Poucos dias antes de seu julgamento pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o ex-presidente Lula concedeu entrevista ao jornal francês “Libération”. Nela, principalmente, se defende das acusações de corrupção, que o condenaram a 12 anos de prisão e, ao menos virtualmente, o colocam fora das eleições presidenciais desse ano. Não há nada de muito novo nela, mas das respostas de Lula uma em especial me chamou a atenção.
Ao ser perguntado a que atribui o ódio que acusa estar na origem da perseguição política movida contra ele, Lula argumenta que se trata, principalmente, do ressentimento das elites brasileiras, contrariadas com a ascensão social promovida pelas administrações petistas. E prossegue: “Nós transformamos esses pobres em cidadãos. Eles puderam ir a um restaurante, pegar um avião, comprar carros, computadores e celulares modernos. Tudo que estava reservado aos 35% de brasileiros mais ricos, de repente estava disponível para quase todos”.
Há alguns problemas nessa afirmação, a começar pela concepção frágil de cidadania, drástica e equivocadamente reduzida à capacidade de consumir. Não se trata, obviamente, de negligenciar a importância do acesso a bens de consumo, sejam eles quais forem, ou de menosprezar o significado social e político de ver os aeroportos lotados de brasileiros antes limitados no seu direito de ir e vir. Mas de reconhecer o básico, de que se a cidadania passa pelo incremento do consumo, ela não se encerra nele.
Além disso, Lula sugere uma diminuição da desigualdade ao longo da década em que o PT esteve à frente do governo, o que vem sendo colocado em questão por pesquisas recentes. Elas mostram que a redução dos índices de pobreza se fez pela redistribuição pela base, com políticas sociais como o Bolsa Família, e o aumento do salário mínimo, mas que isso não alterou a desigualdade social,que permaneceu intocada. Não pretendo me estender nisso, porque minha questão é outra. Basicamente, acredito que os critérios pelos quais medimos nossa cidadania não podem basear-se apenas no acesso ao mercado e na ampliação do consumo. Isso é bom, necessário até. Mas não o suficiente.
Se fosse apenas conceitual, ainda assim o equívoco seria sério. Mas a concepção frágil de cidadania, que Lula compartilha com e orienta parte significativa de militantes e simpatizantes do lulismo, pode nos ajudar a compreender alguns dos impasses de parte da esquerda brasileira, notadamente do PT, especialmente em um ano eleitoral. É o que pretendo argumentar nos próximos parágrafos.
Do “golpe” à “fraude” – Foi publicado ontem (06), pelo TRF-4, o acórdão da sentença de Lula. O seu destino não está ainda definitivamente selado, porque há recursos que podem ser interpostos pelos advogados. Se há quem aposte em algum tipo de acordo, com o STF com tudo, para livrá-lo da cadeia, é cada vez mais improvável que sua candidatura sobreviva às decisões da justiça – e não vou entrar aqui no mérito político dessas decisões, que pesaram mais que os critérios jurídicos.
A condenação em segunda instância ensejou uma forte mobilização, dentro e fora das redes sociais, no sentido de garantir a candidatura lulista. Sob o mote “Eleição sem Lula é fraude”, o PT reafirma, embora em outro contexto, o que vem anunciando desde o impeachment de Dilma: o golpe começou em 2016, mas sua consolidação passa, necessariamente, pelo impedimento de Lula, que mesmo após o julgamento pelo Tribunal Federal continua liderando, com folga, todas as pesquisas eleitorais.
Não é difícil entender essa liderança. Há, de um lado, a crônica de um desastre anunciado que é o governo Temer, com seus interesses escusos, sua promiscuidade, sua corrupção desavergonhada e impune. De outro, a memória da relativa estabilidade política e econômica dos governos petistas, a servir como um contraponto à instabilidade crescente. Lula e o PT têm recorrido principalmente a lembrança desse período para justificar, mais que o seu direito a disputar a eleição, a afirmação de que, sem ele, ela será uma fraude.
A questão é: por que uma fraude? É preciso voltar à resposta de Lula ao “Libération”. Quando reduz a concepção de cidadania à capacidade de consumo – frequentar restaurantes, viajar de avião, comprar carros e bugigangas tecnológicas –, Lula sintetiza, em um parágrafo, algumas das diretrizes políticas que, de diferentes maneiras, contribuíram para a glória e a agonia dos governos petistas, ao falharem na consolidação de uma cidadania e de uma cultura democrática mais amplas e participativas. Explico.
