quarta-feira, 20 de junho de 2018

O que resta de Junho?


POR CLÓVIS GRUNER
O Facebook me lembra, domingo último (17), que há cinco anos eu era um em meio a multidão da foto que ilustra esse texto. Em Curitiba, a passeata da noite de 17 de junho, uma segunda-feira, foi a maior. Três dias depois, o frio intenso e a chuva dificultaram a presença nas ruas, justamente a data em que as mobilizações atingiram o ápice: em 20 de junho de 2013, mais de dois milhões de pessoas ocuparam praças e logradouros de cerca de 400 cidades em todo o Brasil.

Cinco anos depois, permanece em aberto a interpretação sobre as “Jornadas de Junho”, um indicativo não apenas da pluralidade do movimento, mas da dificuldade de apreendê-lo e situá-lo. Minha intenção é fazer um balanço daqueles eventos a partir de três perspectivas, que se cruzam: conectá-los a contextos mais amplos; analisar algumas de suas singularidades; e, enfim, um breve exame de seus desdobramentos e das distintas e contraditórias apropriações de seu legado.

O gigante acordou? – Apesar de repetido à exaustão, reafirmando a percepção de que Junho foi uma novidade na história política recente, a irrupção de uma força – uma “potência”, se costuma dizer – recalcada e finalmente liberada, há nisso um certo exagero e, em parte, um equívoco. Entre outras coisas, porque sugere serem as “Jornadas de Junho” um evento único e solitário em sua incompreensível singularidade.

Nada mais enganoso. De diferentes maneiras, 2013 se relaciona com uma miríada de eventos que o antecedem e com os quais partilha similaridades: os motins em Los Angeles, em 1992; os levantes na Grécia e nos países árabes, apenas um ano antes; a revolta nos subúrbios parisienses em 2005; ou a Revolta dos Pinguins, no Chile. Mesmo se olharmos apenas o contexto brasileiro, a imagem de um “gigante adormecido enfim desperto” tampouco se sustenta.

De um lado, penso ser importante ler Junho à luz de algumas mobilizações que o antecederam: 2012 foi o ano com o maior número de greves em uma década e meia – 873 registradas pelo Dieese –, organizadas por um sindicalismo que, agastado depois de cooptado pelos governos de esquerda, tentava uma retomada. É nesse mesmo contexto que surge o MTST, e recrudescem os movimentos por moradias e as ocupações urbanas. Em suma, meu argumento é de que a espontaneidade de Junho precisa ser contrastada a movimentos que, em certa medida, contribuíram para sua erupção.

Além disso, desde pelo menos o começo da gestão Dilma, o modelo desenvolvimentista e redistributivo, tônica dos governos petistas, apresentava sinais de desgaste. Quer dizer, tanto quanto sua espontaneidade, a combinação entre mobilizações sociais pregressas e a corrosão do pacto político que sustentou os governos de esquerda (e de certo modo, toda a Nova República), me parece igualmente significativo para entender as “Jornadas de Junho”.

“Anota aí: eu sou ninguém” – Mesmo a juventude, sua principal protagonista, não despertou do sono repentinamente. Foram os jovens, principalmente, os que se solidarizaram com as comunidades indígenas e quilombolas; denunciaram a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; protestaram contra a homofobia, o racismo e a violência policial e, sem cessar, chamaram a atenção para a precarização das escolas e do ensino público brasileiro, por exemplo. O MPL, que convocou as primeiras manifestações, existe desde 2005 e já havia liderado outras mobilizações e ocupado as ruas antes.

A acusação, comum, de que as “Jornadas de Junho” foram a “antessala do golpe”, desconsideram, entre outros, o fato de que, diferente das manifestações pelo impeachment, o perfil socioeconômico de parcela significativa dos manifestantes de 2013 era de jovens estudantes e trabalhadores com renda de até cinco salários mínimos, moradores das regiões periféricas principalmente das grandes e médias cidades, fossem elas São Paulo (onde o movimento começou e ganhou força), Curitiba ou Joinville.

