quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O deputado, a Rocinha e as políticas do esquecimento


Afinal, Jair Bolsonaro realmente sugeriu metralhar a Rocinha como solução para o tráfico e a violência na comunidade carioca? A nota, publicada pelo jornalista Lauro Jardim em sua coluna de domingo (11), no jornal “O Globo”, repercutiu enormemente em sites, especialmente os de esquerda, e nas redes sociais, além de provocar a ira do próprio deputado e presidenciável e de seus seguidores, os chamados “bolsominions”.

Apesar da repercussão, é bastante provável que a frase não tenha sido dita, ao menos não como informou Lauro Jardim. Claro que Bolsonaro tratou de desmentir a nota, mas o desmentido de um fascista tem validade zero como prova. Por outro lado, a favor dele, há a ausência de qualquer registro documental, o que em tempos de internet e vídeos comprometedores sacados de celulares, é no mínimo estranho, especialmente em um evento com algumas centenas de testemunhas.

Além disso, nenhum outro veículo ou profissional deu a tal notícia, e o também jornalista Augusto Nunes, convidado a conduzir um bate-papo com Bolsonaro, disse textualmente que se tratou de um equívoco. De acordo com Nunes, seu colega foi “induzido ao erro”, possivelmente informado, e mal, por algum dos presentes. A própria coluna de Lauro Jardim, em sua versão on line, publicou uma espécie de “erramos”, aparentemente acatando a explicação do deputado.

Em seu artigo de terça (13), meu colega de blog José António Baço abordou o assunto sob o prisma de sua repercussão na mídia. Em síntese, defendeu que as recentes notícias envolvendo Bolsonaro, desde o aumento suspeito de seu patrimônio pessoal e de seus filhos (essas, absolutamente verdadeiras), até a nota n’“O Globo”, são parte de uma estratégia para se livrar do incômodo candidato. Gostaria de abordar o mesmo acontecimento sob outra perspectiva.

Tortura, estupro e ódio como paradigmas – A mim não importa que Bolsonaro não tenha dito tamanho impropério, porque há registros suficientes da sua capacidade e disposição em produzir e disseminar o ódio e a barbárie. Há, por exemplo, sua apologia ao estupro, e suas muitas homenagens à memória do Coronel Brilhante Ustra, conhecido por torturar e estuprar militantes mulheres – sim, parece que Bolsonaro tem uma fixação pelo assunto.

Há ainda uma coleção de declarações homofóbicas, racistas e misóginas (além da apologia ao estupro), e sua completa miopia no que se refere a temas como a violência, ao defender o recrudescimento de políticas públicas que há décadas são, justamente, parte instituinte do problema, não sua solução. Uma visão estreita de mundo, obviamente, não poderia resultar em outra coisa além de um candidato cujas “propostas” (passe o exagero) só são comparáveis às nações governadas pelo peso do autoritarismo militar – como a Venezuela ou a Coreia do Norte –, ou do fundamentalismo religioso, como em alguns países do Oriente Médio.

Mas se votar em Bolsonaro é desistir de um país moderno, seja econômica ou politicamente, o que explica que de uma excrescência fascista ele tenha passado a segundo lugar na intenção de votos para presidente? A explicação de que se trata de um outsider, embora coerente, me parece insuficiente. E embora seja verdade que, apesar de ter pertencido à base aliada de todos os governos do PT, seu crescimento se deva em parte à sua capacidade de surfar na onde do anti-petismo mais hidrófobo, tampouco considero tal argumento satisfatório.

Como uma força centrípeta, ele canaliza, dá forma e sentido a um conjunto de afetos dispersos e difusos, tais como o ressentimento, a indiferença, o medo e o ódio, produzidos em um ambiente político pouco afeito a coisas como democracia, liberdades individuais ou direitos humanos. Há uma parcela expressiva de pessoas que o apoiam justamente por seus elogios à ditadura e sua defesa da tortura, por exemplo, e não apesar disso. Nesse sentido, entender o seu significado é compreender o processo de construção de nossa memória recente.

