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quarta-feira, 21 de março de 2018

A morte e as mortes de Marielle Franco


“As marcas dos homicídios não estão presentes apenas nas pesquisas, nos números, nos indicadores. Elas estão presentes sobretudo no peito de cada mãe de morador de favela ou mãe de policial que tenha perdido a vida. Nenhuma desculpa pública, seja governamental ou não, oficial ou não, é capaz de acalentar as mães que perderam seus filhos. (…) Não há como hierarquizar a dor, ou acreditar que apenas será doído para as mães de jovens favelados. O Estado bélico e militarizado é responsável pela dor que paira também nas 16 famílias dos policiais mortos desde o início das UPPs”.

***

Desde julho de 2014, quando o líder quilombola Paulo Sérgio Santos foi morto a tiros no acampamento Nelson Mandela, em Helvécia, no interior da Bahia, outras 22 lideranças políticas, militantes de diferentes movimentos sociais, foram assassinadas. No dia 15 de março último, o assassinato de Marielle Franco, vereadora pelo PSOL carioca, aumentou essa estatística perversa.

A morte de Marielle, 24a vítima de execuções políticas em menos de quatro anos, teve ampla repercussão dentro e fora do Brasil, em parte pelo contexto em que ocorreu, apenas um mês depois da intervenção federal no Rio de Janeiro. Uma das facetas dessa repercussão evidenciou, uma vez mais, os imensos reservatórios de ódio – a expressão é do historiador germano-americano Peter Gay – capazes de banalizar e justificar, de maneiras as mais torpes, uma tragédia que ceifou, violentamente, duas vidas – junto com Marielle, morreu também Anderson Pedro Gomes, seu motorista.

Das vozes que emergiram do esgoto, algumas se sobressaíram: o líder do MBL gaúcho, Felipe Pedri; o deputado federal Alberto Fraga (DEM); a desembargadora carioca Marília de Castro Neves; o também deputado e pastor Marco Feliciano. Centenas de outras se incumbiram da tarefa abjeta de difamar e caluniar Marielle Franco. Para os milicianos virtuais, a morte física perpetrada pela milícia armada – quatro tiros na cabeça – não foi suficiente. Era preciso matá-la de novo, ainda que as razões dessa segunda milícia, a das redes, não sejam exatamente as mesmas daquela, a armada.

Para esta, a vereadora e militante do PSOL era, principalmente, um incômodo político. Sua atuação, primeiro na Comissão de Direitos Humanos da Alerj, ainda como assessora do deputado Marcelo Freixo e, desde o ano passado, como parlamentar, foi pautada na defesa intransigente dos indivíduos e comunidades fragilizadas pela constante violência a que são sujeitadas.

Isso significava, entre outras coisas, denunciar a corrupção e a violência policiais e a ação das milícias, expondo suas digitais nos assassinatos e chacinas que se tornaram um lugar comum nas favelas cariocas. Significava também escancarar a participação de parte da própria força policial nas milícias, mostrando o quanto, em certa medida, uma era extensão da outra, e que a violência não é “uma exceção”. Discurso comum entre oficiais que precisam justificar a truculência desmedida de seus subordinados e as deles próprios, ela é um mal que afeta estruturalmente a corporação, de alto a baixo, resultado de nossa concepção equivocada e distorcida de polícia.

Nas redes sociais, os milicianos virtuais fizeram o que sabem fazer melhor: mentiram, distorceram, difamaram, caluniaram. A segunda morte de Marielle, a tentativa de assassiná-la, por assim dizer, simbolicamente, foi principalmente um empreendimento movido pelo ódio ao outro, sintetizado na figura de uma mulher negra, lésbica, nascida e criada na periferia, militante de esquerda e dos direitos humanos.

Contra o “Estado penal” – Mas foram principalmente o racismo e o preconceito de classe os afetos que moveram a verborragia virtual. Para as milícias que atuam nas redes, não há outra explicação possível à ascensão social e política de uma mulher negra e da periferia – Marielle nasceu e foi criada na Maré –, que não sua associação ao crime – o líder do MBL gaúcho afirmou, textualmente, que “por óbvio a vereadora tinha relações com o CV e outros. Isso é básico”.

O duplo preconceito é reforçado na afirmação, reproduzida inúmeras vezes, de que Marielle “defendia bandidos” por conta de sua militância nas comunidades periféricas. Não há retórica que disfarce o óbvio: para os seus executores virtuais, todo morador de favela é um criminoso, principalmente se negro, e estar ao lado deles na defesa de seus direitos mais básicos – como o direito à vida – é entrincheirar-se ao lado de bandidos.

Marielle Franco respondeu aos que fomentam o ódio, o preconceito de classe e o racismo quatro anos antes de ser assassinada. Em sua dissertação de mestrado em Administração Pública, “UPP – a redução da favela a três letras”, defendida na Universidade Federal Fluminense em 2014, cuja passagem serve de epígrafe a esse texto, ela identifica na implantação das UPPs, fruto da parceria dos governos petistas com os governadores Sérgio Cabral e Pezão, a continuidade do que estudiosos do tema chamam de “Estado penal”.

Os resultados nefastos desse modelo de segurança pública, que traduz exemplarmente a relação do Estado com as populações subalternizadas, não vitimiza apenas civis. Na dissertação, mas também em intervenções públicas, Marielle pontuava que a violência atingia igualmente policiais, e lembrava que o efetivo militar que atuava nos morros era composto, em sua maioria, por homens negros e pobres.