Ao valer-se, principalmente, da estabilidade econômica e de políticas distributivas que permitiram, de maneira inédita, elevar os padrões de consumo de parcelas significativas da população, sem no entanto criar mecanismos institucionais que facilitassem e promovessem uma participação democrática mais ampla e direta, o social-desenvolvimentismo dos governos petistas diluiu o tema da cidadania nos índices de diminuição da pobreza, na prática barrando seu aprofundamento ao reduzi-la a um único, e insatisfatório, aspecto.
Um novo pacto político – Com isso, instaurou a confusão revelada no discurso de Lula: se não há cidadãos, mas consumidores, não é necessário um projeto político, um esforço de pensar o país nem, tampouco, um exercício de autocrítica capaz de apontar, e corrigir, os limites e os erros passados. Se o que está em jogo não é a ampliação da cidadania, nem fazer avançar nossa cultura democrática, mas as promessas de um futuro baseado no consumo, a narrativa precisa ser reduzida até o limite da polarização: de um lado, as forças que atentam contra o retorno idílico ao país da promissão; de outro, aquele que pode nos devolver a ele.
Se em um contexto de estabilidade essa estratégia já seria arriscada, ela é ainda mais em um momento como o atual, sujeitados que estamos a um governo criminoso e ao risco de uma eleição que amplie e fortaleça o avanço de lideranças e grupos reacionários, do ódio à democracia. À medida que insiste no discurso de que uma eleição sem Lula é fraude, tensionando o campo político e apelando à memória dos
Chegará um momento em que terá de decidir se tem coragem suficiente para sustentar um gesto político e simbólico de resistência, apresentando uma espécie de “anti-candidatura” de Lula – o que pessoalmente acho pouco provável. Ou se volta atrás e, contrariando o que vem insistentemente repetindo, reconhece que as eleições, mesmo sem ele, não são uma fraude e tenta transferir os votos a alguém que, devidamente ungido, cumprirá a promessa de, se eleito, transformar pobres em cidadãos precários, porque pouco mais que consumidores. Mas, além da flagrante e incômoda contradição, há pelo menos dois problemas a considerar.
O mais imediato é que a transferência de votos não é coisa simples, especialmente depois de se construir em torno a Lula a imagem de uma candidatura personalista, que paira acima de programas e partidos. Além disso, transformados e tratados como consumidores, os eleitores podem se comportar como tais escolhendo, na ausência de Lula, quem lhe oferece a melhor mercadoria – que pode vir embalada nas promessas enganosas das medidas liberais de austeridade e de redução dos investimentos públicos, ou no recrudescimento da intolerância e da violência institucionais, apresentadas como um antídoto à insegurança e ao medo.
A alternativa seria propor um projeto político capaz de mobilizar forças e recursos para a efetiva construção da cidadania, apontando caminhos e alternativas democráticas aos nossos muitos problemas. Isso significaria, entre outras coisas, assumir a falência do pacto republicano ainda vigente, substituindo-o por outro, a ser coletivamente construído. Mas, definitivamente, ninguém parece disposto a isso.
mas como fazer isso acontecer, sabendo que vivemos um pessimismo brasileiro diante da política ? Depois vemos um judiciário tomar posição politica aproveitando desse pessimismo e dessa certa maneira oculta interferindo na democracia.
ResponderExcluirO judiciário não interfere na democracia, ele faz parte dela.
ExcluirFazer parte da democracia significa interferir nela, de um jeito ou de outro, para o bem ou para o mal - com o perdão do maniqueísmo.
ExcluirTambém acho temerária essa judicialização da política exacerbada e, aparentemente, sem limites que estamos a assistir. Mas há algo de didático nela: finalmente está a ficar claro que, no fim das contas, o campo jurídico nunca foi neutro e desinteressado. Muito pelo contrário, como bem sabia Romero Jucá.
Muito bonito. Escreveu uma tese sobre o desenho do arco-íris desenhado por um infante de três anos...
ResponderExcluirO mais interessante é que o autor atribui aos “reacionários” um tal “ódio à democracia”, enquanto senadores petistas vão às redes sociais conclamando a desobediência civil contra uma “perseguição política das instituições judiciais contra a deidade-mor que responde por mais seis inquéritos”!
C’mon!
"C'mon" é uma coisa meio francês com esperanto? Ou algum parente distante e menos famoso do Mon Rá?
ExcluirPrimeiramente, toma meu like!!!!
ResponderExcluirSegundamente, como a administração do blog liberou esse seu texto tão observador e correto sobre o partido em questão?
