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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Reflexões sobre as eleições nos EUA: virá o fascismo?













POR RODRIGO BORNHOLDT

Logo que soube do resultado das eleições norte-americanas, postei em alguns grupos de whatsapp: os Estados Unidos elegeram um fascista. Depois, refletindo com calma, entendi que exagerei. Mas, repensando a própria reflexão, agora após alguns dias de uma semana com gosto amargo, entendo que há muitos traços fascistas no novo presidente.

Pela primeira vez na história, os Estados Unidos elegem alguém tão próximo à extrema direita. Reagan e os Bush eram conservadores, de direita, mas praticavam o chamado “compassionate conservatism”. Muito mais moderado do que aquilo que se pode esperar de Trump.

Há, porém, duas diferenças entre o novo presidente e o fascismo tradicional: esse coloca o Estado acima da própria atividade privada, suprimindo as várias liberdades, inclusive com fortes restrições à livre iniciativa. E, diante disso, tende a criar um Estado totalitário. É difícil que os EUA abandonem suas instituições democráticas e sucumbam ao totalitarismo, na definição dada por Hannah Arendt. Mas é muito possível que limite algumas liberdades e adote características autoritárias.

Como Trump é um negociante, os negócios tendem a falar em primeiro lugar. Para ele, o Estado deve servir aos negócios. Isso não retrata verdadeiramente o fascismo. Mas, sendo o novo presidente defensor dos grandes negócios, pretendendo inclusive revogar a lei antitruste, isso gera mais uma baita injustiça contra a maioria da população, inclusive pequenos e médios empresários.

O fascismo, aliás, andou de braços dados com o grande capital. Foi uma aliança sólida na Itália e na Alemanha. E, nos outros aspectos daquilo que é mais próprio de Trump, o fascismo volta a mostrar sua face abjeta: o desprezo ao outro e sua incompreensão. É assim com a depreciação ao negro, ao latino, ao muçulmano, ao oriental. Brasileiros já ameaçam voltar dos EUA; imigrantes, legais ou não, tendem a ser perseguidos pelo ódio das massas ou das instituições mais conservadoras.

A Alemanha não resistiu ao furor autocrático do nazismo. Mas era uma criança democrática. Tinha apenas 13 anos de Estado Democrático de Direito quando foi subjugada. Os EUA, com todos os defeitos de sua democracia, praticam-na há mais de 200 anos.

Sinto vergonha de minha geração, que contribuiu fortemente para esse resultado. Apenas espero que os valores democráticos estejam realmente incutidos nos EUA, para que se evite qualquer aventura autoritária mais profunda por parte do novo incumbente.

Sempre questionei a remarcada influência da televisão e a pouca formação cultural da maioria dos cidadãos. O Estado Democrático de Direito exige vigilância e um mínimo de cidadãos cultos e críticos, que defendam e (re)construam, permanentemente, os valores em que ele se embasa: liberdade de expressão, uma maioria formada racionalmente, o debate das grandes questões públicas; o respeito à vontade popular; o devido processo legal; um mínimo de direitos sociais. 

E deveria também figurar, nesse rol, como preconiza Michael Sandel, a defesa de uma economia política voltada à formação de verdadeiros cidadãos ativos, tanto pela predominância de uma economia baseada em pequenas e médias empresas, como pela efetiva aplicação de um sólido direito antitruste.

Há também um curioso lado populista em Trump, que por vezes parece compreender os pobres que mais sofrem com o processo de globalização. Mas parece pedir muito a ele que tenha um pouco de compaixão por todos e se dispa daquela escala de valores mais próxima de Wall Street e da divisão de mundo entre winners e losers. Aí Trump já não seria Trump. 


O mais provável é que ele realmente exerça, na medida em que consiga, o papel de um tipo de fascista norte-americano que encontro na seguinte passagem da descrição de John Lee Brook, um personagem fictício, criado por Roberto Bolaño em seu indizível “La literatura nazi en America:

- Sus temas preferidos y que se repiten a lo largo de todos sus poemas de manera a veces obsessiva, son la pobreza extrema en algunos sectores de la población blanca, los negros y los abusos sexuales carcelarios, los mexicanos siempre pintados como diminutos diablillos o como cocineros misteriosos, la ausência de mujeres (talvez aqui o único ponto em que Trump difira)... la decadencia de América, los guerreros solitários. (Anagrama: Barcelona, 2010, p. 160)

O estrago parece feito. Com um congresso conservador, e ao nomear um ou talvez até mais novos juízes da Suprema Corte, Trump consolidará a guinada conservadora nos Estados Unidos. Tomara não descambe ela para o fascismo. E, se isso acontecer, que a Califórnia consiga mesmo se separar da União.



Rodrigo Bornholdt é advogado, doutor em direito
e professor universitário

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O horror à política

POR CLÓVIS GRUNER

Em um texto escrito em 1950, “O que é política?”, a filósofa Hannah Arendt define a política como um lugar de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem. Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer explodir singularidades. A multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos: a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que constituem relações naqueles interstícios e intervalos que os aproximam sem, por isso, anular-lhes a diferença. “A política”, diz ela, baseia-se na “pluralidade dos homens”; ela deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes, não de iguais. Razão porque, para Arendt, o “sentido da política é a liberdade”.

Outro alemão, Jürgen Habermas, criticou em Arendt o que considerava uma concepção idealizada de política. De acordo com ele, Arendt a concebia tomando como modelo uma experiência, a da polis grega, impraticável nas sociedades contemporâneas, não apenas mais populosas como também mais complexas. A filósofa temia o que ele chamou de “midiatização da população” pelas instituições políticas, preferindo a estas a democracia direta e imediata. Diferentemente, Habermas reafirma a pertinência das democracias modernas e representativas, criticando em sua interlocutora a “estilização da polis grega” que está no cerne de suas formulações.