De um modo ou de outro, as vítimas preferenciais do “Estado penal” brasileiro têm a mesma cor de pele, a mesma etnia e as mesmas origens sociais e geográficas, daí a necessidade de organizar, nas palavras de um amigo muito caro, “as rebeldias de pessoas exploradas e oprimidas”, tarefa a qual ela se dedicou com afinco.

Sim, Marielle Franco foi assassinada por ser mulher, negra, lésbica, nascida e criada na periferia e militante de esquerda e dos direitos humanos; e pelos mesmos motivos, milícias virtuais a executaram nas redes. Mas suas mortes foram impulsionadas também pelo que temiam, nela, seus muitos executores: a irrupção do novo, a militância em defesa da dignidade e da vida, e contra as muitas formas de violência que, desde o Estado, precarizam principalmente os corpos de homens e mulheres pobres e negros. Nossa melhor resposta, talvez a única possível, para honrar sua memória, é não esmorecer frente à barbárie.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O deputado, a Rocinha e as políticas do esquecimento


Afinal, Jair Bolsonaro realmente sugeriu metralhar a Rocinha como solução para o tráfico e a violência na comunidade carioca? A nota, publicada pelo jornalista Lauro Jardim em sua coluna de domingo (11), no jornal “O Globo”, repercutiu enormemente em sites, especialmente os de esquerda, e nas redes sociais, além de provocar a ira do próprio deputado e presidenciável e de seus seguidores, os chamados “bolsominions”.

Apesar da repercussão, é bastante provável que a frase não tenha sido dita, ao menos não como informou Lauro Jardim. Claro que Bolsonaro tratou de desmentir a nota, mas o desmentido de um fascista tem validade zero como prova. Por outro lado, a favor dele, há a ausência de qualquer registro documental, o que em tempos de internet e vídeos comprometedores sacados de celulares, é no mínimo estranho, especialmente em um evento com algumas centenas de testemunhas.

Além disso, nenhum outro veículo ou profissional deu a tal notícia, e o também jornalista Augusto Nunes, convidado a conduzir um bate-papo com Bolsonaro, disse textualmente que se tratou de um equívoco. De acordo com Nunes, seu colega foi “induzido ao erro”, possivelmente informado, e mal, por algum dos presentes. A própria coluna de Lauro Jardim, em sua versão on line, publicou uma espécie de “erramos”, aparentemente acatando a explicação do deputado.

Em seu artigo de terça (13), meu colega de blog José António Baço abordou o assunto sob o prisma de sua repercussão na mídia. Em síntese, defendeu que as recentes notícias envolvendo Bolsonaro, desde o aumento suspeito de seu patrimônio pessoal e de seus filhos (essas, absolutamente verdadeiras), até a nota n’“O Globo”, são parte de uma estratégia para se livrar do incômodo candidato. Gostaria de abordar o mesmo acontecimento sob outra perspectiva.

Tortura, estupro e ódio como paradigmas – A mim não importa que Bolsonaro não tenha dito tamanho impropério, porque há registros suficientes da sua capacidade e disposição em produzir e disseminar o ódio e a barbárie. Há, por exemplo, sua apologia ao estupro, e suas muitas homenagens à memória do Coronel Brilhante Ustra, conhecido por torturar e estuprar militantes mulheres – sim, parece que Bolsonaro tem uma fixação pelo assunto.

Há ainda uma coleção de declarações homofóbicas, racistas e misóginas (além da apologia ao estupro), e sua completa miopia no que se refere a temas como a violência, ao defender o recrudescimento de políticas públicas que há décadas são, justamente, parte instituinte do problema, não sua solução. Uma visão estreita de mundo, obviamente, não poderia resultar em outra coisa além de um candidato cujas “propostas” (passe o exagero) só são comparáveis às nações governadas pelo peso do autoritarismo militar – como a Venezuela ou a Coreia do Norte –, ou do fundamentalismo religioso, como em alguns países do Oriente Médio.

Mas se votar em Bolsonaro é desistir de um país moderno, seja econômica ou politicamente, o que explica que de uma excrescência fascista ele tenha passado a segundo lugar na intenção de votos para presidente? A explicação de que se trata de um outsider, embora coerente, me parece insuficiente. E embora seja verdade que, apesar de ter pertencido à base aliada de todos os governos do PT, seu crescimento se deva em parte à sua capacidade de surfar na onde do anti-petismo mais hidrófobo, tampouco considero tal argumento satisfatório.

Como uma força centrípeta, ele canaliza, dá forma e sentido a um conjunto de afetos dispersos e difusos, tais como o ressentimento, a indiferença, o medo e o ódio, produzidos em um ambiente político pouco afeito a coisas como democracia, liberdades individuais ou direitos humanos. Há uma parcela expressiva de pessoas que o apoiam justamente por seus elogios à ditadura e sua defesa da tortura, por exemplo, e não apesar disso. Nesse sentido, entender o seu significado é compreender o processo de construção de nossa memória recente.

O esquecimento e a banalização da violência – No último livro publicado em vida, “A memória, a história, o esquecimento”, o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões positivas do olvido, os efeitos potencialmente danosos do esquecimento como gesto forçado de apagamento da lembrança, que denominou de “memória impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que, como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério para associar aquela ao perdão.