O esquecimento e a banalização da violência – No último livro publicado em vida, “A memória, a história, o esquecimento”, o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões positivas do olvido, os efeitos potencialmente danosos do esquecimento como gesto forçado de apagamento da lembrança, que denominou de “memória impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que, como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério para associar aquela ao perdão.

O equívoco não é apenas semântico – anistia não significa necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento –, mas principalmente político. Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas de esquecimento daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo institucionalmente, continuam a ameaça-la.

Há diferentes maneiras de interpretar o alcance dessa limitação. Entre outras coisas, o esquecimento produz a naturalização e a banalização da violência institucional – aquela praticada pelo Estado e os governos –,  que admitida como um dos componentes de nossa vida social, não é por isso considerada desumana nem, tampouco, uma anomalia, uma aberração, um desvio: no Brasil, parafraseando Giorgio Agamben, a violência institucional há tempos deixou de ser exceção para se tornar a regra.

A truculência de Bolsonaro é um sintoma desse estado de coisas. Ele mobiliza e organiza um circuito de afetos que tem como centro o esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana para com as violências presentes, usando a democracia não para aprofundá-la, mas para conspirar contra ela e fragilizá-la. Racista, misógino, homofóbico, clara e abertamente fascista, Bolsonaro não é apenas a expressão de nossos impasses políticos, mas um perigo que ameaça nossa ainda débil democracia. Se nunca fomos modernos, com ele estamos condenados a nunca ser.

18 comentários:

  1. Levando-se em consideração que o cara é candidato a presidente e que uma de suas pedras na ferradura é justamente a desconfiança do meio empresarial, seria muita estupidez dos marqueteiros deixar de gravar em vídeo uma palestra com mais de mil empresários que certamente seria aproveitada na campanha como capim para seus eleitores. Sendo assim, quem é do ramo sabe, que a não ser que a equipe de marketing seja composta por bolsominions, portanto, estúpidos, a probabilidade dessa palestra não ter sido gravada em vídeo é zero. P.S. Meu filho aventou a possibilidade dos empresários terem vetado a gravação para não haver registro de um muito provável mico. Faz sentido.

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    1. Lemos, mesmo que a organização tenha vetado a gravação do evento, hoje em dia, com celulares, não é difícil registrar e "vazar" o vídeo. Não sei, mas acho mesmo que ele não disse o que disseram que ele disse - ficou estranho. O que, sendo o Bolsonaro quem é, não faz a menor diferença.

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    2. O que eu quis dizer é que o material gravado foi recolhido pela produtora de vídeo e guardado a sete chaves. Penso que os caras estão mais cuidadosos depois do episódio dos quilombolas, até pq o QG bolsonarista tem consciência que estão lidando com um desequilibrado com a língua solta e sabem também que seus atos falhos(não confundir com incontinência verbal) vão servir de munição a ser utilizada pelos adversários durante a campanha. Bom lembrar que estamos falando de um ex-militar...os caras são paranoicos quando o assunto é informação.
      Em tempo. Gravar uma palestra com celular sem um tripé é meio complicado, no máximo o cara grava um trecho para ter como registro.

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  2. Quem precisa de fake news se os próprios veículos de comunicação, com jornalistas de araque à frente, tratam de falsiar a realidade?

    Sobre um tal ódio que vem de Bolsonaro, reverberado por supostas ideias “misóginas, homofóbicas, de apologia à ditadura militar”, não chega nem perto do ÓDIO da extrema-extrema esquerda que ae sente no direito de violentar (fisicamente) pessas que pensam contrárias a ela. Um exemplo desse ÓDIO vem da supostos “intelectuais” da esquerda, como o da Marcia Tiburi. Convido a todos assistirem os improbérios destilados por essa filósofa.

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  3. 11:39. Toma um café bem forte e um banho gelado que passa.

