quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O cidadão, o consumidor e os impasses da esquerda



Poucos dias antes de seu julgamento pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o ex-presidente Lula concedeu entrevista ao jornal francês “Libération”. Nela, principalmente, se defende das acusações de corrupção, que o condenaram a 12 anos de prisão e, ao menos virtualmente, o colocam fora das eleições presidenciais desse ano.  Não há nada de muito novo nela, mas das respostas de Lula uma em especial me chamou a atenção.

Ao ser perguntado a que atribui o ódio que acusa estar na origem da perseguição política movida contra ele, Lula argumenta que se trata, principalmente, do ressentimento das elites brasileiras, contrariadas com a ascensão social promovida pelas administrações petistas. E prossegue: “Nós transformamos esses pobres em cidadãos. Eles puderam ir a um restaurante, pegar um avião, comprar carros, computadores e celulares modernos. Tudo que estava reservado aos 35% de brasileiros mais ricos, de repente estava disponível para quase todos”.

Há alguns problemas nessa afirmação, a começar pela concepção frágil de cidadania, drástica e equivocadamente reduzida à capacidade de consumir. Não se trata, obviamente, de negligenciar a importância do acesso a bens de consumo, sejam eles quais forem, ou de menosprezar o significado social e político de ver os aeroportos lotados de brasileiros antes limitados no seu direito de ir e vir. Mas de reconhecer o básico, de que se a cidadania passa pelo incremento do consumo, ela não se encerra nele.

Além disso, Lula sugere uma diminuição da desigualdade ao longo da década em que o PT esteve à frente do governo, o que vem sendo colocado em questão por pesquisas recentes. Elas mostram que a redução dos índices de pobreza se fez pela redistribuição pela base, com políticas sociais como o Bolsa Família, e o aumento do salário mínimo, mas que isso não alterou a desigualdade social,que permaneceu intocada. Não pretendo me estender nisso, porque minha questão é outra. Basicamente, acredito que os critérios pelos quais medimos nossa cidadania não podem basear-se apenas no acesso ao mercado e na ampliação do consumo. Isso é bom, necessário até. Mas não o suficiente.

Se fosse apenas conceitual, ainda assim o equívoco seria sério. Mas a concepção frágil de cidadania, que Lula compartilha com e orienta parte significativa de militantes e simpatizantes do lulismo, pode nos ajudar a compreender alguns dos impasses de parte da esquerda brasileira, notadamente do PT, especialmente em um ano eleitoral. É o que pretendo argumentar nos próximos parágrafos.

Do “golpe” à “fraude” – Foi publicado ontem (06), pelo TRF-4, o acórdão da sentença de Lula. O seu destino não está ainda definitivamente selado, porque há recursos que podem ser interpostos pelos advogados. Se há quem aposte em algum tipo de acordo, com o STF com tudo, para livrá-lo da cadeia, é cada vez mais improvável que sua candidatura sobreviva às decisões da justiça – e não vou entrar aqui no mérito político dessas decisões, que pesaram mais que os critérios jurídicos.

A condenação em segunda instância ensejou uma forte mobilização, dentro e fora das redes sociais, no sentido de garantir a candidatura lulista. Sob o mote “Eleição sem Lula é fraude”, o PT reafirma, embora em outro contexto, o que vem anunciando desde o impeachment de Dilma: o golpe começou em 2016, mas sua consolidação passa, necessariamente, pelo impedimento de Lula, que mesmo após o julgamento pelo Tribunal Federal continua liderando, com folga, todas as pesquisas eleitorais.

Não é difícil entender essa liderança. Há, de um lado, a crônica de um desastre anunciado que é o governo Temer, com seus interesses escusos, sua promiscuidade, sua corrupção desavergonhada e impune. De outro, a memória da relativa estabilidade política e econômica dos governos petistas, a servir como um contraponto à instabilidade crescente. Lula e o PT têm recorrido principalmente a lembrança desse período para justificar, mais que o seu direito a disputar a eleição, a afirmação de que, sem ele, ela será uma fraude.

