POR CLÓVIS GRUNER
Na semana passada a Associação Comercial e Industrial de
Ponta Grossa (ACIPG) foi notícia nacional. Mas não por causa da pujança
econômica dos campos gerais paranaenses: a entidade, que reúne parte da elite pontagrossense,
publicou uma cartilha de orientação aos candidatos da região onde defende,
literal e textualmente, a “suspensão do direito ao voto para beneficiados de qualquer programa de transferência direta de renda, nas esferas municipal, estadual ou federal”. O presidente da associação, Nilton Fiori, defendeu a iniciativa apelando
a uma pretendida “lisura” nas eleições. Ecoando uma ideia distorcida, que
circula principalmente pelas redes sociais, o empresário teme que programas de
distribuição de renda acabem por favorecer principalmente os candidatos
governistas, que teriam assegurado o voto dos beneficiados.
É claro que, apesar da menção às “esferas municipal,
estadual ou federal”, a proposta da ACIPG mira, principalmente, o Bolsa Família
e seus milhões de beneficiários que, a depender dos empresários e, parece,
também de alguns candidatos locais, dispostos a bancar a sugestão da entidade de
classe, teriam suspensos parte de seus direitos políticos. A proposta
reverberou no Twitter e no Facebook do deputado estadual carioca Carlos
Bolsonaro, filho do deputado federal Jair Bolsonaro, que a repercutiu em suas redes sociais. Mas, não satisfeito, ele decidiu expandir a ideia original, acrescentando a ela um adendo.
Em um tweet, o deputado defendeu condicionar a inclusão no
programa “às cirurgias de laqueadura e vasectomia”; em sua página no Facebook,
livre das amarras dos 140 toques, ele explicou melhor: “Defendo a liberdade de escolha, normatizando, orientando e
condicionando o recebimento de bolsa-família à realização de cirurgias de
laqueadura e vasectomia”. E arremata: “em certo tempo estancaríamos a ferida
econômica aberta no Brasil e ainda estaríamos ajudando à curar a fome, a
miséria e a violência no país.” A uma seguidora que defende também a
criação de uma “lei do filho único” ele replica: “A diferença é que com nossa proposta a
cirurgia é uma escolha do cidadão, respeitando assim a sua liberdade individual!”.
Não, você não leu errado: segundo Bolsonaro, apesar do Estado normatizar,
orientar e condicionar o recebimento de um benefício à esterilização dos
futuros beneficiados, tudo será feito em “defesa da liberdade de escolha” e da “liberdade
individual”. Mais que um contrassenso, um horror.
GUERRA CONTRA
OS FRACOS – Já não me surpreende, mas continua a incomodar, a maneira como
as tímidas políticas de inclusão social vem sendo tratadas por muita gente. Normalmente fruto
da desinformação e do preconceito, tem proliferado com assustadora rapidez um
discurso que insiste em condenar parcelas da população a uma espécie de
sub-cidadania, justamente quando há um esforço republicano por arrancá-las de
lá. Mas ainda não tinha lido nada parecido com a proposta de Carlos Bolsnaro, nem tão preocupante. Mas a “guerra contra os fracos” não é um fenômeno novo. E tem um
nome: eugenia.
Impulsionadas pelas teses naturalistas surgidas ainda nas
primeiras décadas do século XIX, as teorias eugênicas se desenvolvem ao longo da
segunda metade do oitocentos. Em seu cerne, a concepção da evolução humana como
resultado imediato de leis biológicas e naturais que determinam o comportamento
humano. As raças se constituiriam como o fenômeno final e resultado irredutível
do processo evolutivo, no interior do qual se configuraram e cristalizaram as
desigualdades. Esta naturalização das diferenças legitimou um conjunto de
proposições com desdobramentos políticos bastante significativos: se as desigualdades
são racialmente determinadas e estruturadas na natureza das populações, é
possível asseverar a superioridade de uma raça sobre outras, mesmo a um nível
mais cotidiano, afirmando a continuidade entre os caracteres racialmente
determinados e a conduta moral dos indivíduos, por exemplo.
Amplamente aceita pela comunidade
científica, a eugenia orientou igualmente ações políticas e governamentais já
nas primeiras décadas do século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se
que pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente, a
maioria mulheres. A política de esterilização em massa seduziu também cientistas
e políticos brasileiros. Uma das principais bandeiras da Sociedade Brasileira
de Eugenia, criada pelo médico paulista Renato Kehl, era a revisão do
Código Civil, no sentido de autorizar o Estado a proibir o casamento entre
indivíduos que apresentassem o risco da geração de filhos que pudessem apresentar
alguma tendência à degenerescência, exigindo como garantia de uma “boa prole” a esterilização do casal.
Mas ninguém levou a eugenia tão longe quanto a Alemanha
nazista. Os esforços americanos chamaram a atenção de Hitler, que tratou de
aprimorar as tecnologias de eliminação dos indesejados, elevando-as a
parâmetros industriais. E não é demais lembrar que, antes da guerra e dos
campos de concentração, os nazistas a
praticaram com a aprovação invejosa dos americanos. Superintendente de um
hospital na Virgínia, o Western State Hospital, Joseph DeJarnette declarou, em
1934, que “Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo”. Os anos
seguintes mostrariam os resultados trágicos e bárbaros deste placar.
DO BIOLÓGICO AO
SOCIAL – Não faltarão comentaristas, provavelmente anônimos, a me acusar de “exagero”
no trato da questão. Pouco importa o que pensam, principalmente se o que pensam
justamente legitima esse rebaixamento dos já subalternos a uma subalternidade
ainda mais aterradora. A ausência do componente biológico, fundamental às doutrinas de pouco mais de um século atrás, não ameniza o
conteúdo dos discursos da ACIPG e de Carlos Bolsonaro. Ambos direcionam
seu arsenal exatamente para os mesmos grupos e indivíduos que estavam na mira das
políticas eugenistas de há um século: pobres e despossuídos sejam de recursos
econômicos ou políticos.
E como ontem,
encontram um ambiente e interlocutores dispostos a respaldar e legitimar o ressentimento e o ódio, sentimentos que estruturam suas propostas, como os principais afetos políticos. Homens e
mulheres que assistiram, em uma conivência silenciosa, a ofensiva das forças
conservadoras e fascistas, o fizeram em parte movidos por um medo e um temor
diuturnamente tecidos e alimentados justamente pelas forças conservadoras e
fascistas que tinham todo o interesse em produzi-los e alimentá-los: fundamentalmente,
o medo e o temor do outro em suas múltiplas mas sempre estranhas e
desconhecidas facetas. No passado, apenas depois de testemunhar o horror muitos perceberam as implicações do monstro que ajudaram a nutrir. Hoje, a serpente continua a chocar seus ovos. Me pergunto até onde continuaremos a alimentá-la, coniventes e, graças principalmente às redes sociais, já nem tão silenciosos.