O equívoco não é apenas semântico – anistia não significa necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento –, mas principalmente político. Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas de esquecimento daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo institucionalmente, continuam a ameaça-la.

Há diferentes maneiras de interpretar o alcance dessa limitação. Entre outras coisas, o esquecimento produz a naturalização e a banalização da violência institucional – aquela praticada pelo Estado e os governos –,  que admitida como um dos componentes de nossa vida social, não é por isso considerada desumana nem, tampouco, uma anomalia, uma aberração, um desvio: no Brasil, parafraseando Giorgio Agamben, a violência institucional há tempos deixou de ser exceção para se tornar a regra.

A truculência de Bolsonaro é um sintoma desse estado de coisas. Ele mobiliza e organiza um circuito de afetos que tem como centro o esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana para com as violências presentes, usando a democracia não para aprofundá-la, mas para conspirar contra ela e fragilizá-la. Racista, misógino, homofóbico, clara e abertamente fascista, Bolsonaro não é apenas a expressão de nossos impasses políticos, mas um perigo que ameaça nossa ainda débil democracia. Se nunca fomos modernos, com ele estamos condenados a nunca ser.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Essa nossa obtusa e anônima cordialidade


POR CLÓVIS GRUNER

No dia 19 de setembro de 2014, Hiago Augusto Jatobá de Camargo, de 21 anos, cabo eleitoral da campanha de Dilma Rousseff, do PT, foi esfaqueado durante uma briga na praça da Ucrânia, em um bairro nobre de Curitiba, durante uma discussão com outros cabos eleitorais e um morador local que chutara uma das placas da candidata. Embora a polícia tenha descartado, rápido demais, a hipótese de crime com motivação política, a morte de Hiago foi um dos primeiros e mais trágicos indícios de que o acirramento não era algo restrito ao ambiente eleitoral. 

O clima de hostilidade já afetou gente à direita e à esquerda – de Janaína Paschoal a, mais recentemente, Letícia Sabatella –, em graus variados de violência. Uma de suas faces mais visíveis não é necessariamente nova, embora esteja a ganhar contornos cada vez mais sombrios. Falo de uma moral e uma conduta conservadoras (porque, a rigor, não se pode falar de um “pensamento conservador”), franca e abertamente reacionárias, responsáveis diretas pela proliferação da ignorância, o empobrecimento do debate e do ambiente políticos, a disseminação da truculência e a legitimação da intolerância como práticas cotidianas.

É interessante (e não deixa de ser também um pouco incômodo) que depois de oito décadas o “homem cordial”, o tipo ideal weberiano forjado por Sérgio Buarque de Holanda em seu “Raízes do Brasil”, ainda nos sirva como uma categoria de análise capaz de iluminar aspectos do comportamento político do brasileiro médio de hoje. Em linhas gerais, a cordialidade, segundo Sérgio Buarque, sintetiza nossa distância e indiferença em relação aos ritos que caracterizam a vida pública, mantendo a supremacia dos valores privados e domésticos. 

No Brasil, essa separação rígida entre as esferas pública e privada constitui-se na contramão dos valores liberais que estão no cerne das democracias modernas. Historicamente, foi a “vida doméstica” quem forneceu o modelo no interior do qual foram forjadas nossas composições sociais. E não há nada de positivo nisso: fundada nos laços e arranjos familiares, a cordialidade se estendeu até o espaço público, precarizando-o ao subordiná-lo aos interesses privados e familiares. 

O custo ético e político dessa subordinação é altíssimo. Porque no mundo moderno a palavra “público” não designa apenas “uma região da vida social localizada em separado do âmbito da família e dos amigos íntimos”, de acordo com o sociólogo americano Richard Sennett. Mas também, e principalmente, a possibilidade de conviver com uma diversidade significativa de pessoas pertencentes a classes, gêneros, etnias, religiões, hábitos, etc..., distintos dos nossos e daqueles que nos são próximos e íntimos. Ao abolirmos a distância entre as esferas privada e pública, fragilizamos nossa capacidade de conviver com o outro e passamos a tratar os assuntos e problemas públicos como se fossem, nas palavras de Sennett, “questões de personalidade”. 

“Em verdade, temos medo” – O resultado está aí, nas ruas, redes socais e caixas de comentários de blogs e sites de notícias. Em debates, tornou-se corrente o uso de termos como “idiota”, que eximem quem o utiliza de argumentar com o mínimo de razoabilidade. Se o assunto são os direitos humanos e das chamadas minorias – negros, gays e mulheres, principalmente –, os parâmetros para o diálogo, invariavelmente, reafirmam a incapacidade de compreender e conviver com as razões e motivações do outro em uma arena comum de coexistência, com a prevalência do “eu não gosto” ou o “eu não concordo” como arremedos de argumentação. 

Fala-se na precariedade das penitenciárias, na violência urbana e policial ou contra a redução da maioridade penal, e não faltará quem sugira “levar para casa” criminosos maiores ou menores de idade, porque não ocorre a quem o sugere que a segurança é um problema público, cujas soluções não são domésticas nem familiares. Gente que mal sabe localizar a Venezuela no mapa se arvora uma autoridade no país e em seus problemas. São os mesmos que falam em “meritocracia” e “Estado mínimo” quando o que está em jogo é assegurar direitos básicos e elementares à população mais fragilizada, mas não hesitam em apoiar o Estado no uso do aparato militar e repressivo contra movimentos sociais, por exemplo.