A questão é: por que uma fraude? É preciso voltar à resposta de Lula ao “Libération”. Quando reduz a concepção de cidadania à capacidade de consumo – frequentar restaurantes, viajar de avião, comprar carros e bugigangas tecnológicas –, Lula sintetiza, em um parágrafo, algumas das diretrizes políticas que, de diferentes maneiras, contribuíram para a glória e a agonia dos governos petistas, ao falharem na consolidação de uma cidadania e de uma cultura democrática mais amplas e participativas. Explico.

Ao valer-se, principalmente, da estabilidade econômica e de políticas distributivas que permitiram, de maneira inédita, elevar os padrões de consumo de parcelas significativas da população, sem no entanto criar mecanismos institucionais que facilitassem e promovessem uma participação democrática mais ampla e direta, o social-desenvolvimentismo dos governos petistas diluiu o tema da cidadania nos índices de diminuição da pobreza, na prática barrando seu aprofundamento ao reduzi-la a um único, e insatisfatório, aspecto.

Um novo pacto político – Com isso, instaurou a confusão revelada no discurso de Lula: se não há cidadãos, mas consumidores, não é necessário um projeto político, um esforço de pensar o país nem, tampouco, um exercício de autocrítica capaz de apontar, e corrigir, os limites e os erros passados. Se o que está em jogo não é a ampliação da cidadania, nem fazer avançar nossa cultura democrática, mas as promessas de um futuro baseado no consumo, a narrativa precisa ser reduzida até o limite da polarização: de um lado, as forças que atentam contra o retorno idílico ao país da promissão; de outro, aquele que pode nos devolver a ele.

Se em um contexto de estabilidade essa estratégia já seria arriscada, ela é ainda mais em um momento como o atual, sujeitados que estamos a um governo criminoso e ao risco de uma eleição que amplie e fortaleça o avanço de lideranças e grupos reacionários, do ódio à democracia. À medida que insiste no discurso de que uma eleição sem Lula é fraude, tensionando o campo político e apelando à memória dos consumidores eleitores, o PT colabora para aumentar a instabilidade, e arrisca o que ainda tem de capital político.

Chegará um momento em que terá de decidir se tem coragem suficiente para sustentar um gesto político e simbólico de resistência, apresentando uma espécie de “anti-candidatura” de Lula – o que  pessoalmente acho pouco provável. Ou se volta atrás e, contrariando o que vem insistentemente repetindo, reconhece que as eleições, mesmo sem ele, não são uma fraude e tenta transferir os votos a alguém que, devidamente ungido, cumprirá a promessa de, se eleito, transformar pobres em cidadãos precários, porque pouco mais que consumidores. Mas, além da flagrante e incômoda contradição, há pelo menos dois problemas a considerar.

O mais imediato é que a transferência de votos não é coisa simples, especialmente depois de se construir em torno a Lula a imagem de uma candidatura personalista, que paira acima de programas e partidos. Além disso, transformados e tratados como consumidores, os eleitores podem se comportar como tais escolhendo, na ausência de Lula, quem lhe oferece a melhor mercadoria – que pode vir embalada nas promessas enganosas das medidas liberais de austeridade e de redução dos investimentos públicos, ou no recrudescimento da intolerância e da violência institucionais, apresentadas como um antídoto à insegurança e ao medo.

A alternativa seria propor um projeto político capaz de mobilizar forças e recursos para a efetiva construção da cidadania, apontando caminhos e alternativas democráticas aos nossos muitos problemas. Isso significaria, entre outras coisas, assumir a falência do pacto republicano ainda vigente, substituindo-o por outro, a ser coletivamente construído. Mas, definitivamente, ninguém parece disposto a isso.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Carta a Luana Piovani


POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Olá, Luana.

Que legal! Fiquei a saber que você decidiu vir morar em Portugal e então tomei a liberdade de escrever para dar uns bitaites. Não agradeça, é a cortesia lusitana. As pessoas de bem são sempre bem-vindas, Luana. Os portugueses são um povo que sabe receber, mas também tem o lado prático: há cálculos a dizer que, para manter o crescimento, o país precisa de 900 mil imigrantes para trabalhar e a gerar riqueza. É gente, né?

Eu explico, Luana. Em Portugal a gente tem um sistema de welfare (muito já se perdeu com os ataques neoliberais) e o dinheiro dos impostos é essencial para investir em saúde, segurança ou educação. Para todos. Então você vai entender a preocupação. Todos são bem-vindos, menos aqueles brasileiros que defendem a ideia de que “sonegar é legítima defesa”. Esses a gente não quer. Podem ficar no Brasil.

