quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Alguma mulher merece ser estuprada?

POR CLÓVIS GRUNER

De acordo com o deputado federal Jair Bolsonaro, do PP carioca, sim. Em discurso na tribuna da Câmara dos Deputados terça-feira, o parlamentar – conhecido pelo que os meios de comunicação chamam, eufemisticamente, de “posições polêmicas” – afirmou textualmente, dirigindo-se à deputada petista Maria do Rosário: “Só não te estupro porque você não merece”. Não foi a primeira vez: em 2003, durante debate na Rede TV!, Bolsonaro afirmou exatamente a mesma coisa, também para Maria do Rosário. Em entrevista concedida ontem ao jornal Zero Hora, ele voltou ao assunto: “Ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria”. E completa: “Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”.

A alguns parecerá positivo saber que o Parlamento brasileiro não abriga um estuprador, apenas um apologista do estupro. Mas há coisas importantes implicadas nas falas de Bolsonaro, na tribuna e na entrevista ao ZH, e não é preciso muito esforço para identificá-las. Primeiro, e o mais óbvio: se Bolsonaro considera que Maria do Rosário não é “digna” de ser estuprada porque é feia, a dedução óbvia é de que, na sua mentalidade machista, há aquelas mulheres que merecem sê-lo e que ele pessoalmente, se fosse estuprador, estupraria. Ou seja, as mulheres bonitas – ou aquelas consideradas bonitas segundo a perspectiva do nada nobre deputado –, merecem ser estupradas; as feias, não.

Bolsonaro concorda, embora por caminhos distintos, com outro apologista do estupro, o humorista Rafinha Bastos, para quem mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Ou com os publicitários membros do Conar que, no ano passado, decidiram manter no ar a campanha da cerveja Nova Schin sob a alegação de ser “baseada em uma situação absurda”. Afinal, na peça publicitária, o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando visível horror e medo, é invisível. Segundo alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido. Para Bolsonaro, se ela for bonita, o estupro é não apenas válido como merecido.

CULTURA DO ESTUPRO – Bolsonaro é truculento, mas não é um ignorante. Ou seja, ele não ignora que os números da violência de gênero no Brasil são alarmantes e agravam a sensação de que vivemos em uma cultura que tem feito pouco caso das agressões contra mulheres, não raro praticadas nos ambientes domésticos, por conhecidos e mesmo familiares (pais, irmãos, maridos, amigos, vizinhos, etc...). Segundo o Mapa da Violência de 2012, as taxas de homicídio de mulheres foram de quase 4.500 em 2010 (4,6 homicídios por 100 mil habitantes). No caso do estupro, foram mais de 51 mil casos registrados somente em 2012, uma taxa de 26,3 por 100 mil habitantes, segundo o Anuário de Segurança de 2013. Como a qualidade dos registros varia entre os estados, e muitos casos sequer chegam a ser denunciados, é bastante provável que os números, já altos, sejam ainda maiores: sabe-se que muitas vezes as vítimas, por vergonha ou porque ameaçadas, optam pelo silêncio.

O fato de Jair Bolsonaro conhecer estes números e menosprezá-los torna ainda mais abjeta sua declaração, que não teve no Congresso a repercussão que merece. Os dois maiores partidos de oposição – DEM e PSDB – silenciaram. O PSC manifestou apoio a Bolsonaro. Na base aliada, fora alguns petistas solidários à Maria do Rosário, a reação foi acanhada: o PP não se manifestou e o PMDB repudiou apenas timidamente o episódio. Coube aos partidos de esquerda, especialmente os chamados “nanicos”, junto com parte da bancada petista, a tarefa de apresentar representação contra o deputado, pedindo sua cassação – que provavelmente não ocorrerá. Do Palácio do Planalto – pelo menos até o momento em que escrevo essas linhas – nenhuma manifestação, o que não me surpreende: o silêncio de agora apenas reverbera a conivência silenciosa com que, em 2012, o governo petista tratou a eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso.

Fora dos corredores e gabinetes parlamentares e palacianos, a declaração de Bolsonaro encontrou o respaldo esperado para um deputado eleito com mais de 400 mil votos – o mais votado do Rio de Janeiro. E que se tornou, desde há algum tempo, o principal porta voz de uma direita conservadora que fez e faz do ódio, do medo e do ressentimento os principais afetos da política. Eu sei que à direita há aqueles, e não são poucos, que repudiam os discursos e as práticas do deputado progressista e que não se veem representados pela sua atuação parlamentar. Mas sei também que, lamentavelmente, Bolsonaro representa, incorpora e multiplica, contando para isso com um suporte midiático privilegiado, o que há de pior e mais perigoso em nossa vida pública, os grupos conservadores, fanatizados em sua repulsa por tudo e todos que são diferentes da sua obtusa concepção de normalidade.