Primeiramente, obrigado pelo like.
ExcluirSegundamente, o blog não tem dono nem segue uma linha política e/ou ideológica única. Explico: eu e o Baço (e o tomo como exemplo porque, de todos aqui, ele é de quem sou mais próximo) somos ambos de esquerda mas, fora isso, discordamos em quase tudo, inclusive e principalmente na avaliação dos governos petistas.
Ainda assim, essa é a terceira ou quarta vez que faço parte do quadro de colaboradores do blog, e em todas foi ele quem me convidou a participar. Acho que a ideia é um pouco essa, ter gente que pensa diferente pra atrair leitores diferentes.
É a dança da chuva, como diria o Zé.
E como se constrói a cidadania? Passando obrigatoriamente pelo consumo. Vivemos uma sociedade de consumo. Não é o empresario que cria empregos, é o consumo. O empresario vive do consumo. Consumir 3 refeições ao dia é o básico do básico da cidadania. E precisa escovar os dentes apos as refeições. Se Lula concorrer e vencer a próxima eleição, será apenas o primeiro passo pra vencer a guerra que se avizinha.Lula não será o conciliador. Parte do empresariado até o apoiariam nesse sentido, mas os grandes mesmo querem a hegemonia e a escravidão a ser instalada com a reforma trabalhista. Lula será o estopim da guerra de classes que me parece inevitável.
ResponderExcluirLaerte, em nenhum momento neguei que a cidadania passa pelo consumo; meu texto afirma justamente o contrário disso, e por concordar com isso que defendi e defendo programas como o Bolsa Família, por exemplo. Minha questão, e pensei ter deixado isso claro, é que não se pode confundir cidadania com consumo ou, mais precisamente, a cidadania passa pelo consumo, mas não pode encerrar nele.
ExcluirNo mais, acho que você superestima a disposição de Lula e do PT de confrontarem os interesses das elites. Em 12 anos de governo eles não o fizeram (é o próprio Lula, aliás, quem o reconhece: empresários e banqueiros ganharam muito dinheiro nas gestões petistas), e não o farão.
Guerra de classes? Vai por mim, Lula e o PT optaram (com o perdão do trocadilho) pela velha e nada boa conciliação.
"A alternativa seria propor um projeto político capaz de mobilizar forças e recursos para a efetiva construção da cidadania, apontando caminhos e alternativas democráticas aos nossos muitos problemas. Isso significaria, entre outras coisas, assumir a falência do pacto republicano ainda vigente, substituindo-o por outro, a ser coletivamente construído. Mas, definitivamente, ninguém parece disposto a isso". A pergunta é; Como construir o tal pacto republicano? Que pacto é possível com gente (e não é pouca) que considera o bolsa família uma estratégia do governo para comprar votos? Que pacto é possível com gente que ainda não entendeu que a aliança que Lula fez teve como objetivo primeiro mitigar a fome de milhões de brasileiros e com isso estancar a migração da legião de miseráveis para as metrópoles, verdadeira causa da violência urbana e da consequente paranóia que vive a classe média. Querem ter um recorte de como pensa a classe média xucra que teríamos de aguentar numa mesa par discutir o tal pacto? Tomem como amostragem o que acontece aqui neste blog, que abre espaço para articulistas de todas as correntes ideológicas e q desta forma deveria ser frequentado por uma camada mais a esclarecida da população. Vejam o nível dos comentários dos tais anônimos, eduardos, rosas e similares quando o assunto é de interesse comum. Como é possível debater algo, sem partir para o escárnio, com gente que segue o Olavo de Carvalho, o Kim Kataguri e o Bolsonaro, esse com 20% das intenções de votos, o que dá algo em torno de 20 milhões de almas que toleram a tortura e que se transformariam em 40 milhões, caso a disputa seja em segundo turno com Lula. Que pacto é possível com essa gente? PS. Logo que assumiu, Lula propôs um pacto com a sociedade, leia-se, sindicatos, ONGs, mídia/grandes empresários. Mídia e grandes empresários parafrasearam Millo e mandaram um recado. "Me incluam fora dessa"
ResponderExcluirLula não apenas propôs "o pacto com a sociedade" como o colocou em prática. 42,8% dos 1.300 cargos da elite comissionada do governo (sem obrigatoriedade de concurso público) eram "sindicalistas"!!!!!
ExcluirO resultado desse "governo popular" estamos vendo agora nos fundos de pensões, estatais, bancos, agências, etc.
