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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Feios, pobres e temidos


 POR CLÓVIS GRUNER

Na semana passada a Associação Comercial e Industrial de Ponta Grossa (ACIPG) foi notícia nacional. Mas não por causa da pujança econômica dos campos gerais paranaenses: a entidade, que reúne parte da elite pontagrossense, publicou uma cartilha de orientação aos candidatos da região onde defende, literal e textualmente, a “suspensão do direito ao voto para beneficiados de qualquer programa de transferência direta de renda, nas esferas municipal, estadual ou federal”. O presidente da associação, Nilton Fiori, defendeu a iniciativa apelando a uma pretendida “lisura” nas eleições. Ecoando uma ideia distorcida, que circula principalmente pelas redes sociais, o empresário teme que programas de distribuição de renda acabem por favorecer principalmente os candidatos governistas, que teriam assegurado o voto dos beneficiados.

É claro que, apesar da menção às “esferas municipal, estadual ou federal”, a proposta da ACIPG mira, principalmente, o Bolsa Família e seus milhões de beneficiários que, a depender dos empresários e, parece, também de alguns candidatos locais, dispostos a bancar a sugestão da entidade de classe, teriam suspensos parte de seus direitos políticos. A proposta reverberou no Twitter e no Facebook do deputado estadual carioca Carlos Bolsonaro, filho do deputado federal Jair Bolsonaro, que a repercutiu em suas redes sociais. Mas, não satisfeito, ele decidiu expandir a ideia original, acrescentando a ela um adendo.

Em um tweet, o deputado defendeu condicionar a inclusão no programa “às cirurgias de laqueadura e vasectomia”; em sua página no Facebook, livre das amarras dos 140 toques, ele explicou melhor: “Defendo a liberdade de escolha, normatizando, orientando e condicionando o recebimento de bolsa-família à realização de cirurgias de laqueadura e vasectomia”. E arremata: “em certo tempo estancaríamos a ferida econômica aberta no Brasil e ainda estaríamos ajudando à curar a fome, a miséria e a violência no país.” A uma seguidora que defende também a criação de uma “lei do filho único” ele replica: “A diferença é que com nossa proposta a cirurgia é uma escolha do cidadão, respeitando assim a sua liberdade individual!”. Não, você não leu errado: segundo Bolsonaro, apesar do Estado normatizar, orientar e condicionar o recebimento de um benefício à esterilização dos futuros beneficiados, tudo será feito em “defesa da liberdade de escolha” e da “liberdade individual”. Mais que um contrassenso, um horror.

GUERRA CONTRA OS FRACOS – Já não me surpreende, mas continua a incomodar, a maneira como as tímidas políticas de inclusão social vem sendo tratadas por muita gente. Normalmente fruto da desinformação e do preconceito, tem proliferado com assustadora rapidez um discurso que insiste em condenar parcelas da população a uma espécie de sub-cidadania, justamente quando há um esforço republicano por arrancá-las de lá. Mas ainda não tinha lido nada parecido com a proposta de Carlos Bolsnaro, nem tão preocupante. Mas a “guerra contra os fracos” não é um fenômeno novo. E tem um nome: eugenia.

Impulsionadas pelas teses naturalistas surgidas ainda nas primeiras décadas do século XIX, as teorias eugênicas se desenvolvem ao longo da segunda metade do oitocentos. Em seu cerne, a concepção da evolução humana como resultado imediato de leis biológicas e naturais que determinam o comportamento humano. As raças se constituiriam como o fenômeno final e resultado irredutível do processo evolutivo, no interior do qual se configuraram e cristalizaram as desigualdades. Esta naturalização das diferenças legitimou um conjunto de proposições com desdobramentos políticos bastante significativos: se as desigualdades são racialmente determinadas e estruturadas na natureza das populações, é possível asseverar a superioridade de uma raça sobre outras, mesmo a um nível mais cotidiano, afirmando a continuidade entre os caracteres racialmente determinados e a conduta moral dos indivíduos, por exemplo.

Amplamente aceita pela comunidade científica, a eugenia orientou igualmente ações políticas e governamentais já nas primeiras décadas do século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente, a maioria mulheres. A política de esterilização em massa seduziu também cientistas e políticos brasileiros. Uma das principais bandeiras da Sociedade Brasileira de Eugenia, criada pelo médico paulista Renato Kehl, era a revisão do Código Civil, no sentido de autorizar o Estado a proibir o casamento entre indivíduos que apresentassem o risco da geração de filhos que pudessem apresentar alguma tendência à degenerescência, exigindo como garantia de uma boa prole a esterilização do casal.

Mas ninguém levou a eugenia tão longe quanto a Alemanha nazista. Os esforços americanos chamaram a atenção de Hitler, que tratou de aprimorar as tecnologias de eliminação dos indesejados, elevando-as a parâmetros industriais. E não é demais lembrar que, antes da guerra e dos campos de concentração, os nazistas a praticaram com a aprovação invejosa dos americanos. Superintendente de um hospital na Virgínia, o Western State Hospital, Joseph DeJarnette declarou, em 1934, que “Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo”. Os anos seguintes mostrariam os resultados trágicos e bárbaros deste placar.

DO BIOLÓGICO AO SOCIAL – Não faltarão comentaristas, provavelmente anônimos, a me acusar de “exagero” no trato da questão. Pouco importa o que pensam, principalmente se o que pensam justamente legitima esse rebaixamento dos já subalternos a uma subalternidade ainda mais aterradora. A ausência do componente biológico, fundamental às doutrinas de pouco mais de um século atrás, não ameniza o conteúdo dos discursos da ACIPG e de Carlos Bolsonaro. Ambos direcionam seu arsenal exatamente para os mesmos grupos e indivíduos que estavam na mira das políticas eugenistas de há um século: pobres e despossuídos sejam de recursos econômicos ou políticos. 

E como ontem, encontram um ambiente e interlocutores dispostos a respaldar e legitimar o ressentimento e o ódio, sentimentos que estruturam suas propostas, como os principais afetos políticos. Homens e mulheres que assistiram, em uma conivência silenciosa, a ofensiva das forças conservadoras e fascistas, o fizeram em parte movidos por um medo e um temor diuturnamente tecidos e alimentados justamente pelas forças conservadoras e fascistas que tinham todo o interesse em produzi-los e alimentá-los: fundamentalmente, o medo e o temor do outro em suas múltiplas mas sempre estranhas e desconhecidas facetas. No passado, apenas depois de testemunhar o horror muitos perceberam as implicações do monstro que ajudaram a nutrir. Hoje, a serpente continua a chocar seus ovos. Me pergunto até onde continuaremos a alimentá-la, coniventes e, graças principalmente às redes sociais, já nem tão silenciosos.