sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Casaldáliga, um profeta moderno na defesa dos injustiçados


POR DOMINGOS MIRANDA
A Espanha ofereceu ao mundo mentes brilhantes que ajudaram a humanidade a crescer intelectualmente, tais como Cervantes, Goya, Garcia Lorca, Picasso ou Gaudi. E também Pedro Casaldáliga, um nome que nos toca muito, pois há 50 anos reside no Brasil. Este bispo emérito de São Félix do Araguaia completa 90 anos neste 16 de fevereiro e tem uma história marcada pela defesa do povo humilde que o rodeia. Este catalão franzino não demonstra a sua coragem fantástica, mas enfrenta uma das elites mais sanguinárias do campo, armado apenas com a coragem, a fé e a vontade de combater a injustiça, Diante das várias tentativas de homicídio contra ele, o papa Paulo VI, seu amigo, disse: “Ameaçar Pedro é como ameaçar Paulo”.

Para sentir a gravidade da situação, o melhor é  ler o depoimento de dom Pedro quando o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier foi assassinado, em 1976, na delegacia da pequena cidade de Ribeirão Cascalheira, em Mato Grosso. “[...] quando chegamos a Ribeirão logo nos sentimos atingidos por um certo clima de terror que pairava sobre o lugar e as redondezas. A morte do cabo Félix (...), muito conhecido pelas suas arbitrariedades e até crimes (...) trouxe ao lugar um grande contingente de policiais e, com eles, a repressão arbitrária e até a tortura (...) Duas mulheres estavam sofrendo torturas na delegacia - um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta e sob as unhas (...) Era Margarida Barbosa, irmã de Jovino (que matara o cabo Félix por ter aprisionado os filhos dele), e Santana, esposa de Paulo, filho de Jovino, violentada por vários soldados apesar de estar de resguardo (...) Eram mais de 18h e os gritos delas se ouviam da rua. ‘Não me batam’. Resolvi ir à delegacia interceder por elas. O padre João Bosco, que estava lendo e rezando (...), fez questão de me acompanhar”.

E continua: “Quando chegávamos no terreno da pequena delegacia local, cercada por arame (...) os quatro policiais nos esperavam enfileirados, em atitude agressiva. Entramos pela cerca de arame que ia ser também cerca de morte. Eu me apresentei como bispo de São Félix, dando a mão aos soldados. O padre João Bosco também se apresentou, e tiveram aquele diálogo de talvez três ou cinco minutos, com insultos e ameaças até de morte por parte deles. Quando o padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezy Ramalho Feitosa pulou até ele, dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Tentei cortar o impossível diálogo: ‘João Bosco, vamos (...)’ O soldado descarregou no rosto do padre um golpe de revólver, e, em um segundo gesto, fulminante, o tiro fatal, no crânio”.

Em 1971, Pedro Casaldáliga foi escolhido bispo da prelazia de São Félix do Araguaia, a maior do país em extensão, com 150 mil km quadrados e uma população de posseiros e indígenas. Os grandes latifundiários praticavam a lei do mais forte neste Brasil profundo, distante dos grandes centros e dos meios de comunicação. As execuções eram normais e os cadáveres desciam boiando pelos rios. O bispo antecipou em quatro décadas o papa Francisco, abriu mão dos paramentos e vestia-se como os agricultores pobres. Numa ocasião, o automóvel que estava quebrou e ele chegou numa venda na beira de estrada pedindo ajuda, dizendo que era bispo. O comerciante olhou aquele homem com chapéu de palha, sandália de couro e roupa comum e respondeu: “Se você for bispo eu sou o papa”.

Durante a ditadura, os militares tentaram expulsá-lo cinco vezes do Brasil e era vigiado 24 horas por dia, acusado de ser comunista.  A alta cúpula da igreja católica também o incomodava. Em 1988, o papa João Paulo II o chamou ao Vaticano e recebeu séria advertência por seu apoio à revolução sandinista, na Nicarágua, e por sua militância na Teologia da Libertação. Quando completou 75 anos pediu sua demissão como bispo. A Santa Sé recomendou que abandonasse o país, mas ele decidiu continuar morando numa casa simples em São Félix do Araguaia para prestar ajuda àquela população sofrida. Em 2012, a Polícia Federal o afastou da região temporariamente porque se descobriu que os invasores de terras indígenas tinham plano para matá-lo.

Nascido na Espanha, na Catalunha, numa família de camponeses pobres, ainda criança presenciou os horrores da guerra civil, entre 1936 e 1939. Em 1952 foi ordenado padre claretiano e com 40 anos de idade decidiu, voluntariamente realizar trabalho missionário no Brasil. Ao longo dos anos colocou no papel seus dotes intelectuais, tendo editado cerca de 40 livros de poesia, de antropologia e de história. A tevê espanhola fez um filme sobre a sua vida, “Descalço sobre a terra vermelha”, premiado pela Academia Catalã de Cinema como o melhor filme para a tevê. O escritor Leonardo Boff afirmou que Casaldáliga tornou-se um nome universal por causa de sua luta em defesa da libertação do pobre, da dignificação da mulher e por uma igreja mais democrática.

Os 90 anos do bispo deveriam ser mais reverenciados pela grande mídia por seu papel na defesa dos oprimidos. Mas, como um profeta bíblico, o objetivo do religioso não visa chamar atenção sobre si, mas libertar a terra da injustiça. Ele está entre os três religiosos que mais se destacaram na segunda metade do século 20 no Brasil, ao lado de dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns. Nós só temos a agradecer à Catalunha por este presente. Obrigado.

3 comentários:

  1. Mal empregado o nome de Leonardo Boff no texto... cristão e comunista, contradição normal, vinda de esquerdistas.

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    1. Que problema teria se o Boff fosse comunista? Você é seguidor do Brilhante Ustra e do Bolsonaro?

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    2. Pq são crenças mutuamente excludentes. A história sem um sentido metafísico, governados pelo caos e a leis físicas da matéria. Aonde caberia Deus no materialismo dialético?

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