Lemos, talvez não tenha sido suficientemente claro em meu texto quanto a isso. Acho que a tal "nova República", grosso modo, o pacto político vigente desse o fim da ditadura, acabou. Precisamos criar outras formas de gerir a coisa pública que não o clientelismo rastaquera e corrupto que vigora desde então.
ExcluirObviamente, isso passa pela renovação dos quadros políticos, o que não é coisa fácil, e essa é uma das minhas críticas ao PT: ele podia, na gestão Lula, ter iniciado um movimento de renovação desse pacto. Preferiu reproduzi-lo e paga o preço por isso.
15:35, gosto de gente que tem informação, além de privilegiada, exclusiva e precisa. Coloca na roda o gráfico com os 42,8% de comissionados.
Excluirhttps://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/folha-os-sindicalistas-no-governo-lula
Excluirhttp://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2712201002.htm
De um total de 22 mil cargos de confiança, segundo a matéria que você disponibilizou, cerca de 1.300 fazem parte de uma "elite". Dessa suposta elite, 43% dos cargos foram ocupados por sindicalistas, o que dá, de acordo com meus cálculos meio primários, cerca de 560 cargos.
ExcluirSe o cálculo for feito para os 22 mil comissionados, os tais 560 compunham algo em torno de 2,5% do total.
Ou seja, você coloca entre aspas e com muitos pontos de exclamação, o fato chocante de que um Partido dos Trabalhadores, que acabara de eleger como presidente um ex-sindicalista, nomeou para compor uma suposta elite dirigente, menos de 50% e, para o total de cargos comissionados, cerca de 2,5% de nomes vindos dos... sindicatos.
Cara, o que merece ponto de exclamação aqui é a sua completa falta de noção. Se esforce mais da próxima vez.
Clóvis. Nós estamos falando de "aliados" do nível de pmdb, ptb, pl, pp, pr e similares. Essa gente só conhece uma forma de argumento; A chantagem... que é siamesa do toma lá, da cá, prima irmã do, dinheiro na mão, calcinha no chão.
ExcluirO quadro que já é desalentador fica ainda pior quando se olha para o nível de canalhice dos papas da nossa imprensa. Gente como Diego Mainardi, Arnaldo Jabor, Sandembreg, Noblat, Eliane Cantanhêde, Sherezade, Boris Casoy, Merval Pereira, William Waack e mais a arraia miúda, que perderam o resto da vergonha que tinham ao entraram de cabeça na campanha de uma pústula como o tal Aécio Neves, e que por um triz chamado nordeste, não o transformaram em presidente da república.
Lula errou, mas não foi por não ter fomentado o tal pacto, ele sabia q não existia possibilidade de pacto com a escória que ele teve que se aliar, nem com a mídia que é e representa o capital, que por sua vez não quer pacto o gentio.. Lula foi pragmático, se aliou aos ratos para poder aprovar medidas que estancassem a fome do povo, reduzisse a desigualdade social e alavancasse o desenvolvimento... o que não é pouca coisa pra se fazer em 8 anos.
Tenho pra mim que não vai haver pacto algum que moralize a política enquanto existirem 6 famílias, donas dos principais meios de comunicação, usando a própria régua para decidir quem presta e quem não presta no meio político... e este foi o grande erro de Lula, o de não ter tentado estancar pela via econômica, o poder dessa quadrilha que há 50 anos usurpou a prerrogativa de dar as cartas na política nacional e impede a realização de qualquer pacto que ameace os privilégios da classe que representa.
Corrigindo: ".. que perderam o resto da vergonha que tinham ao entrarem de cabeça na campanha de..."
Excluir2) "nem com a mídia que é e representa o capital, que por sua vez não quer saber de pacto com o gentio..
Correção: "parte do empresariado ate o apoiaria"
ResponderExcluirParabéns, fazia tempo que alguém não escrevia algo coerente neste espaço.
ResponderExcluirCidadania lembra muito o mito da maioridade intelectual de Kant. Esse Texto que os professores nos enfiam goela abaixo em cursos de humanas.
ResponderExcluirKant era aquele que acreditava que as luzes da razão iluminaram a humanidade e este texto é a gênese de todo idealismo moderno. O problema é que este texto já tem um tempo, e a modernidade se provou um show de barbáries ainda mais tenebrosas que de outras eras.
O consumismo nada mais que o vazio, e percepção que todas as proposta da modernidade são ilusões, e uma entrega as luxúrias e uma sociedade decadente.
Sem blá blá é Lula 2018!
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