Não surpreende, nesse sentido, que foram o aumento na tarifa do transporte público e a violenta repressão policial que se abateu sobre os manifestantes, os detonadores do movimento. No primeiro caso, os 20 centavos foram o pretexto para exigências maiores – o direito ao transporte público, a mobilidade urbana, a ocupação do espaço público e a humanização das cidades –, com o MPL assumindo uma condição, mesmo provisória, de mediador entre algumas demandas por cidadania e qualidade de vida e as políticas governamentais.

No segundo, a midiatização das mobilizações evidenciou uma realidade vivida diuturnamente por muitos dos manifestantes, militantes ou não: a violência policial, televisionada e flagrada em celulares, cujos vídeos foram compartilhados às centenas, foi a principal responsável pelo repentino e inesperado apoio ao movimento: pesquisa realizada pelo Ibope e publicada no dia 18 de junho, mostrava uma aprovação de 75% dos brasileiros às manifestações. Uma vitória política, mas também uma abertura para entender a emergência das suas muitas contradições.

Nem golpista, mais que potência – No campo da esquerda, principalmente duas interpretações vigoram sobre Junho. Uma delas, já mencionada, vê nas manifestações uma manobra, fruto de uma conspiração intergaláctica cujo propósito final e fatal era o “golpe”. Outra parece acreditar que as mobilizações vagam em um vazio temporal e histórico, pura “potência”.

A primeira defende uma visão teleológica da história no interior da qual, em um tempo homogêneo e vazio, uma linha leva 2013 diretamente para 2016 e o impeachment. Sobra oportunismo político, falta um olhar atento às multiplicidades e contradições. A segunda descola o evento de sua historicidade e evita o olhar ao rés do chão. Nessa perspectiva, ele transita em um vácuo onde, igualmente, não há lugar para desacordos ou ambiguidades. Ambas desconsideram que, a partir de um certo momento, sua apropriação por uma nova multidão, em grande medida avessa inclusive às demandas do MPL, impôs ao movimento uma inflexão em sua trajetória.

Se nos primeiros dias era perceptível uma insurgência de inspiração libertária e anticapitalista contra o Estado, o mercado e as formas tradicionais da política representativa, à medida que as ruas ganham contornos mais difusos, operam-se uma metamorfose e uma ampliação das pautas, que se tornam igualmente difusas. Hoje é difícil negar que, em meio à ruptura ensaiada pelas manifestações, sua apropriação por setores midiáticos e de direita tentou, entre outras coisas, neutralizar as possibilidades de renovação à esquerda que o movimento anunciava. E, ao menos parcialmente, conseguiu.

Um legado contraditório – Nesse sentido, os embates começaram a ser travados no curso do próprio movimento, e as disputas narrativas pelo seu legado são sua continuidade. Se é verdade que são herdeiras das “Jornadas”, por exemplo, as ocupações nas escolas paulistas e paranaenses, também o é que, com muitas mediações, elas franquearam a tomada das ruas pelos grupos que, dois anos depois, pediram o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que suas intenções passassem longe disso – a potência, afinal, não é uma via de mão única.

Em artigo publicado há alguns dias na Folha de São Paulo, Pablo Ortellado observava, acertadamente, que “quase todas as experiências do ciclo global de protestos de 2011-2013 despertaram forças poderosas que abalaram as instituições, mas quase nunca conseguiram lograr as mudanças aspiradas pelos manifestantes”. Junho de 2013 não escapa desse “flagrante descompasso” entre as mobilizações e seus resultados, modestos, afirma Ortellado; contraditórios, completo.

Em alguns países, como na Espanha, o caminho foi construir uma síntese possível entre a utopia libertária gestada pelos movimentos de rua e a institucionalização. No Brasil, estamos imersos em dilemas que impedem mesmo essa alternativa, entre outras razões, porque não há legenda ou liderança partidária capaz de fazê-lo, apesar dos esforços de marinistas. Será preciso, primeiro, superar a turbulência de agora. E ao que tudo indica, isso levará bem mais que os cinco anos que nos separam das “Jornadas de Junho”.

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