A pergunta do italiano Primo Levi, sobrevivente de
Auschwitz, acerca dos campos de concentração nazistas e que dá título a este
texto, é válida também para outras experiências concentracionárias, dos gulags
soviéticos às prisões americanas de Abu Grahib e Guantánamo; do Carandiru ao
Presídio de Joinville ou um hospício em Barbacena: ainda é
possível chamar-se homem alguém de quem se usurpou todos os traços de
humanidade? Instituições asilares são, por sua natureza, não apenas espaços de
sequestro e exclusão, mas de desumanização.
Referindo-se aos que passaram pelos campos nazistas, o
filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que a condição paradoxal em que
viviam, “privados de quase todos os direitos e expectativas que costumamos
atribuir à existência humana e, todavia, biologicamente ainda vivos”, os
assemelhava à condição de homo sacer
– o “homem sacro” – do antigo direito romano, cuja “vida nua”, desprovida de
valor e “indigna de ser vivida”, pode por isto ser eliminada “sem que se cometa
homicídio”.
Acredito que Agamben
não está a se referir apenas a eliminação física – a morte no sentido estrito
–, mas também a outras formas de extinção contidas no próprio ato do internamento.
Uma vez privado de sua liberdade e submetido à tutela contínua, o interno torna-se
parte de uma intrincada e totalitária rede de poderes; ele passa a ser um “homem
sem mundo”, cuja existência se confunde com a da instituição a qual
forçosamente pertence. Vive, na feliz definição do sociólogo americano Gresham
Sykes, em uma “sociedade dos cativos”, onde prevalecem outros laços de sociabilidade
e valores morais. São territórios
heterotópicos, “sociedades dentro de outra sociedade”, relativamente autônomos
em seu funcionamento e, mesmo que às vezes próximas de nós geograficamente, distantes
em suas estruturas e relações de poder. Frequentemente o processo de
desumanização – jurídica, simbólica, etc... – é acompanhado da degradação
física pela submissão aos mais infames suplícios corporais, a tortura entre
eles.
No Brasil, historicamente,
a tortura tornou-se prática banal: são indistintamente sujeitados à conjugação
de dor física e humilhação moral que a caracteriza, velhos internados em
asilos, doentes mentais em hospícios, prisioneiros maiores e menores de idade.
Autorizados pela indiferença da maioria, torturadores com e sem diploma, anônimos
ou não, atravessam em particular a história recente do país, e são o testemunho
de que nosso passado autoritário ainda nos pesa como um fardo.
UM PROJETO
CIVILIZADOR – No começo de agosto foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff
a Lei nº 12.847, que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura (SNPCT).
Fruto do Projeto de Lei 2422/2011, ela prevê a criação do Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura. Por meio dela, os membros do Comitê podem visitar, sem aviso
prévio – detalhe fundamental –, presídios, penitenciárias,
delegacias, casas de custódia, instituições socioeducativas, hospitais
psiquiátricos e asilos, a fim de apurar violações dos direitos humanos,
principalmente a prática da tortura. Se constatadas violações, os diretores terão
um prazo determinado para implementar as medidas necessárias para coibi-las.
Como sempre, não há garantias de que a lei produza efeitos
práticos, certamente não a curto prazo. Afinal, as vítimas de torturas,
especialmente se delinquentes e criminosos, costumam não contar com a solidariedade dos autoproclamados
homens e mulheres de bem. Mas ela representa um passo importante em direção
a uma política de intolerância para com a violência institucional, algo que
vinha se desenhando desde o primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos,
sancionado pelo presidente FHC em 1996, e reafirmado nas duas edições
subsequentes, de 2002 e 2010.
Há razões de sobra para, mais que apenas comemorar, cobrar
do governo a efetiva aplicação da lei. Por um lado, principalmente as prisões convivem com os resquícios da
ditadura e a resistência às políticas de Direitos Humanos no interior de seus
sólidos muros. Há um incômodo e reincidente descompasso entre as instituições prisionais
– e também as policiais – e a democratização, fazendo destas imensos
reservatórios da arbitrariedade e da violência cultivadas durante a ditadura
civil militar. É como se o gradual desmonte do aparato repressivo não tivesse
alcançado o interior das penitenciárias, presídios, delegacias e quarteis de
polícia.
Além disso, o
abrandamento da violência institucional não afeta apenas os presos. Não foram
poucas as vezes em que ouvi, durante os intervalos dos cursos que ministrei na
Escola Penitenciária do Paraná, os agentes penitenciários queixarem-se de que são
vítimas de um estigma não muito diferente dos prisioneiros. Eles reconhecem que
a convivência diária com a violência, mesmo que às vezes apenas latente, também
os marca de maneira indelével. Não são apenas os sentenciados que convivem com e
internalizam os valores e experiências da “sociedade dos cativos”. O processo
de desumanização, comum à experiência asilar, é democrático e aspira à
igualdade.
Combater até abolir
a tortura é um dever que temos, e não apenas com nossos internos – sejam eles
velhos, doentes, loucos, menores infratores, prisioneiros. Um mundo sem a violência
institucional e institucionalizada é desejável. Talvez, com a aprovação do SNPCT, estejamos dando um passo importante
para torná-lo também possível.