“As marcas dos homicídios não estão presentes apenas nas pesquisas, nos números, nos indicadores. Elas estão presentes sobretudo no peito de cada mãe de morador de favela ou mãe de policial que tenha perdido a vida. Nenhuma desculpa pública, seja governamental ou não, oficial ou não, é capaz de acalentar as mães que perderam seus filhos. (…) Não há como hierarquizar a dor, ou acreditar que apenas será doído para as mães de jovens favelados. O Estado bélico e militarizado é responsável pela dor que paira também nas 16 famílias dos policiais mortos desde o início das UPPs”.
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A morte de Marielle, 24a vítima de execuções políticas em menos de quatro anos, teve ampla repercussão dentro e fora do Brasil, em parte pelo contexto em que ocorreu, apenas um mês depois da intervenção federal no Rio de Janeiro. Uma das facetas dessa repercussão evidenciou, uma vez mais, os imensos reservatórios de ódio – a expressão é do historiador germano-americano Peter Gay – capazes de banalizar e justificar, de maneiras as mais torpes, uma tragédia que ceifou, violentamente, duas vidas – junto com Marielle, morreu também Anderson Pedro Gomes, seu motorista.
Das vozes que emergiram do esgoto, algumas se sobressaíram: o líder do MBL gaúcho, Felipe Pedri; o deputado federal Alberto Fraga (DEM); a desembargadora carioca Marília de Castro Neves; o também deputado e pastor Marco Feliciano. Centenas de outras se incumbiram da tarefa abjeta de difamar e caluniar Marielle Franco. Para os milicianos virtuais, a morte física perpetrada pela milícia armada – quatro tiros na cabeça – não foi suficiente. Era preciso matá-la de novo, ainda que as razões dessa segunda milícia, a das redes, não sejam exatamente as mesmas daquela, a armada.
Para esta, a vereadora e militante do PSOL era, principalmente, um incômodo político. Sua atuação, primeiro na Comissão de Direitos Humanos da Alerj, ainda como assessora do deputado Marcelo Freixo e, desde o ano passado, como parlamentar, foi pautada na defesa intransigente dos indivíduos e comunidades fragilizadas pela constante violência a que são sujeitadas.
Isso significava, entre outras coisas, denunciar a corrupção e a violência policiais e a ação das milícias, expondo suas digitais nos assassinatos e chacinas que se tornaram um lugar comum nas favelas cariocas. Significava também escancarar a participação de parte da própria força policial nas milícias, mostrando o quanto, em certa medida, uma era extensão da outra, e que a violência não é “uma exceção”. Discurso comum entre oficiais que precisam justificar a truculência desmedida de seus subordinados e as deles próprios, ela é um mal que afeta estruturalmente a corporação, de alto a baixo, resultado de nossa concepção equivocada e distorcida de polícia.
Nas redes sociais, os milicianos virtuais fizeram o que sabem fazer melhor: mentiram, distorceram, difamaram, caluniaram. A segunda morte de Marielle, a tentativa de assassiná-la, por assim dizer, simbolicamente, foi principalmente um empreendimento movido pelo ódio ao outro, sintetizado na figura de uma mulher negra, lésbica, nascida e criada na periferia, militante de esquerda e dos direitos humanos.
O duplo preconceito é reforçado na afirmação, reproduzida inúmeras vezes, de que Marielle “defendia bandidos” por conta de sua militância nas comunidades periféricas. Não há retórica que disfarce o óbvio: para os seus executores virtuais, todo morador de favela é um criminoso, principalmente se negro, e estar ao lado deles na defesa de seus direitos mais básicos – como o direito à vida – é entrincheirar-se ao lado de bandidos.
Marielle Franco respondeu aos que fomentam o ódio, o preconceito de classe e o racismo quatro anos antes de ser assassinada. Em sua dissertação de mestrado em Administração Pública, “UPP – a redução da favela a três letras”, defendida na Universidade Federal Fluminense em 2014, cuja passagem serve de epígrafe a esse texto, ela identifica na implantação das UPPs, fruto da parceria dos governos petistas com os governadores Sérgio Cabral e Pezão, a continuidade do que estudiosos do tema chamam de “Estado penal”.
Os resultados nefastos desse modelo de segurança pública, que traduz exemplarmente a relação do Estado com as populações subalternizadas, não vitimiza apenas civis. Na dissertação, mas também em intervenções públicas, Marielle pontuava que a violência atingia igualmente policiais, e lembrava que o efetivo militar que atuava nos morros era composto, em sua maioria, por homens negros e pobres.
De um modo ou de outro, as vítimas preferenciais do “Estado penal” brasileiro têm a mesma cor de pele, a mesma etnia e as mesmas origens sociais e geográficas, daí a necessidade de organizar, nas palavras de um amigo muito caro, “as rebeldias de pessoas exploradas e oprimidas”, tarefa a qual ela se dedicou com afinco.
Sim, Marielle Franco foi assassinada por ser mulher, negra, lésbica, nascida e criada na periferia e militante de esquerda e dos direitos humanos; e pelos mesmos motivos, milícias virtuais a executaram nas redes. Mas suas mortes foram impulsionadas também pelo que temiam, nela, seus muitos executores: a irrupção do novo, a militância em defesa da dignidade e da vida, e contra as muitas formas de violência que, desde o Estado, precarizam principalmente os corpos de homens e mulheres pobres e negros. Nossa melhor resposta, talvez a única possível, para honrar sua memória, é não esmorecer frente à barbárie.