POR CLÓVIS GRUNER
Não sou daqueles que acham que não se pode falar de Bolsonaro. Aliás, acho que precisamos falar mais dele, e basta uma razão: ele é líder nas pesquisas, aquelas que valem alguma coisa, já que Lula, na prática, não é candidato nem será. Isso pode mudar? Espero que sim, porque Bolsonaro é a maior ameaça à democracia brasileira desde que a restabelecemos. E isso depende, em grande medida, de falarmos dele todos os que, das esquerdas aos liberais de direita, acreditamos que dar as costas à democracia não é alternativa para superarmos nosso momento de crise.A questão é com quem e como falamos. No universo de seus eleitores, há aqueles sinceramente atraídos pela truculência, o autoritarismo, o racismo, o machismo e a homofobia. Trata-se daquela parcela do eleitorado que vota em Bolsonaro não apesar dos elogios que fez e faz a um torturador, estuprador e assassino como Ustra, ou pelo seu profundo desprezo pelas liberdades individuais e os direitos humanos, mas justamente por causa disso.
Não é difícil identificá-los: são aqueles comentaristas de portais e blogs que conseguem falar de Venezuela e Lula em um texto sobre Portugal, ou que defendem, sem corar, que elevadores de serviço existem para transportar animais de estimação. Com esses, não há diálogo possível. Mas há uma parcela disposta a acreditar nas suas falsas soluções, que votam nele por alguma motivação pragmática. E há os indecisos, mais de 50%, segundo as últimas pesquisas. É com eles que precisamos falar sobre Bolsonaro.
Com parcos oito segundos no programa eleitoral, é quase certo que uma das suas estratégias será continuar a apostar nas redes sociais. Como a linguagem do Facebook e dos grupos de Whatsapp facilita a disseminação de fake news, da desinformação e de lugares comuns, onde o candidato transita com tranquilidade, e dificulta aprofundar o debate, parece pouco proveitoso tentar trazer eleitores e indecisos para nossas trincheiras na guerra cultural. É tentador, mas é uma batalha que estamos fadados a perder em um ambiente polarizado como é o eleitoral.
Não se trata de deixar de lado temas ligados aos direitos humanos, caros a qualquer democracia que ambicione ser tratada como tal. Mas se a intenção é enfraquecer a candidatura de Bolsonaro, alguns desses temas passam muitas vezes ao largo das preocupações de quem convive diariamente com o fantasma do desemprego e a insegurança, por exemplo, e quer ouvir de seu candidato o que ele tem a oferecer como alternativa para seus problemas cotidianos. É um caminho mostrar que Bolsonaro não tem absolutamente nada a dizer ou propor sobre esses assuntos, e seu desempenho no Roda Viva fornece bons elementos para isso.
Um pouco do possível - Em quase 30 anos como deputado, Bolsonaro não apresentou um único projeto para a segurança pública, área em que afirma ser especialista. Perguntado sobre o aumento nos índices de mortalidade infantil por diarreia, doença diretamente relacionada à pobreza e a condições sanitárias precárias, entre outros absurdos responsabilizou diretamente a mãe, “que não dá bola para sua saúde bucal ou não faz os exames do seu sistema urinário com frequência”. Há outros exemplos, no mesmo Roda Viva.
Bolsonaro defendeu a redução da porcentagem das cotas, uma proposta baseada unicamente no seu racismo. Ele ignora, entre outras coisas e desconsiderando a sua matemática tortuosa, que as elas são antes de tudo sociais, ou seja, 50% das vagas nas instituições públicas são para candidatos egressos exclusivamente do ensino público, e é dentro dessa porcentagem que são alocadas as chamadas “cotas raciais”. Em outras palavras, ele mente.
E mente também sobre negros “tirarem as vagas” de candidatos brancos: desde que a política de cotas foi instituída, o número de ingressantes nas universidades federais passou de 100 para 230 mil. Ou seja, a política de cotas acompanhou um crescimento no acesso, democratizando, e não cerceando o ingresso no ensino superior. Além disso, estudos mostram que o desempenho de discentes cotistas, brancos e negros, uma vez na universidade acompanha o de não cotistas, confirmando que, no caso brasileiro, as políticas afirmativas têm produzido resultados positivos.
Ainda sobre educação, defendeu maiores investimentos no ensino fundamental, quando nossos maiores problemas estão no ensino infantil (o número de creches é insuficiente para atender as famílias de trabalhadoras e trabalhadores que dependem delas) e no ensino médio – no caso desse último, um problema agravado com uma reforma irresponsável e inviável aprovada pelo governo Temer. As propostas para diminuir o desemprego ou alavancar a economia talvez agradem os donos do agronegócio, os industriais e os banqueiros, mas nada dizem para quem depende de salário e carteira assinada.
Mais? Bolsonaro diz que é honesto e vai combater a corrupção, mas de partido em partido, esteve na base aliada de todos os governos desde FHC, incluindo Lula e Dilma, e só não firmou aliança com o Centrão, composto pela fina nata do fisiologismo brasileiro, porque o PSDB de Alckmin tem mais valor no mercado de troca que o PSL de Bolsonaro. Ele não é um outsider, como tenta fazer crer. Aliás: se ele não aprova seus projetos porque os colegas parlamentares o boicotam e não votam propostas que sabem ser suas, como pretende negociar com o Congresso se eleito presidente?
Meu ponto é simples: Bolsonaro deixou de ser apenas uma caricatura à medida que sua candidatura tornou-se eleitoralmente viável. Por isso, desconstruí-la se tornou uma tarefa democrática fundamental. Mas para isso, é preciso mostrar suas fragilidades programáticas (passe o exagero), porque tem se revelado cada vez menos produtivo apostar em um discurso “humanista” contra um candidato que se notabilizou, justamente, por desdenhar de qualquer “humanismo”. A saída, se há, é mostrar que, além do ódio, ele não tem nada a oferecer ao país.