POR CLÓVIS GRUNER
Em um texto escrito em 1950, “O que é política?”, a
filósofa Hannah Arendt define a política como um lugar de aparecimento de
rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos
que falam e agem. Multiplicidades
porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer
explodir singularidades. A multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos:
a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que constituem
relações naqueles interstícios e intervalos que os aproximam sem, por isso,
anular-lhes a diferença. “A política”, diz ela, baseia-se na “pluralidade dos
homens”; ela deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes, não de
iguais. Razão porque, para Arendt, o “sentido da política é a liberdade”.
Outro alemão, Jürgen Habermas,
criticou em Arendt o que considerava uma concepção idealizada de política. De
acordo com ele, Arendt a concebia tomando como modelo uma experiência, a da polis grega, impraticável nas sociedades
contemporâneas, não apenas mais populosas como também mais complexas. A filósofa
temia o que ele chamou de “midiatização da população” pelas instituições
políticas, preferindo a estas a democracia direta e imediata. Diferentemente,
Habermas reafirma a pertinência das democracias modernas e representativas,
criticando em sua interlocutora a “estilização da polis grega” que está no cerne de suas formulações.
Pois penso que equivocado estava
Habermas. Primeiro, acerca de Hannah Arendt, que tinha suficiente sensibilidade
histórica para não usar o passado senão como meio para afirmar a possibilidade
de pensar diferentemente a política no presente. Nela, a polis não é um lugar ideal ao qual se pretende retornar, mas uma
referência necessária para compreender a historicidade da própria política, bem
como denunciar os riscos e os limites do modelo representativo. Riscos e
limites aos quais Habermas parece, afinal, pouco atento. Sem tensionar a democracia
representativa, questionando por outros meios a eficácia da representatividade,
sem construirmos outras vias de participação na vida pública além da mediação
institucional e burocrática, talvez o que sobre seja, justamente, a
despolitização da política.
O QUE RESTA DA POLÍTICA – As
eleições deste ano encerram de maneira exemplar este risco. Ao longo dos
últimos meses assistimos principalmente o ódio e o medo pautarem os discursos,
as ações e as escolhas eleitorais. Nada de novo, a rigor: uma coisa e outra são
a tônica do debate público – ou a ausência dele, enfim – desde há algum tempo. Mas
era fundamental que fosse diferente em uma eleição presidencial. Não foi. O
resultado foi a quase total ausência de uma interlocução efetiva entre partidos,
seus candidatos e os eleitores.
Principalmente no chamado G-3, reproduziu-se
a velha estratégia de destruir inimigos ao invés de confrontar adversários. E
como o objetivo da oposição é vencer Dilma, ela apostou principalmente no velho
roteiro denuncista, já bastante desgastado. Marina ainda tentou emplacar o
discurso da “nova política”, valendo-se de maneira oportunista das manifestações
de junho de 2013. Mas suas alianças com Bornhausen em Santa Catarina e Alckmin
em São Paulo, além das mudanças recorrentes no discurso sempre que sentia alguma
pressão vinda, ora do agronegócio, ora do pastor Malafaia, comprometeram tal
pretensão. Pior fizeram os tucanos: tiveram 12 anos para apresentar um projeto
alternativo para o país, e o máximo que conseguiram foi lançar Aécio Neves. E não
faltaram previsões catastróficas e gente a defender um “corpo a corpo
encarniçado e sangrento” passadas as eleições. Tudo muito patético.
A presidenta Dilma Rousseff teve
de enfrentar, e nem sempre o fez bem, o desgaste natural depois de mais de uma
década do PT à frente do governo. Embora líder nas pesquisas, ela não conseguiu
superar uma contradição que atravessa as gestões petistas: os indicativos
sociais positivos, a meu ver a principal conquista dos últimos três governos, não
produziram um amadurecimento político mais significativo. Parece ter ocorrido justamente
o contrário, e é difícil ao PT escapar ao seu quinhão de responsabilidade. Além
de se afastaram dos movimentos sociais, contribuindo inclusive para sua
criminalização, os governos Lula e Dilma valeram-se de
políticas distributivas bem sucedidas para diluir outros temas e travar pautas
fundamentais ao avanço da democracia. A capitulação diante da pressão de segmentos
religiosos fundamentalistas e as alianças com setores conservadores, ajuda a
entender a indiferença institucional para com temas e políticas que deveriam
ser fundamentais a uma política de esquerda.
O ESPETÁCULO DO HORROR –
Pois é esta indiferença, justificada pela necessidade de assegurar a governabilidade,
uma das responsáveis pela reprodução de uma já histórica despolitização de
parcela significativa da sociedade brasileira. Danosa para a consolidação de
uma democracia efetivamente pluralista e sensível aos direitos humanos mais
fundamentais, reforçada por uma investida midiática que não poupou esforços
para estigmatizar toda forma de política, com ela chegamos a uma eleição onde a
política cedeu espaço
a um espetáculo onde o protagonista é, justa e ironicamente, o horror à política.
E ele se manifestou de maneira brutal no
debate entre os candidatos à presidente, na noite de domingo, na rede Record. A
resposta do candidato Levy Fidelix a uma pergunta de Luciana Genro sobre o
casamento homossexual, é o retrato do quão baixo chegamos depois de anos alimentando o ódio, o ressentimento e a intolerância. Ao afirmar que “aparelho excretor não reproduz”; associar
a homossexualidade à pedofilia; sugerir que quem é “portador deste problema” deverá receber tratamento médico e psicológico para curar-se,
mas “longe de nós” – onde? Internados em um asilo ou hospício; confinados em um
gueto ou em campo de concentração, um triângulo rosa costurado na roupa? –; e conclamar a “maioria” a “enfrentar”
a “minoria”, Fidelix não apenas vomitou sua monumental ignorância, mas incentivou
a violência.
Mas sua barbárie verbal foi potencializada com o silêncio
constrangedor dos demais. Nenhum entre os principais candidatos repudiou o
posicionamento do “nanico”. Para não perderem um punhado de votos, perderam
a oportunidade de fazer a diferença, enfrentando e denunciando a intolerância e
a violência que ela estimula e legitima. A movimentação nos dias
seguintes foi uma pálida e envergonhada resposta à repercussão nas redes
sociais, e uma tentativa de disfarçar o indisfarçável: para o G-3 a política
deixou de ter como função organizar e regular a convivência entre os diferentes,
assegurando a todos os direitos civis mais básicos, independente da fé que
professem, da cor de sua pele, de sua posição social ou de seu gênero. Tornada
técnica, distante das e indiferente às vidas comuns, a política foi
desinvestida de seu caráter político. Hoje, nenhuma das três alianças e candidatos que
aspiram à presidência reúne as condições de reverter isso. E possivelmente
tampouco desejam fazê-lo.