Aliás, soube que você estava indecisa entre Portugal e EUA. Não resisto a dar um palpite: a Califórnia deve ser melhor opção. Imagine que Portugal é governado pelo Partido Socialista, um pessoal de centro-esquerda muito parecido com o Partido dos Trabalhadores, no Brasil. E surge a questão. Será que você vai curtir a ideia de ser governada por “socialistas”? O poder está tomado pelos “esquerdistas”, Luana.

O atual governo é minoritário e só consegue governar com o apoio do Partido Comunista (coligado com os não menos esquerdistas Os Verdes) e do Bloco de Esquerda. É o tipo de gente que, mesmo em Portugal, um país de brandos costumes, muitos chamam “extrema esquerda”. Ou seja, para os padrões coxinhas brasileiros eles são ainda mais “esquerdopatas” que os petistas. É dureza.

E mais uma inside information. O Bloco de Esquerda é coordenado pela Catarina Martins. Então fico a imaginar como você vai reagir a isso, uma vez que parece não gostar muito de mulheres no comando. Dilma que o diga, né? E o Partido Comunista é liderado pelo Jerónimo de Sousa, um antigo operário metalúrgico. Metalúrgico? Onde é que já ouvimos essa história? Ah, sim, Lula. Então fica a pergunta: será que você quer mesmo viver num país como Portugal?

Olha, Luana, a gente até já esqueceu aquele episódio do Instagram. Lembra como foi? “O Brasil foi explorado tantos anos por Portugal e agora continuará a ser pela PT! Não é à toa que a sigla de Portugal é PT! Eu votei Aécio!”, você escreveu. Confesso que não entendi a declaração, porque parece uma maluquice pegada (expressão cá da terra) e não faz o menor sentido. Era uma tentativa de ofender? Passou.

Despeço-me, Luana, na expectativa de que tenham sido informações úteis e que a ajudem a decidir. Se vier para Portugal vai ser bem recebida. Como foi a Madonna, que já vive aqui faz um tempinho. Aliás, vai ser uma honra para os portugueses ter, ao mesmo tempo, duas estrelas de expressão mundial.

É a dança da chuva.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

O balão de Udo Dohler desinchou...


POR JORDI CASTAN

Começou o xadrez para eleição estadual de 2018. E ficou claro que o sonho do prefeito de Joinville - que queria ser candidato a governador de Santa Catarina - não foi além de uma quimera. Não é segredo para ninguém que a candidatura do prefeito Udo Dohler nunca passou de um sonho amalucado. Com uma administração tão ruim que não chega sequer a pode ser considerada medíocre, atrapalhado pela sua própria inépcia e rodeado por uma equipe sem imaginação, nem capacidade, sua imagem de gestor eficiente nunca ultrapassou os limites de Garuva ao norte, Araquari ao sul e Guaramirim ao oeste.

O balão estufado desinchou rapidamente quando confrontado com verdadeiros profissionais da política. Sem nada para mostrar, sem o apoio do seu padrinho político e sem a menor capacidade de articulação, a sua figura política reduziu-se ao que sempre foi: um administrador medíocre, acostumado a vencer eleições em que não teve concorrentes com chances reais de enfrentá-lo. É bom lembrar que ser eleito presidente da ACIJ uma meia dúzia de vezes ou do sindicato patronal não pode ser considerado uma prova de popularidade e que as duas eleições municipais vencidas em Joinville foram, na primeira, mais mérito de Luiz Henrique e, na segunda, demérito do seu opositor a segunda.

Agora reduzido a sua real insignificância, o prefeito Udo Dohler enfrenta sem muitas expectativas e sem realizações o seu lânguido final de mandato. Uma segunda gestão que acabou bem antes de iniciar. Nenhuma das suas promessas de campanha foi cumprida e mesmo que siga impávido e lépido com o seu discurso vazio, não engana mais ninguém. Poucos dos seus eleitores votariam nele de novo. Teria trabalho até para se eleger síndico do seu prédio. Se sua empresa de toalhas fabricasse seus produtos como se executam as obras públicas aqui na vila, ou tratasse seus clientes como trata os eleitores de Joinville, das duas uma: a empresa teria falido faz anos ou gastaria fortunas se defendendo no Procon por promessas descumpridas, produtos não entregues no prazo e sem a qualidade apregoada na propaganda.

