tratem de eventos diversos, com demandas, estratégias e resultados específicos, estamos a falar de mobilizações que ecoam o “espírito” de Maio de 68 e que, décadas depois, seguem ativando novas formas de subjetividades políticas.

Minha leitura de 2013 e das ocupações se distancia do modo como parte da esquerda as interpreta, acusando a primeira de estopim do processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, e ainda que em tom mais generoso, reclama nas segundas a incapacidade de formular propostas claras e objetivas, a ausência de lideranças e de direção, enfim, uma ingenuidade política que contribuiu para a derrota do movimento.

A persistência dos vaga-lumes – Em um artigo de 1975, Pier Paolo Pasolini lamentava que o fascismo italiano, derrotado como regime de governo, sobrevivia triunfante  na sociedade italiana, aniquilando expressões genuínas de sua cultura. À luz deslumbrante, mas ofuscante dos projetores da propaganda e da máquina do fascismo, o poeta e cineasta contrapõem os vaga-lumes, cuja luz fugidia e discreta é também insistente e, o fundamental, resistente.

É por meio dessa metáfora, retomada pelo historiador francês Didi-Huberman, que sugiro uma certa continuidade entre 68 e as manifestações recentes no Brasil: antiautoritárias, criativas em sua capacidade de driblar as armadilhas policialescas, e não apenas as da polícia, questionadoras das ordens instituídas, iconoclastas, nem as “jornadas de junho” nem as ocupas pretendiam tomar ou substituir o poder. A intenção, aberta ou velada, era tensioná-lo por meio de demandas que inscreviam o presente e o cotidiano na ordem política.

A certeza de que o transporte público e a mobilidade, o direito de estar na cidade, deveria ser um bem comum; e a convicção de que qualquer reforma educacional deve ser discutida com quem é diretamente afetado por ela, ou seja, os próprios estudantes, eram suas reivindicações objetivas. Mas elas mobilizavam novas formas de paixões utópicas, outras estratégias e modos de agir e de ocupar os espaços públicos, em grande medida derivadas de 68.

Apesar das diferenças, esses movimentos têm em comum a aspiração a uma singularização irredutível às tentativas de alinhamento, uma espécie de recusa teimosa, de inspiração libertária, do Estado e suas instituições. É verdade que a democracia formal tem dado sinais claros de seu esgotamento, e de que sua existência depende da capacidade de fazer do “Estado de exceção” a regra – somos testemunhas disso no Brasil. Além disso, parte da revolta que inundou Paris foi cooptada com promessas de futuros idílicos, ou transformada em mercadoria.

Mas se por um lado é inegável a sobrevivência dos velhos modos de fazer política, também o é a força e a pertinência dos chamados “novos movimentos sociais”, diretamente relacionados às “jornadas de junho” e as ocupações. Em tempos sombrios como o nosso, é preciso voltar a Maio de 68, desconfiar da utopia como porvir e reiterar a mirada política no presente – ou seja, reafirmar a utopia não como esperança, mas como intervenção.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Maio, 50 anos: exigir, ainda, o impossível


POR CLÓVIS GRUNER
No dia 10 de maio, milhares de estudantes parisienses tomaram as ruas do Quartier Latin, bairro universitário da capital francesa. Com carros destruídos, carteiras, móveis e paralelepípedos construíram as barricadas que, ao longo das semanas seguintes, se tornaram símbolos de um dos mais significativos eventos do século passado. Sabemos hoje, que o movimento mal conquistou aquela que era sua agenda mais objetiva e principal reivindicação, a reforma universitária. 

Mas “Maio de 68” alterou radicalmente nossa maneira de pensar e fazer política: ele sintetiza, exemplarmente, o seu caráter fundamentalmente emancipador, para além da burocratização que comumente a caracteriza. Ao recusarem as utopias clássicas – o liberalismo de mercado e o socialismo estatizante –, os jovens franceses rejeitaram, igualmente, as noções tradicionais de militância e revolução que orientaram parte significativa das experiências políticas anteriores.