Cada gesto seu, cada ofensa dirigida contra uma mulher, um gay, um negro ou um militante assassinado ou torturado pela ditadura, fragiliza nossa democracia e nosso senso de civilidade. Ao escarnecer, como o faz habitualmente, de nossas ainda frágeis conquistas democráticas, Bolsonaro ajuda a despertar o sentimento revanchista daqueles que temem a liberdade e negam a dignidade humana como um princípio fundamental a nortear nossa experiência comum. Ele não está sozinho nem prega no deserto: há uma pequena multidão, e não apenas de eleitores seus, que o aplaude, justifica e legitima não importa o que ele diga ou faça. Talvez não queira, certamente não admite, mas esta pequena multidão é tão responsável quanto ele. Mas o pior é que, provavelmente, ela não se importa.

PS.: Uma petição online, organizada no site Avaaz, pede a cassação do mandato do deputado Jair Bolsonaro. Se você quiser assiná-la, clique aqui.

12 comentários:

  1. Aviso aos leitores: já eliminei dois comentários que defendiam Bolsonaro. Seguirei fazendo-o sempre que algum comentarista, anônimo ou não, insinuar qualquer justificativa que procure legitimar a atitude do deputado.

    E tenho certeza que quem faz apologia ao estupro consegue conviver com a ideia de ter sua participação eliminada em uma caixa de comentários.

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    1. Eliminar os comentários não te faz ditador? Fizeram uma tempestade com as falas dele, mas ninguém se ateve ao fato de que realmente temos buscado direitos para os bandidos, e as pessoas trabalhadoras e honestas tem estado a merce deles. Acho de última descontextualizar uma frase e fazer o que se fez.

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    2. Depende do ponto de vista: pra mim, eliminar comentários de gente que faz apologia ao estupro só me torna alguém minimamente decente.

      Mas liberei o seu: acho que uma mulher que tem a coragem de defender o Bolsonar deve ter o direito de passar esta vergonha em público.

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  2. Ótimo, os que concordarem com você também dividem um cérebro do tamanho de uma noz e não conseguem conviver com pensamentos conflitantes.

    Eduardo, Jlle.

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    1. Se você chama de não tolerar a apologia ao estupro de não conseguir "conviver com pensamentos conflitantes" parabéns, siga em frente, apologista do estupro.

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  3. A votação estrondosa do Bolsonaro à Câmara dos Deputados reflete a absoluta e completa falta de representatividade da direita no Brasil. Hoje a direita é apenas uma caricatura, que encontra no Bolsonaro, em pastores evangélicos e outros moralistas, a alternativa que sobrou !

    É triste um país onde não exista uma classe política conservadora e séria, como contra-ponto ao pensamento liberal de esquerda. Ambas são necessárias em toda a sociedades. Ambas se fiscalizam e se equilibram.

    O que temos no Brasil hoje é um governo de centro esquerda (PT), com apoio de parte do centro (PMDB, PR) e uma oposição de centro (PSDB) com apoio de parte da centro-direita ruralista e oligárquica (DEM).

    A direita tradicional teve em Carlos Lacerda o seu último representante. Depois dele, apenas tiranetes militares e figuras bisonhas como Jânio Quadros e atualmente, o tal do Bolsonaro.

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  4. É um absurdo ver pessoas que tentam defender a infeliz frase do Bolsonaro. Estupro é crime. Defender um estupro é ser tão bandido como quem o praticou. Eu já escutei a mesma frase só que o contexto era diferente. No final de outubro se dizia que quem não votou no Psdb na última eleição foi tachado de bandido. Bandido é quem defende crimes como atos legais.
    Uma ressalva importante, quem acha que está história do Bolsonaro é devio de assuntos importantes, tem toda razão. As contas rejeitadas de campanha, o escândalo da Petrobras, um presidente da República com documentos que comprovam atos de tortura em casa, a aprovação do projeto de lei que muda as metas econômicas e muitos outros. Só não podemos achar que está certo o que o Bolsonaro disse.

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    1. Acusar alguém de um crime hediondo sem provas também é crime.

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    2. Há um vídeo e uma entrevista para um jornal de grande circulação: em ambos, Bolsonaro faz a apologia ao estupro (que não é crime hediondo; o estupro é). Quer mais?

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  5. Quem defende o Bolsonaro, tem que ver o vídeo onde ele sugere que o FHC (presidente na época da declaração) deveria ser fuzilado pelas privatizações feitas. PDSB e privatizações??? Onde está seu deus agora???

    https://www.youtube.com/watch?v=tOCuftuLhUc

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    1. E sua revolta contra a apologia ao fuzilamento, aonde estava? Ficaste tão sensibilizado na época, quanto agora?

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  6. Ótimo texto, achei muito pontual a frase "Bolsonaro se tornou o principal porta voz de uma direita conservadora que fez e faz do ódio, do medo e do ressentimento os principais afetos da política". Essa onda conservadora, que neste ano pegou carona com a tímida Marcha comemorativa dos 50 anos, mas existente, assume uma tendência cada vez mais intolerante e agressiva. Muito preocupante onde isso pode levar.

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