Nas páginas iniciais de “Kaputt”, o misto de reportagem e ficção escrito pelo italiano Curzio Malaparte nos anos de 1940 (e adaptado, no Brasil, para uma graphic novel simplesmente maravilhosa pelo quadrinista Guazzelli), o narrador apresenta os alemães como indivíduos amedrontados, que matavam e destruíam por medo: “Os alemães têm medo. (...) têm medo de tudo que é vivo, de tudo que é vivo fora deles. Medo de tudo que é diferente. (...) Têm medo sobretudo dos fracos, dos indefesos, dos enfermos, dos velhos, das crianças...”. 

Foi a gestão desse medo que produziu indivíduos precarizados e atomizados, dispostos a legitimar a barbárie nazista, ainda que pela indiferença. E pelo menos desde a análise do julgamento de Eichmann pela filósofa alemã Hannah Arendt, tornou-se mais ou menos comum a afirmação de que os regimes totalitários e autoritários – além do próprio nazismo, o stalinismo e outros tantos – sobreviveram não apenas pelo poder da força, mas pela sua capacidade de mobilizar afetos e lealdades do chamado “cidadão comum”, honesto, trabalhador e de bem. 

E ainda que se possa falar de uma “cultura do medo”, não devemos perder de vista que se trata, uma vez mais, de organizar o espaço público a partir de afetos privados. Há diferentes motivos que explicam essa permanência, atualizada, de nossa cordialidade, e a sistemática política do esquecimento que vigora desde o processo de abertura, no final dos anos de 1970, é um deles. O homem cordial brasileiro do século XXI, como o alemão dos anos de 1940, tem medo. E sabemos muito bem que o medo pode gestar e parir bem mais que a estupidez verborrágica dos comentários anônimos.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Plano de Educação: um choque ideológico.

POR PEDRO LEAL

Enquanto gênero é mantido fora do plano, uma realidade
cruel é exposta por movimentos sociais. Foto por Jéssica Michels
Aconteceu: a revelia dos movimentos sociais, que julgavam o plano incompleto e que não foram ouvidos, o Plano Municipal de Educação foi aprovado pela câmara, com apenas um voto contrário. Enquanto alguns podem ver a aprovação do plano como algo positivo e vantajoso para a cidade (afinal, é um plano de educação, e quem poderia ser contra um plano de educação, não é?), a aprovação em primeira instância é um problema significativo.

Em uma cidade com 17% de negros, e em um país que acumula casos diários de machismo, homofobia e transfobia, as minorias foram deixadas de lado. Embora o estado brasileiro seja nominalmente laico, a intromissão religiosa no poder público é cada vez mais comum. E tudo isso se faz manifesto em um plano de educação que, a revelia de recomendações da ONU e da Unesco, a revelia de legislação federal, e a revelia do princípio de laicidade, deixa de fora discussões importantes sobre raça, gênero, religião e orientação sexual.

Como notou em seu pronunciamento durante a sessão a outrora colunista do Chuva Ácida Emmanuelle Carvalho, estamos em uma cidade que ignora o ensino de história e cultura africana, determinado em lei desde 2003. Do contrário: professores tem sido impedidos de lecionar a respeito das religiões de matriz africana, ante a pressão por parte de conservadores. Coisa que não ocorre apenas em Joinville. Alunos de religiões africanas estão entre as principais vítimas de discriminação religiosa no país - e a escola é onde elas se sentem mais discriminadas.

Da mesma maneira, há um forte movimento organizado para impedir a inclusão de discussões sobre discriminação sexual e identidade de gênero nas escolas, assim como para combater a discriminação religiosa. Isso porque ao buscar a igualdade de direitos e a tolerância, as escolas estariam “passando por cima de valores familiares” e “anulando a identidade da criança”. Da mesma maneira, o reconhecimento da identidade de gênero ou da orientação sexual do jovem é vista por estes como "imposição". Sua negação, "seguir a natureza". Um paradoxo onde respeitar os desejos do indivíduo é impor, e negar sua essência é "dar liberdade". Lembrando que as tentativas de "endireitar" jovens LGBT são violentas, agressivas e muitas vezes terminam por condená-los a abandonar os estudos e o convívio familiar.

Grupos conservadores veem isso como imposição de “ideologia de gênero” e “intolerância religiosa” (sim, combater a discriminação de não cristãos é intolerância religiosas para alguns). como se a presunção tradicional quanto aos papéis de gênero e a heteronormatividade imposta não fossem também ideológicos. E como se fosse um direito impor seus preconceitos e suas opiniões sobre as crianças - argumento que nos EUA já foi usado para ditar o que pode ser ensinado em aulas de ciências e história, incluindo para tentar apagar menções ao período escravocrata.

Não há tal coisa como um discurso isento de ideologia. Como já bem dizia Bakhtin, todo signo é ideológico, seu significado dado pelo contexto e por construções sociais. E por extensão, toda linguagem o é. Dessa maneira, a ideia de um discurso, um uso deliberado da linguagem, que seja isenta de preconcepções ideológicas é um completo oximoro, tal qual “água seca” ou “gelo quente”.

