POR CLÓVIS GRUNER
O deputado e candidato à presidência Jair Bolsonaro é um fascista. E seus eleitores, também? Na segunda (22), meu colega José António Baço respondeu afirmativamente à questão e, nos comentários, um dos anônimos mencionou meu nada santo nome em vão, no que me soou uma espécie de inquirição. Minha resposta à pergunta está em um texto publicado em agosto, e não vejo motivos para reparar o que está escrito nele.Mas o problema me parece outro: faz mesmo alguma diferença se os eleitores de Bolsonaro são todos fascistas? Mesmo que não o sejam (e não acho que sejam) ao votarem nele, não legitimam a ascensão de um fascista? No domingo, a se confirmarem as pesquisas, Bolsonaro chega ao poder montado na campanha mais sórdida, mentirosa e violenta na história recente da República – e o páreo, convenhamos, é duro.
Ele não era oficialmente candidato, mas já viajava o país em campanha usando ilegalmente recursos públicos, quando vociferou que, em seu governo, as minorias se submetem à maioria, ou desaparecem. O que ele pretendeu com a afirmação, ficou mais claro no silêncio que manteve, e mantém, sobre o assassinato de Marielle Franco, executada com três tiros na cabeça por não se sujeitar e combater a maioria e as milícias, aquelas que Bolsonaro elogiou em um de seus discursos parlamentares.
Em seu primeiro pronunciamento após a votação do primeiro turno, condicionou a unificação do país ao fim de “toda forma de ativismo”. Não é preciso nenhum esforço para entender a que ativismo ele se referia, porque é legítimo supor que os seus próprios ativismos e aqueles que reverberam suas ideias (tipo mulheres ganharem menos e pobres serem privados do ensino superior), deverão ser mantidos e estimulados em seu governo.
No domingo, seguro que tem o apoio de uma maioria nada silenciosa, e contando com a conivência acovardada do STF, que insiste em afirmar a “normalidade das instituições”, Bolsonaro ampliou o escopo daqueles que pretende perseguir caso eleito: a “escória vermelha”, disse, precisa escolher entre o exílio ou a prisão (aos trabalhadores ele já sugeriu escolherem entre direitos e emprego), e aniquilá-la será a condição para melhorar o país.
Os exemplos abundam, mas não é preciso que me alongue mais. É bastante provável que, a essas alturas, a maioria dos seus eleitores conheça cada uma dessas declarações e outras tantas. Mas a tendência geral é, cinicamente, ignorá-las, relativizá-las ou justificá-las, como no episódio do caixa 2, apelando a teorias conspiratórias as mais esdrúxulas. Bolsonaro é “mito” até quando recebe apoio da Ku Klux Klan e reduz a “coitadismo” a desigualdade e o preconceito.
A parada do velho novo – Em “Como a democracia chega ao fim”, o cientista político David Runciman parte da eleição de Donald Trump nos EUA, para analisar o que chama de “versão caricatural do fascismo”. A insatisfação e a desconfiança com a democracia, geradas principalmente pela crise econômica, propiciaram a ascensão de um líder populista, que se apresentou aos eleitores como um outsider antissistêmico. Sem um programa claro, Trump foi eleito oferecendo soluções simplistas para problemas complexos, somando-se a isso a produção e proliferação serial de fake news, o preconceito contra minorias e o anti-intelectualismo.
Há semelhanças com o caso brasileiro, mas as diferenças chamam mais a atenção. Não temos o poder nem a influência econômica dos EUA. Na linguagem do mercado, o Brasil não é um player, e a eleição de um fascista pode dificultar a almejada recuperação econômica. Além disso, a democracia americana é sólida o suficiente para assegurar a cada cidadão, eleitor ou não de Trump, que seu mandato tem prazo de validade. Não temos a mesma garantia.
Além disso, Bolsonaro conjuga elementos do fascismo histórico – a irracionalidade, o personalismo, o elogio da força física e da violência, a moralização da política e a demonização de supostos inimigos, por exemplo –, a formas de autoritarismo cultivadas no terreno fértil da história nacional: a escravidão, experiência estruturante do nosso racismo; a violência estatal contra movimentos sociais; o esquecimento da ditadura; a cordialidade, raiz de nossa baixa tolerância à democracia.
As democracias modernas, nos ensina Runciman, morrem por dentro. A eleição de líderes populistas autoritários, argumenta, é o primeiro passo para um caminho de difícil retorno: quando abrimos mão de nossos direitos e liberdades, ou simplesmente votamos insensíveis ao fato de que indivíduos e grupos serão forçosamente privados deles, porque parte de “minorias”, estamos legitimando com nossas escolhas o fascismo.
Na segunda, não por acaso o dia seguinte ao discurso inflamado de Bolsonaro me oferecendo e a muitos de meus conhecidos, a prisão ou o exílio, e nos ameaçando com o aniquilamento, uma petição pública virtual circulou pela internet pedindo apoio à proposta de pena de morte para “petistas”. Antes de ser tirada do ar, já havia colhido cerca de 400 assinaturas.
Um eleitor de Bolsonaro me disse, em meio a uma discussão algo acalorada, que eu estava a exagerar; o abaixo assinado, afinal, não prosperou. Que ele tenha sido concebido e proposto, e que quase quatro centenas de internautas tenham se disposto a assiná-lo, basta. Se todos os eleitores de Bolsonaro são, como ele, fascistas? Como eu disse, isso importa menos. São indiferentes, e a indiferença já produziu, na história, um bom quinhão de barbárie.