terça-feira, 30 de julho de 2024

O mundo precisa de mitoclastas

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Poucos intelectuais desenvolveram um pensamento tão refinado quanto Roland Barthes. A sua obra é tão extensa quanto densa e um dos conceitos mais instigantes é o de “mitoclastia”. Ou seja, destruir mitos. Para situar o leitor menos familiarizado com os escritos do pensador francês, o mito é uma distorção que resulta da des-historicização dos signos. Trocando em miúdos, são aquelas coisas que todos nós entendemos como “naturais”, mas que na realidade são históricas, portanto socialmente construídas (é mais complexo do que isso, claro). 

Um mitoclasta duvida, quer ver o mundo pelo viés da história. E por isso questiona todas as verdades, em especial aquelas que parecem mais afirmativas. Para ficar mais claro, vamos a um exemplo prático do nosso dia-a-dia (já escrevi sobre isto antes). O Brasil tem um presidente da República sem diploma. O pequeno-burguês torce o nariz. Porque ele acredita no mito, construído ao longo dos tempos, que divide os homens entre diplomados e não-diplomados, cultos e não-cultos, apesar de diploma e cultura nem sempre viverem na mesma casa.

As "verdades absolutas" são aquelas noções que, de tão arraigadas no pensamento coletivo, são aceitas sem questionamento. Essas verdades estão também na história do cotidiano. Outro exemplo mundano? Os padrões de beleza. Muitos acham que não universais. Mas não. A beleza também é histórica. Nos tempos da peste, as pessoas mais “cheinhas” podiam ser consideradas as mais belas, porque resistentes. O pintor flamengo Peter Paul Rubens ficou conhecido por suas representações de mulheres mais fofinhas, um ideal de beleza daquela época.

O mitoclasta é um destruidor de certezas. Porque ao desafiar as convicções absolutas, o mitoclasta força a reconsiderar crenças. Mais do que isto, obriga a ver que muitas delas são produtos de contextos históricos específicos e não verdades universais. Outro exemplo daquilo que se insiste ser natural: hoje é comum, em especial entre os políticos de direita, dizer que um casal é formado por um homem e uma mulher. É uma “verdade” destes tempos, mas que logo será engolida pela tempestade da história. Porque tudo passa. Tudo é histórico. 

A função do mitoclasta é desconstruir as ideias de “normalidade” e “naturalidade”, noções quase sempre moldadas por forças históricas e culturais. O mitoclasta é inimigo daqueles que se apegam a simplificações e generalizações, seja à esquerda, à direita ou ao centro. Enfim, nas sociedades hodiernas, tomadas por logros, mistificações e desinformações, o mitoclasta tem o papel de tentar trazer a clareza. É um trabalho difícil. Mas o mundo precisa deles.

É a dança da chuva.


Anna e os Anciãos, de Rubens



2 comentários:

  1. Relativismo no dos outros é refresco. Mas é engraçado pois é possível que em nossa existência veremos a Europa mais conservadora. Com dote, castração de genitália feminina, patriarcado, criminalização das pautas LGBT pois o islã e a Sharia batem a porta. Kkkk
    Acreditar num processo histórico rumo há um progresso sabe lá o que isso significa tb é um mito.

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