A aprovação do plano de educação como está, o asco contra “ideologia de gênero” e a resistência contra o reconhecimento da laicidade estatal são provas fortes do debate ideológico que nos cerca: um embate entre um status quo vigente que se julga isento de ideologias e se vê ameaçado pelas tentativas de mudar o quadro social. E que se julga “igualitário” enquanto excluí aqueles que não se encaixam dentro de sua visão de mundo. Visão de mundo que teimosamente se diz "neutra" e "natural", isenta de preconceitos. Que se enxerga como a pura verdade, sem "corrupções'.

Vários dos tópicos que foram excluídos do plano quando este foi apresentado em junho foram justificados como formas de "evitar a intolerância religiosa contra cristãos". Pois bem: se permitirmos a discriminação para evitar a "intolerância pela discordância" (que me leva a pergunta em como reconhecer pessoas trans- por seu gênero ou reconhecer os direitos de outras crenças, por exemplo, prejudica religiosos), não estamos combatendo um preconceito. Estamos colocando este um grupo acima de todos. E isso é terrível para a democracia e para o convívio social.

Que esses problemas sejam corrigidos pela Comissão de Educação -  e que esta ouça os movimentos sociais ignorados na elaboração do plano. Eu me aprofundaria mais nos problemas em específico, mas acho que essa é uma tarefa para os membros dos movimentos sociais envolvidos - mais capacitados do que eu para falar dessas questões.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Alguma mulher merece ser estuprada?

POR CLÓVIS GRUNER

De acordo com o deputado federal Jair Bolsonaro, do PP carioca, sim. Em discurso na tribuna da Câmara dos Deputados terça-feira, o parlamentar – conhecido pelo que os meios de comunicação chamam, eufemisticamente, de “posições polêmicas” – afirmou textualmente, dirigindo-se à deputada petista Maria do Rosário: “Só não te estupro porque você não merece”. Não foi a primeira vez: em 2003, durante debate na Rede TV!, Bolsonaro afirmou exatamente a mesma coisa, também para Maria do Rosário. Em entrevista concedida ontem ao jornal Zero Hora, ele voltou ao assunto: “Ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria”. E completa: “Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”.

A alguns parecerá positivo saber que o Parlamento brasileiro não abriga um estuprador, apenas um apologista do estupro. Mas há coisas importantes implicadas nas falas de Bolsonaro, na tribuna e na entrevista ao ZH, e não é preciso muito esforço para identificá-las. Primeiro, e o mais óbvio: se Bolsonaro considera que Maria do Rosário não é “digna” de ser estuprada porque é feia, a dedução óbvia é de que, na sua mentalidade machista, há aquelas mulheres que merecem sê-lo e que ele pessoalmente, se fosse estuprador, estupraria. Ou seja, as mulheres bonitas – ou aquelas consideradas bonitas segundo a perspectiva do nada nobre deputado –, merecem ser estupradas; as feias, não.

Bolsonaro concorda, embora por caminhos distintos, com outro apologista do estupro, o humorista Rafinha Bastos, para quem mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Ou com os publicitários membros do Conar que, no ano passado, decidiram manter no ar a campanha da cerveja Nova Schin sob a alegação de ser “baseada em uma situação absurda”. Afinal, na peça publicitária, o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando visível horror e medo, é invisível. Segundo alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido. Para Bolsonaro, se ela for bonita, o estupro é não apenas válido como merecido.

CULTURA DO ESTUPRO – Bolsonaro é truculento, mas não é um ignorante. Ou seja, ele não ignora que os números da violência de gênero no Brasil são alarmantes e agravam a sensação de que vivemos em uma cultura que tem feito pouco caso das agressões contra mulheres, não raro praticadas nos ambientes domésticos, por conhecidos e mesmo familiares (pais, irmãos, maridos, amigos, vizinhos, etc...). Segundo o Mapa da Violência de 2012, as taxas de homicídio de mulheres foram de quase 4.500 em 2010 (4,6 homicídios por 100 mil habitantes). No caso do estupro, foram mais de 51 mil casos registrados somente em 2012, uma taxa de 26,3 por 100 mil habitantes, segundo o Anuário de Segurança de 2013. Como a qualidade dos registros varia entre os estados, e muitos casos sequer chegam a ser denunciados, é bastante provável que os números, já altos, sejam ainda maiores: sabe-se que muitas vezes as vítimas, por vergonha ou porque ameaçadas, optam pelo silêncio.

O fato de Jair Bolsonaro conhecer estes números e menosprezá-los torna ainda mais abjeta sua declaração, que não teve no Congresso a repercussão que merece. Os dois maiores partidos de oposição – DEM e PSDB – silenciaram. O PSC manifestou apoio a Bolsonaro. Na base aliada, fora alguns petistas solidários à Maria do Rosário, a reação foi acanhada: o PP não se manifestou e o PMDB repudiou apenas timidamente o episódio. Coube aos partidos de esquerda, especialmente os chamados “nanicos”, junto com parte da bancada petista, a tarefa de apresentar representação contra o deputado, pedindo sua cassação – que provavelmente não ocorrerá. Do Palácio do Planalto – pelo menos até o momento em que escrevo essas linhas – nenhuma manifestação, o que não me surpreende: o silêncio de agora apenas reverbera a conivência silenciosa com que, em 2012, o governo petista tratou a eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso.