Pois penso que equivocado estava Habermas. Primeiro, acerca de Hannah Arendt, que tinha suficiente sensibilidade histórica para não usar o passado senão como meio para afirmar a possibilidade de pensar diferentemente a política no presente. Nela, a polis não é um lugar ideal ao qual se pretende retornar, mas uma referência necessária para compreender a historicidade da própria política, bem como denunciar os riscos e os limites do modelo representativo. Riscos e limites aos quais Habermas parece, afinal, pouco atento. Sem tensionar a democracia representativa, questionando por outros meios a eficácia da representatividade, sem construirmos outras vias de participação na vida pública além da mediação institucional e burocrática, talvez o que sobre seja, justamente, a despolitização da política.

O QUE RESTA DA POLÍTICA – As eleições deste ano encerram de maneira exemplar este risco. Ao longo dos últimos meses assistimos principalmente o ódio e o medo pautarem os discursos, as ações e as escolhas eleitorais. Nada de novo, a rigor: uma coisa e outra são a tônica do debate público – ou a ausência dele, enfim – desde há algum tempo. Mas era fundamental que fosse diferente em uma eleição presidencial. Não foi. O resultado foi a quase total ausência de uma interlocução efetiva entre partidos, seus candidatos e os eleitores.

Principalmente no chamado G-3, reproduziu-se a velha estratégia de destruir inimigos ao invés de confrontar adversários. E como o objetivo da oposição é vencer Dilma, ela apostou principalmente no velho roteiro denuncista, já bastante desgastado. Marina ainda tentou emplacar o discurso da “nova política”, valendo-se de maneira oportunista das manifestações de junho de 2013. Mas suas alianças com Bornhausen em Santa Catarina e Alckmin em São Paulo, além das mudanças recorrentes no discurso sempre que sentia alguma pressão vinda, ora do agronegócio, ora do pastor Malafaia, comprometeram tal pretensão. Pior fizeram os tucanos: tiveram 12 anos para apresentar um projeto alternativo para o país, e o máximo que conseguiram foi lançar Aécio Neves. E não faltaram previsões catastróficas e gente a defender um “corpo a corpo encarniçado e sangrento” passadas as eleições. Tudo muito patético.

A presidenta Dilma Rousseff teve de enfrentar, e nem sempre o fez bem, o desgaste natural depois de mais de uma década do PT à frente do governo. Embora líder nas pesquisas, ela não conseguiu superar uma contradição que atravessa as gestões petistas: os indicativos sociais positivos, a meu ver a principal conquista dos últimos três governos, não produziram um amadurecimento político mais significativo. Parece ter ocorrido justamente o contrário, e é difícil ao PT escapar ao seu quinhão de responsabilidade. Além de se afastaram dos movimentos sociais, contribuindo inclusive para sua criminalização, os governos Lula e Dilma valeram-se de políticas distributivas bem sucedidas para diluir outros temas e travar pautas fundamentais ao avanço da democracia. A capitulação diante da pressão de segmentos religiosos fundamentalistas e as alianças com setores conservadores, ajuda a entender a indiferença institucional para com temas e políticas que deveriam ser fundamentais a uma política de esquerda.

O ESPETÁCULO DO HORROR – Pois é esta indiferença, justificada pela necessidade de assegurar a governabilidade, uma das responsáveis pela reprodução de uma já histórica despolitização de parcela significativa da sociedade brasileira. Danosa para a consolidação de uma democracia efetivamente pluralista e sensível aos direitos humanos mais fundamentais, reforçada por uma investida midiática que não poupou esforços para estigmatizar toda forma de política, com ela chegamos a uma eleição onde a política cedeu espaço a um espetáculo onde o protagonista é, justa e ironicamente, o horror à política.

E ele se manifestou de maneira brutal no debate entre os candidatos à presidente, na noite de domingo, na rede Record. A resposta do candidato Levy Fidelix a uma pergunta de Luciana Genro sobre o casamento homossexual, é o retrato do quão baixo chegamos depois de anos alimentando o ódio, o ressentimento e a intolerância. Ao afirmar que “aparelho excretor não reproduz”; associar a homossexualidade à pedofilia; sugerir que quem é “portador deste problema” deverá receber tratamento médico e psicológico para curar-se, mas “longe de nós” – onde? Internados em um asilo ou hospício; confinados em um gueto ou em campo de concentração, um triângulo rosa costurado na roupa? –; e conclamar a “maioria” a “enfrentar” a “minoria”, Fidelix não apenas vomitou sua monumental ignorância, mas incentivou a violência.

Mas sua barbárie verbal foi potencializada com o silêncio constrangedor dos demais. Nenhum entre os principais candidatos repudiou o posicionamento do “nanico”. Para não perderem um punhado de votos, perderam a oportunidade de fazer a diferença, enfrentando e denunciando a intolerância e a violência que ela estimula e legitima. A movimentação nos dias seguintes foi uma pálida e envergonhada resposta à repercussão nas redes sociais, e uma tentativa de disfarçar o indisfarçável: para o G-3 a política deixou de ter como função organizar e regular a convivência entre os diferentes, assegurando a todos os direitos civis mais básicos, independente da fé que professem, da cor de sua pele, de sua posição social ou de seu gênero. Tornada técnica, distante das e indiferente às vidas comuns, a política foi desinvestida de seu caráter político. Hoje, nenhuma das três alianças e candidatos que aspiram à presidência reúne as condições de reverter isso. E possivelmente tampouco desejam fazê-lo.