Uma atenção às condições históricas ajuda a entender os eventos de maio para além de sua mistificação. No contexto internacional, há a Guerra Fria e, com ela, o esgotamento das alternativas históricas tradicionais. Além disso, aquela era a primeira geração nascida imediatamente após o fim de um longo período de conflitos mundiais, e que chega à juventude usufruindo de um ambiente, se não inteiramente livre de conflitos, sem o peso de duas guerras capazes de devastar um continente inteiro.

Mais especificamente na França, os eventos de Maio também repercutiram condições e experiências históricas que o antecederam. De uma perspectiva simbólica, os insurgentes reivindicavam sua filiação à Comuna de Paris de 1871, e mesmo à revolução de 1848, as chamadas “Jornadas de Junho”. Mais proximamente, há nas ruas do Quartier Latin ecos da Frente Popular de 1936, da resistência à ocupação nazista nos anos de 1940 e do ativismo pela independência da Argélia, no final dos anos de 1950.

No ambiente sociocultural dos anos de 1950-60, esses contextos gestaram e deram forma a manifestações – a contracultura, as experiências de vida comunitária, os movimentos feminista e negro, etc –, e mobilizações diversas – e penso, por exemplo, na Primavera de Praga, ou na resistência às ditaduras na América Latina. Nesse sentido, o Maio francês não é um evento único e isolado, mas parte e resultado de um conjunto de mudanças comportamentais e políticas que caracterizam não apenas o ano de 68, mas toda a década de 1960.

A imaginação no poder – A reforma educacional, reivindicação que motivou a tomada das ruas, rapidamente ensejou outras, de cunho mais estrutural – como o fim da Guerra do Vietnã, partilhada com as manifestações que começavam a surgir nos EUA – ou existencial, expressa no lema “Sejamos realistas, exijamos o impossível”. Os embates também se multiplicaram, com a polícia certamente, mas também com todo o aparato de força e poder de uma sociedade democrática liberal como a francesa – a burocracia, a família, os valores morais, entre outros.

E enfim, há seus desdobramentos. Frente à repressão policial e em solidariedade aos estudantes, sindicatos decretaram greve geral e, rapidamente, o movimento extrapolou seu caráter inicial, ampliou suas reivindicações e envolveu diferentes setores da sociedade francesa – operários, artistas, intelectuais, cineastas, funcionários públicos, etc... No final de maio, a greve geral convocada duas semanas antes já paralisara oito milhões de trabalhadores, uma aliança de proporções inéditas e que não se repetiria nos anos subsequentes.

Nas semanas seguintes, e frente à ameaça de ver ruir o governo, Charles de Gaulle convoca eleições e, apelando aos votos de uma “maioria silenciosa” contrária às barricadas, retoma a maioria parlamentar e o controle de Paris. Maio chega ao fim, mas Maio não teve fim. Participante ativo e um de seus historiadores, Jacques Baynac chama a atenção principalmente para duas características dos eventos de maio que assinalam sua novidade frente a outras sublevações.

Diferente de experiências anteriores, 68 não foi gerado pela escassez, mas pela abundância: abundância de memórias, de referências teóricas, de filiações ideológicas, de estratégias de confronto e ocupação das ruas (barricadas, cartazes, pichações, etc...). Além disso, enquanto as sublevações passadas pretenderam instaurar novas formas de poder, o Maio francês pretendia invalidá-lo – nas palavras de Baynac, “o que equivale a realizar-se como não poder”. Nesse sentido, e me apoio aqui na distinção proposta pelo teórico italiano Furio Jesi, “Maio de 68” não foi, nem pretendeu ser, uma revolução, mas uma revolta.

Entre outras coisas, para Jesi a qualidade que distingue ambas reside na sua relação com o tempo: se a revolução está imersa no tempo histórico e se orienta para o futuro, a revolta o suspende, instituindo o presente. Isso não significa negar, à revolta, sua potência de futuro ou, dito de outra forma, sua potencialidade para vislumbrar, desde o presente, um horizonte possível de expectativas. Ecos do já cinquentenário “Maio francês” alcançaram nosso presente, que foi o seu futuro, em sua capacidade de forjar novas e intensas paixões utópicas e organizar novos modos de insurgência política.

(Essa é a primeira de duas partes de um texto mais longo sobre os 50 anos do Maio de 68. A segunda será publicada sexta-feira.)