Fora dos corredores e gabinetes parlamentares e palacianos, a declaração de Bolsonaro encontrou o respaldo esperado para um deputado eleito com mais de 400 mil votos – o mais votado do Rio de Janeiro. E que se tornou, desde há algum tempo, o principal porta voz de uma direita conservadora que fez e faz do ódio, do medo e do ressentimento os principais afetos da política. Eu sei que à direita há aqueles, e não são poucos, que repudiam os discursos e as práticas do deputado progressista e que não se veem representados pela sua atuação parlamentar. Mas sei também que, lamentavelmente, Bolsonaro representa, incorpora e multiplica, contando para isso com um suporte midiático privilegiado, o que há de pior e mais perigoso em nossa vida pública, os grupos conservadores, fanatizados em sua repulsa por tudo e todos que são diferentes da sua obtusa concepção de normalidade.

Cada gesto seu, cada ofensa dirigida contra uma mulher, um gay, um negro ou um militante assassinado ou torturado pela ditadura, fragiliza nossa democracia e nosso senso de civilidade. Ao escarnecer, como o faz habitualmente, de nossas ainda frágeis conquistas democráticas, Bolsonaro ajuda a despertar o sentimento revanchista daqueles que temem a liberdade e negam a dignidade humana como um princípio fundamental a nortear nossa experiência comum. Ele não está sozinho nem prega no deserto: há uma pequena multidão, e não apenas de eleitores seus, que o aplaude, justifica e legitima não importa o que ele diga ou faça. Talvez não queira, certamente não admite, mas esta pequena multidão é tão responsável quanto ele. Mas o pior é que, provavelmente, ela não se importa.

PS.: Uma petição online, organizada no site Avaaz, pede a cassação do mandato do deputado Jair Bolsonaro. Se você quiser assiná-la, clique aqui.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Menos Rachel, mais jornalismo

POR FABIANA A. VIEIRA


Não sei o que me deixou mais inquieta após ver o vídeo da Rachel Sheherazade que circulou como água (ou mais, literalmente) na internet sobre o rapaz acorrentado no Rio de Janeiro. Se foi o efeito cascata que isso gerou na rede, com comentários mais absurdos do que o da própria apresentadora, ou se foi o posicionamento do grupo SBT ao se isentar do fato, alegando que não irá responder pelo conteúdo, já que foi uma simples "opinião" da apresentadora. (Só esqueceu de reconhecer que a apresentadora é a âncora do principal telejornal da emissora.)

O comentário de Rachel foi infeliz, preconceituoso e oportunista. Infeliz porque Rachel posa de porta-voz de uma parcela da sociedade que defende fazer justiça com as próprias mãos e se diz cristã. Eu disse, uma parcela. Pois a outra parcela ficou indignada tanto quanto eu fiquei. Preconceituosa porque Rachel usa dois pesos e duas medidas, dependendo da situação (sua opinião sobre um delinquente branco e rico é diferente sobre um delinquente preto e pobre) como bem mostra seus comentários sobre Justin Bieber e o "marginalzinho" pobre do Rio de Janeiro, no vídeo logo abaixo. Oportunista porque pretende ganhar "ibope" com um assunto tão polêmico. Até aí tudo bem, emissoras de TV vivem do "ibope", mas há de separar "isso" de jornalismo. Jornalismo mesmo não emite opinião, só pra começar a conversa. Imagine você, se cada jornalista quiser dar sua opinião sobre uma matéria? Pois é, melhor nem imaginar.

Falando em jornalismo de verdade, eu aprovo a nota de repúdio emitida pelo Sindicato dos jornalistas profissionais do Rio de Janeiro e da Comissão de Ética da mesma entidade contra os comentários de Rachel. Nela os profissionais se manifestaram radicalmente contra tais declarações, as quais consideram violação não só dos direitos humanos, mas do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de fazer apologia à violência.

Eis os pontos do Código de Ética citados pelo sindicato:


Art. 6º É dever do jornalista:

I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;

XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias;

XIV – combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza.

Art. 7º O jornalista não pode:

V – usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime;

No mesmo entendimento, o deputado federal Ivan Valente, do Partido Socialismo e Liberdade, divulgou que o PSol irá encaminhar ao Ministério Público uma representação contra o SBT e a jornalista Sheherazade por apologia à tortura e ao “justiçamento”.

Eu espero que esses exemplos sirvam para avaliarmos esse e outros conteúdos que aparecem disfarçados de jornalismo na TV, nas rádios e nas redes. É importante não confundir "liberdade de expressão" com "vontade de opressão". E para finalizar, reforço que não estou aqui defendendo bandido, estou apenas defendendo o jornalismo - e isso já tem sido uma tarefa difícil nos dias de hoje.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

É isto um homem?



POR CLÓVIS GRUNER

A pergunta do italiano Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, acerca dos campos de concentração nazistas e que dá título a este texto, é válida também para outras experiências concentracionárias, dos gulags soviéticos às prisões americanas de Abu Grahib e Guantánamo; do Carandiru ao Presídio de Joinville ou um hospício em Barbacena: ainda é possível chamar-se homem alguém de quem se usurpou todos os traços de humanidade? Instituições asilares são, por sua natureza, não apenas espaços de sequestro e exclusão, mas de desumanização.