Santa Catarina tem sorte de que alguém com os seus predicados (ou falta deles) não seja candidato ao governo do Estado. O reverso da moeda é que Joinville pagará ainda por mais alguns anos o preço de tanta incompetência. Joinville se sacrificará, uma vez mais, para salvar Santa Catarina. Joinville paga o preço e o seguirá pagando por anos a fio.

A triste conclusão é a que administrar uma cidade do porte de Joinville requer conhecimento, capacidade e experiência que não estão ao alcance da maioria. A possibilidade que tenhamos, no curto e médio prazo, candidatos com este perfil é mais que improvável e esta é uma ameaça que pesa, como uma espada de Dâmocles sobre o futuro desta cidade. Quem poderia não quer Quem quer não tem a competência para fazê-lo. E o eleitor acabará elegendo de novo um candidato inepto para administrar uma cidade cada vez mais complexa e mais difícil de administrar. 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Nazistas em São Chico? Prefeito quer reparação de guerra da Alemanha

POR DOMINGOS MIRANDA
Há muito tempo eu não via uma história tão bizarra como a publicada na Folha de S. Paulo em 31 de janeiro. O jornal informava que a prefeitura de São Francisco do Sul está reivindicando compensação financeira do governo da Alemanha a título de reparação de guerra. Isso porque, alegam os advogados, o canal do Linguado foi fechado em 1935 para que o governo nazista transportasse material bélico para Joinville. Como essa obra causou danos ambientais, a cidade quer ser recompensada.

A advogada Maristela Basso, que é professora de direito da Universidade de São Paulo e coordena o processo, diz que este material bélico chegava ao porto de São Francisco em navios e submarinos da Alemanha, era finalizado na região e então enviado para outros destinos. “Queremos que São Francisco do Sul seja incluída no rol das reparações de guerra da Alemanha”, frisou Basso para a repórter da Folha. O prefeito Renato Lobo explicou que quer usar este dinheiro da reparação para financiar estudos sobre impactos ambientais da possível reabertura do canal.

Esta é mais um fato fantástico envolvendo São Francisco. No passado já ocorreram outros acontecimentos extraordinários, comprovados, tais como a do capitão francês Binot Gonneville, a do explorador espanhol Cabeza de Vaca e do médico francês Benoit Mure, fundador do Falanstério do Saí. Agora surge esta história, ainda não documentada, das garras do governo nazista às margens da baía da Babitonga. O governo alemão já se manifestou, através do consulado geral em São Paulo, dizendo que o aterramento “foi uma decisão do governo brasileiro, tomada antes da Segunda Guerra”, portanto sem nenhuma responsabilidade do governo alemão.

É verdade que os municípios brasileiros passam por dificuldades financeiras por conta da crise, mas existem maneiras mais práticas de solucionar estas carências. Apelar por uma ajuda da chanceler Angela Merkel chega a ser ridículo, podendo ser motivo de chacota. A abertura do canal do Linguado é uma necessidade e há cerca de 20 anos se discute isso mas a justiça não chega a um acordo. Quem perde é a população, pois a baía da Babitonga está sendo assoreada e dentro de pouco tempo ficará imprópria para a navegação.

Oportunidades surgem e os administradores deixam escapar. Há cerca de dez anos o médico Carlos Alberto Fiorot, então presidente da Associação Médica Homeopática Brasileira, se deslocou de Vitória (ES) até São Francisco do Sul para um encontro agendado com o prefeito Luiz Zera. O chefe do Executivo não pode atender e a conversa foi com um dos secretários. Fiorot propunha a criação de um Museu da Homeopatia na Vila da Glória, no local onde Benoit Mure criou a primeira escola homeopática brasileira. Diante do desinteresse da prefeitura, o assunto não prosperou.

O escritor Victor Hugo dizia que uma boa ideia no tempo certo tende a ser vitoriosa. Mas, no caso desta reparação de guerra não é uma ideia genial, mas apenas um jogo de marketing em busca de dividendos econômicos. Só que a história está tão mal contada que pode deixar a cidade envergonhada. 


Ponte no Canal do Linguado foi substituída por aterro e pode gerar indenização.