POR CLÓVIS GRUNER
Seu nome contava com o aval dos familiares de Ivone Lara e da própria biografada – falecida em abril último, aos 96 anos –, pois o projeto começou a ser concebido na década passada. A justificativa para a investida contra Fabiana foi que, filha de pai negro (e sambista) e mãe branca, ela não é uma “preta retinta”. Ao aceitar interpretar Dona Ivone Lara nos palcos, Cozza estaria usufruindo do privilégio de ter a pele mais clara e contribuindo para a invisibilidade de artistas negros de pele mais escura.
Não vou discutir a cor da pela e a negritude de Fabiana Cozza. Gente mais capacitada e com legitimidade de sobra já o fez, em apoio a ela – Leci Brandão, Chico César, Emicida, além dos familiares e da própria Ivone Lara. Meu objetivo é discutir a violência que tem sido a tônica da atuação de parte da militância, particularmente nas redes sociais, capitaneada por influenciadores e influenciadoras digitais ávidos por likes e novos seguidores.
A quem acompanha a terra quase sem lei que é a internet, não é novidade que parcela da esquerda brasileira que a frequenta, os chamados “movimentos identitários”, se caracteriza pela prática de um policiamento moralista, arrogante e autoritário. Hostis ao diálogo com quem consideram diferentes – e a diferença se tornou evidência e prova de culpa –, são pródigos em apontar inimigos por toda parte, nem que isso signifique produzi-los.
O comportamento é mais abertamente visível nos "influenciadores de opinião”. Com milhares de seguidores alguns deles, eles parecem menos preocupados em abrir espaços de discussão, qualificar o debate público, em suma, desmantelar as muitas estruturas de poder e preconceito que os oprimem, e mais em uma busca incessante por curtidas e comentários elogiosos, pela sensação de que exercem uma influência sobre um número cada vez maior de seguidores.
Há muita preguiça em uma rede de circulação de textos e ideias que, basicamente, se alimenta e retroalimenta de uma maneira autorreferente e autossuficiente. Em um bom número de blogs e perfis de ativistas, não apenas o esforço de leitura começa e termina dentro da própria rede, como se compartilha um tipo de convicção ingênua de que os movimentos negros, feminista e LGBT nasceram com eles. O passado, quando aparece, surge de forma anacrônica, quando não meramente ilustrativa.
Como resultado, se ignora o esforço de construção desses movimentos e as muitas e complexas redes que os ligam a diferentes temporalidades. Dito de outro modo, falta historicidade a uma boa parte dos movimentos e ativistas, que parecem viver em um contínuo presente porque julgam desnecessário inserir sua militância em um tempo mais amplo, que contemple o passado e suas descontinuidades, seus avanços e recuos.
A fixação no presente explica também a arrogância que se expressa em uma espécie de estoicismo vulgar e virtual: na conduta do militante, sempre moralmente certa e reta, não há espaço para a incoerência e a contradição. Esse novo estoicismo, de verniz moralizante, justifica a exposição pública, a desqualificação, o linchamento de quem escapa a ele e a identidade que o define. Lombrosianos redivivos, os militantes identitários atribuem ao seu inimigo um olhar determinista que naturaliza sua diferença, transformada em uma desigualdade irredutível.
Há algumas explicações possíveis para essas condutas. Uma delas é de que, sem vitórias significativas, apesar de algumas conquistas mais ou menos pontuais, e depois de verem suas reivindicações incorporadas, diluídas e, algumas delas, nunca atendidas, por governos de esquerda – a descriminalização do aborto, por exemplo, nunca avançou –, sobrou a esses movimentos a truculência e o extremismo alimentados, ambos, pelo ressentimento.
Tornado afeto central da militância identitária, o ressentimento é potencializado nas redes sociais. Elas permitem que sentenças sejam rapidamente promulgadas e executadas pelos tribunais populares midiáticos, sem o filtro da reflexão mais ponderada, do debate, do enfrentamento de posições, resumindo tudo a acusações que cabem em uma ou duas frases, com algum esforço, em um post. Grosso modo, os movimentos identitários retiveram o pior da justiça tradicional – seu caráter excludente, por exemplo –, sem preservar, no entanto, seus poucos méritos.
Isso não significa renunciar a características que definem, simbolicamente, nosso “lugar” no mundo, nem desconhecer as desigualdades hierárquicas que atravessam as relações entre diferentes culturas. Mas reduzir a identidade a algo absoluto, uno e coeso é perigoso porque, entre outras coisas, incentiva a construção e a percepção do outro como inimigo, tomando-o a partir de uma essência (étnica, religiosa, de gênero, etc.) ela própria artificial – não desempenhamos, socialmente, um papel único, mas múltiplos, plurais e não raro contraditórios papéis.
Um dos custos dessa busca por uma identidade singular e essencialista é o reconhecimento sempre limitado do outro, dificultando as possibilidades do encontro e da troca dialógica a partir de características mais ou menos comuns. E se Sen associa esse movimento em especial aos grupos e ideias nacionalistas de cunho mais conservador, no Brasil tem sido principalmente parte da esquerda a desempenhá-lo.
Os ataques contra Fabiana Cozza são apenas o mais recente, mas não o primeiro e, desconfio, nem o último caso de violência simbólica, protagonizado pelas redes de militância em nome da identidade e reivindicando, como justificativa, o combate à discriminação e suas consequências. Não há dúvidas que denunciar e combater as diferentes formas de preconceito e suas muitas violências é uma tarefa ética e política das mais urgentes.
Mas se a intenção é realmente desmantelar as estruturas profundas que os produzem e reproduzem, a militância identitária poderia tentar substituir a estratégia do linchamento e da desqualificação pelo confronto e a crítica capazes de forjar alianças, por exemplo, ao invés de se fecharem e cerrarem possibilidades de diálogo. Afinal, o ativismo identitário, suponho, sabe quem são seus verdadeiros inimigos.
Mas a enfrentá-los, inventa novas monstruosidades e produz novos inimigos a serem combatidos e linchados publicamente, em uma sanha persecutória e punitivista que condenamos quando vem da direita ou do Estado. E supõe, ou simplesmente finge supor que, com essa prática lamentável em que se cruzam egos, ressentimentos e disputas mesquinhas por nacos de poder, está de fato tornando esse mundo um lugar mais suportável. Mas não está.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário não representa a opinião do blog; a responsabilidade é do autor da mensagem