Referindo-se aos que passaram pelos campos nazistas, o filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que a condição paradoxal em que viviam, “privados de quase todos os direitos e expectativas que costumamos atribuir à existência humana e, todavia, biologicamente ainda vivos”, os assemelhava à condição de homo sacer – o “homem sacro” – do antigo direito romano, cuja “vida nua”, desprovida de valor e “indigna de ser vivida”, pode por isto ser eliminada “sem que se cometa homicídio”.

Acredito que Agamben não está a se referir apenas a eliminação física – a morte no sentido estrito –, mas também a outras formas de extinção contidas no próprio ato do internamento. Uma vez privado de sua liberdade e submetido à tutela contínua, o interno torna-se parte de uma intrincada e totalitária rede de poderes; ele passa a ser um “homem sem mundo”, cuja existência se confunde com a da instituição a qual forçosamente pertence. Vive, na feliz definição do sociólogo americano Gresham Sykes, em uma “sociedade dos cativos”, onde prevalecem outros laços de sociabilidade e valores morais. São territórios heterotópicos, “sociedades dentro de outra sociedade”, relativamente autônomos em seu funcionamento e, mesmo que às vezes próximas de nós geograficamente, distantes em suas estruturas e relações de poder. Frequentemente o processo de desumanização – jurídica, simbólica, etc... – é acompanhado da degradação física pela submissão aos mais infames suplícios corporais, a tortura entre eles.

No Brasil, historicamente, a tortura tornou-se prática banal: são indistintamente sujeitados à conjugação de dor física e humilhação moral que a caracteriza, velhos internados em asilos, doentes mentais em hospícios, prisioneiros maiores e menores de idade. Autorizados pela indiferença da maioria, torturadores com e sem diploma, anônimos ou não, atravessam em particular a história recente do país, e são o testemunho de que nosso passado autoritário ainda nos pesa como um fardo.

UM PROJETO CIVILIZADOR – No começo de agosto foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff a Lei nº 12.847, que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT). Fruto do Projeto de Lei 2422/2011, ela prevê a criação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Por meio dela, os membros do Comitê podem visitar, sem aviso prévio – detalhe fundamental –, presídios, penitenciárias, delegacias, casas de custódia, instituições socioeducativas, hospitais psiquiátricos e asilos, a fim de apurar violações dos direitos humanos, principalmente a prática da tortura. Se constatadas violações, os diretores terão um prazo determinado para implementar as medidas necessárias para coibi-las.

Como sempre, não há garantias de que a lei produza efeitos práticos, certamente não a curto prazo. Afinal, as vítimas de torturas, especialmente se delinquentes e criminosos, costumam não contar com a solidariedade dos autoproclamados homens e mulheres de bem. Mas ela representa um passo importante em direção a uma política de intolerância para com a violência institucional, algo que vinha se desenhando desde o primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, sancionado pelo presidente FHC em 1996, e reafirmado nas duas edições subsequentes, de 2002 e 2010.

Há razões de sobra para, mais que apenas comemorar, cobrar do governo a efetiva aplicação da lei. Por um lado, principalmente as prisões convivem com os resquícios da ditadura e a resistência às políticas de Direitos Humanos no interior de seus sólidos muros. Há um incômodo e reincidente descompasso entre as instituições prisionais – e também as policiais – e a democratização, fazendo destas imensos reservatórios da arbitrariedade e da violência cultivadas durante a ditadura civil militar. É como se o gradual desmonte do aparato repressivo não tivesse alcançado o interior das penitenciárias, presídios, delegacias e quarteis de polícia.

Além disso, o abrandamento da violência institucional não afeta apenas os presos. Não foram poucas as vezes em que ouvi, durante os intervalos dos cursos que ministrei na Escola Penitenciária do Paraná, os agentes penitenciários queixarem-se de que são vítimas de um estigma não muito diferente dos prisioneiros. Eles reconhecem que a convivência diária com a violência, mesmo que às vezes apenas latente, também os marca de maneira indelével. Não são apenas os sentenciados que convivem com e internalizam os valores e experiências da “sociedade dos cativos”. O processo de desumanização, comum à experiência asilar, é democrático e aspira à igualdade.

Combater até abolir a tortura é um dever que temos, e não apenas com nossos internos – sejam eles velhos, doentes, loucos, menores infratores, prisioneiros. Um mundo sem a violência institucional e institucionalizada é desejável. Talvez, com a aprovação do SNPCT, estejamos dando um passo importante para torná-lo também possível.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A solução é mandar para a rua!

POR CLÓVIS GRUNER


Em janeiro deste ano, o então recém-empossado prefeito Udo Döhler visitou o loteamento Juquiá, no bairro Ulysses Guimarães, e prometeu “dar atenção para estas áreas carentes”, e aos moradores a “dignidade de, pelo menos, terem um endereço”. Estamos em julho, e eis a solução: desde o último final de semana, as cerca de 50 famílias – aproximadamente 150 pessoas – que vivem no Juquiá tem até 30 dias para o deixarem. A notícia chegou aos moradores na sexta-feira, quando uma comitiva formada por representantes das secretarias de Habitação e Infraestrutura do Município, do Ministério Publico Estadual, da Fundema e da Polícia Ambiental esteve no loteamento.