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  4. Não é estranho uma reprodução nacional do suposto "holy shit" do Trump,continuem assim mídia esquerdistas e essa não será a única semelhança.

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  5. 13:58. Reze um pai nosso pela bebedeira que c tá perdoado...

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  6. Mais um belo texto Clovis, apesar de não concordar com suas convicções a respeito do mesmo. Bolsonaro é tosco e se expressa para um determinado perfil de eleitores que não seguem a cartilha do politicamente correto, no contexto dele ele chamou uns de preguiçosos o que não configura racismo, ele chamou uma cidadã que o ofendeu de feia e não cometeu apologia ao estupro, ele não defende a tortura, mas na visão dele um cidadão que fez o seu dever patriótico.

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    1. Obrigado. Mas realmente, não acredito que no caso do Bolsonaro se trate apenas de questões semânticas - considerar negros e quilombolas preguiçosos, por exemplo - ou de ser contra o "politicamente correto".

      E se alguém considera torturar e estuprar, sob os auspícios do Estado, cumprir seu dever patriótico, ao ponto de render homenagens e um torturador e estuprador como Brilhante Ustra, bem, ele está a defender a tortura, certo?

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  7. "Determinado perfil de eleitores" é uma forma elegante de se referir a jumentos. "Que não seguem a cartilha do politicamente correto" neste caso, é um eufemismo para fascista. "Cidadão que fez o seu dever patriótico" no caso do Ustra, é a confirmação que o patriotismo é o último refúgio do canalha.

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    1. O primeiro são os partidos de esquerda e os sindicatos. E
      Essa palavra fascista, perdeu há muito tempo seu sentido, não passa da propaganda esquerdista para qualificar seus desafetos. Todo texto que existe essa palavra pra mim já entra em descrédito.
      E outra coisa os monstros são criados muitas vezes para combater outros monstros, então esquerda deveria se cuidar e olhar pra si própria, por que se existe um monstro ele pode ser reativo.

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    2. Até pq um cara que defende a tortura "pq funciona", faz apologia ao estupro e diz q vai fuzilar 30 mil não se enquadra no perfil de fascista. Com relação ao crédito/descrédito, o único texto que já entra em descrédito por aqui são aqueles que começam com, Fabio Rosa dd/mm/aaaaa h:min. Textos que mais parecem "o samba do crioulo doido" com a devida vênia psicografada do saudoso Sérgio Porto.
      Sério! A gente não sabe se começa a ler a gororoba pelo fim ou pelo começo, tal é a confusão. Vai por mim. Se esforce que vc fica pior.
      P.S. Desconfio que vc tenha um modelo pronto no word com os clichês e o senso comum, com espaços para serem preenchidos...tipo aqueles contratos de aluguel e tals...rs

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    3. Meu caro não faço a minima questão de ser compreendido.
      Como diria nossa bruxa(Clarice Lispector): aquilo que não sei e não compreendo é minha melhor parte.

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    4. E olha...vc capricha nisso.

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  8. Para corroborar. Se o que restava da ditadura entre nós existia de modo velado, com Bolsonaro e tudo o que representa passou ao modo escancarado. Como inventar uma democracia que não fosse capenga se ao final o que se teve, em nome da reconciliação nacional, foi mantermos os esqueletos no armário, ao contrário dos nossos vizinhos latino-americanos? A Lei de Anistia foi/é um dos principais entraves à democratização da sociedade brasileira. Nossa sensibilidade democrática se enfurece com dinheiro roubado, mas aceita a tortura, aceita a morte, aceita a violência. Algo deu errado quando os militares voltaram para os quartéis.
    Um abraço,
    Zaia

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    1. Zaia, algo deu muito errado com a chamada redemocratização.

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    2. Para quem conhece historia sabe que a que democracia sempre da errado. A ditadura sempre bate a porta.

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  9. Escrevam sobre o tema da escola campeã no Rio de Janeiro, a Beija-Flor de Nilópolis.
    (Mas vão levar um pau...)

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