Impossível não se perguntar qual destas entidades esteve no local nos últimos quatro anos e quantas vezes, tentando mediar o problema e oferecer aos moradores outras soluções que não a saída de suas casas? Cínicos, secretários e demais autoridades justificam a medida apelando a razões ambientais, como se não fosse um problema ambiental, além de social e humano, mais 50 famílias desabrigadas. Em matéria publicada no Notícias do Dia, o representante da Fundema destacou que as pessoas vivem em uma situação frágil, sugerindo que o despejo não interessa apenas aos órgãos públicos, mas aos próprios moradores. Ninguém duvida das condições precárias em um loteamento irregular, nascido de uma ocupação. Por outro lado, e até onde li, ficou por responder uma questão a meu ver central: por que estes senhores acham que o desespero de não ter ou saber para onde ir, é melhor que morar no Juquiá? Permitam-me refazer a pergunta: se o loteamento está irregular desde 2009, quando os primeiros moradores chegaram, por que foram necessários quatro anos para se encontrar uma solução e por que a solução, quando chegou, veio na forma do despejo?

UM PROBLEMA CRÔNICO – O déficit habitacional não é um problema exclusivamente local, e tampouco é novo. Em algum momento entre 1990 e 91, quando era repórter do jornal A Notícia, lembro de ter coberto uma ação de despejo executada pela Polícia Militar em um terreno ocupado, acho que na Zona Sul. Na ocasião, uma das poucas entidades – se não a única – a prestar assistência às famílias era o Centro de Direitos Humanos, ainda sob a liderança da irmã Maria da Graça Bráz. Juntos, fizemos para o jornal uma pequena série de reportagens sobre o processo de favelização de Joinville, que eu acreditava à época, ser fenômeno novo. Estava enganado.

Anos depois, fuçando nos documentos do Arquivo Histórico para minha pesquisa de mestrado, descobri que se trata de um problema que se arrasta desde mais ou menos os anos de 1960, e que principalmente nas décadas de 1970 e 80 tomou proporções dramáticas e incontroláveis. Hoje, segundo números oficiais da PMJ, o déficit habitacional é de aproximadamente 14 mil moradias, um número alarmante para uma cidade que tem mais ou menos 500 mil habitantes. Por outro lado, de acordo com o Censo de 2010, cerca de 12 mil domicílios da cidade estão vazios, em uma flagrante contradição que revela dimensões mais profundas e complexas da questão habitacional.

Há alguns anos a Frente de Luta pela Moradia Joinville vem não apenas denunciando o processo de espoliação urbana que grassa na cidade, mas reivindicando o desenvolvimento e a implementação de uma política de moradia efetiva, capaz de responder a uma situação que só faz agravar-se. Em outras palavras, defende que o poder público eleja o problema habitacional uma de suas prioridades, e alerta que a contrarresposta ao descaso crônico tem sido, nas últimas décadas, a sistemática ocupação de terras, prática que remonta pelo menos aos anos 70 e é responsável, entre outras coisas, por drásticas mudanças ambientais, tais como a quase total destruição dos mangues.

NECESSIDADES PÚBLICAS, INTERESSES PRIVADOS – Sabe-se, no entanto, que tal política precisa confrontar interesses privados, para quem o bem estar público pouco ou nada interessa. A especulação imobiliária tem sido, historicamente, um dos principais entraves para uma política pública efetiva voltada à democratização da moradia. Se se trata o solo como mercadoria, sujeitando-o às leis do mercado, privatiza-se o direito a morar, tornando principalmente as camadas mais pobres reféns de imobiliárias e grandes concentradores de terras, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Também historicamente, e não apenas em Joinville, o poder público tem sido não apenas conivente, mas um parceiro efetivo dos especuladores: ao investir em terras desocupadas, valorizando-as comercialmente, corrobora com o processo que dificulta ainda mais a quebra dos mecanismos de mercado, o que poderia tornar a habitação de fato um direito a ser usufruído pela maioria.

Uma das moradoras que teve seu destino selado na sexta-feira última, Catarina da Cruz, está há anos inscrita em um programa habitacional da Prefeitura, sem sucesso. Ou seja, passou pelo final de um governo – o do tucano Marco Tebaldi – e pelos quatro anos de seu sucessor – o petista Carlito Merss –, sem solução. Não me surpreende que a tenha encontrado agora, em um governo de direita e que tem à frente um prefeito conhecido pela sua pouca sensibilidade social e pelo excessivo pragmatismo. Empresário de sucesso, homem de resultados, Udo Döhler talvez resolva um drama de quatro anos, o do loteamento Juquiá. E junto com este, resolve também a situação de quem está há ainda mais tempo vivendo um cotidiano marcado pela extrema fragilidade. O problema é que o vislumbre de futuro é ainda mais incerto e precário que as incertezas e as precariedades do presente. 

Em menos de 30 dias, Catarina, suas três filhas e vizinhos não terão para onde ir depois de serem expulsos para fora de suas casas, provavelmente com a truculência característica das autoridades brasileiras quando lidam com miseráveis. Como o prefeito Udo Döhler prometeu em janeiro, eles terão enfim um endereço: a rua ou algum abrigo improvisado. E se é isso que ele entende por "atenção", temo pela sorte dos demais desassistidos da cidade pelos próximos quatro anos.