quinta-feira, 23 de junho de 2016

A “Escola sem Partido” é uma farsa












POR CLÓVIS GRUNER

No dia 26 de janeiro deste ano, Miguel Nagib, advogado, fundador, presidente e um dos principais ideólogos da organização “Escola sem partido”, entrou com representação na Procuradoria Geral da República contra o presidente do INEP por “crime de abuso de autoridade e ato de improbidade administrativa”. O motivo alegado foram as ilegalidades contidas no edital do ENEM/2015, mais especificamente das regras pertinentes à redação, cujo ponto foi a violência contra a mulher. Hábil, Nagib optou pela dissimulação: ao longo das pouco mais de 12 páginas da peça jurídica, dirigiu sua argumentação contra a afirmação do presidente do INEP de que seria atribuída nota zero à redação que desrespeitasse os direitos humanos, segundo o ideólogo, um “crime de abuso da autoridade, previsto na Lei 4.898/65”. Nenhuma menção direta à redação e seu tema. 

Na página da ESP, a notícia de que o Ministério Público determinou o arquivamento da representação vem ilustrada com a imagem icônica de representação da censura: visivelmente à força, mãos silenciam uma boca que não pode falar e impedem, também violentamente, os olhos de ver. A mensagem não podia ser mais clara: de acordo com a ideologia da ESP, o respeito aos direitos humanos – no caso específico, o repúdio à violência de gênero – é um ato de cerceamento à “liberdade de consciência e de crença”, que obrigou candidatos a vagas nas universidades a “dizerem o que não pensam”, como por exemplo – e é lícito supor –, que a violência contra a mulher é aceitável.

Há inúmeros exemplos como esse no site da entidade cujo propósito é lutar contra o que chama de “doutrinação ideológica” em curso nas escolas brasileiras. Entre as medidas sugeridas, além da ideologia policialesca que pressupõe ser todo professor um criminoso potencial, a organização oferece um modelo de Projeto de Lei a ser reproduzido sem muito esforço – na verdade, sem esforço algum – por qualquer legislador Brasil afora, bastando inserir ao texto original data e lugar. É este molde padrão que a vereadora e pastora Léia (PSD) usou para apresentar, na Câmara de Vereadores de Joinville, o Projeto de Lei 221/2014, que institui na cidade o “Programa Escola sem Partido”.

O assunto já foi discutido aqui em textos assinados por José António Baço e Thiago Corrêa, mas é preciso voltar a ele não apenas mais uma, mas quantas vezes forem necessárias. A inconsistência do PL 221/2014 aparece já na argumentação que o justifica: de acordo com a proponente, o objetivo é “garantir a neutralidade política, religiosa e ideológica” e, ao mesmo tempo, “a pluralidade de ideias nas escolas municipais de Joinville.”. Bom, ou bem se é neutro, ou bem se é plural, porque morno eu vomito, parafraseando aquele barbudo em nome de quem a vereadora Léia legisla. Ser ao mesmo tempo duas coisas antagônicas e excludentes é bastante difícil. Mas a contradição não é o único nem o maior problema do projeto e da escola que ele pretende parir.

Alguma grana e muita ideologia – Pouco se fala da enorme coincidência entre a criação da ESP e uma verdadeira batalha travada em torno ao negócio de livros didáticos, em meados da década passada. Mas ela é uma das peças fundamentais para se entender a visibilidade adquirida pela entidade e seus ideólogos nos últimos anos, e que surge na esteira do interesse de grandes editoras, como a nativa Abril e a espanhola Santillana, em abocanhar uma fatia de um mercado altamente lucrativo, responsável por aproximadamente 50% do faturamento da indústria editorial brasileira. Lucro, aliás, em parte garantido graças aos vultosos investimentos públicos: iniciativas como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), respondem por cerca de 25% das receitas do setor. 

Como sói acontecer em nosso liberalismo tão singular, também o mercado de livros didáticos se configurou, principalmente nas últimas duas décadas, excessivamente dependente do Estado, além de monopolizado por grandes grupos econômicos. Entre outros meios de pressão cujo objetivo era tirar do mercado as pequenas editoras, tais grupos passaram a se valer das mídias a eles associadas para questionar a qualidade dos livros didáticos e, em seguida, a co-participação dos governos no financiamento de material “ideológico” e “doutrinário”. Não sei se fruto ou não de uma ação coordenada, mas a criação da ESP, em 2004, amplia esse debate, ao mesmo tempo em que desloca o foco dos interesses mercadológicos e econômicos para uma iniciativa de caráter civil e autônoma de “estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”. Nada mais enganoso.

A principal estratégia da ESP é apostar na ignorância não apenas intelectual de seu público – a esmagadora maioria dos que denunciam a “doutrinação ideológica” ou vociferam contra Paulo Freire não fazem a mais pálida ideia do que dizem –, mas também empírica. Não há, da parte dos ideólogos por trás da entidade, a preocupação em mostrar dados estatísticos que suportem afirmações como “um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra (...) para impingir-lhes [aos alunos] a sua própria visão de mundo”; ou “a imensa maioria dos educadores e das autoridades, quando não promove ou apoia a doutrinação”; ou ainda que “a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários” é um “problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras”.

Não há informações precisas porque elas não são necessárias. Trata-se de criar um clima de paranoia generalizada e, nesse caso, quanto mais genérica a afirmação, mais eficiente ela é. E se já é duvidoso apresentar o excepcional como normal, tática amplamente utilizada, a ESP vai mais longe. As “provas” de que estamos diante de “um exército organizado de militantes travestidos de professores” a deturpar seus alunos são sempre fragmentárias: um recorte de revista utilizada em uma aula; uma ementa, unidade ou tópico de um programa disciplinar; o depoimento de um ou uma estudante que se sentiu prejudicado. Não há contexto, nem verificação, nem acompanhamento, tampouco diálogo. Nada. A ESP não é apenas desonesta, mas perversa: ela fabrica a exceção que tratará, em seguida, de apresentar como regra; regra que servirá de prova a justificar e sustentar seu empreendimento policialesco, moralizante e ideológico.

Uma escola plural não pode ser neutra – No começo desse texto anotei a contradição na justificativa da vereadora Léia, querer ao mesmo tempo uma escola “neutra” e “plural”. Na verdade, me enganei: há nesse desejo duas contradições. A primeira de ordem, diríamos, ontológica: não é possível ser neutro porque o simples ato de estar no mundo já pressupõe uma tomada de posição. A contradição é maior porque, justamente, a legisladora pretende uma escola “neutra” como condição à afirmação da “pluralidade de ideias”. No bojo dessa reivindicação está o temor, alimentado especialmente entre grupos e indivíduos religiosos e conservadores, de que a escola desvie seus alunos das condutas e educação familiares. 

De acordo com essa argumentação, pais e mães tem o direito de exigir que professores e professoras não ensinem aos seus filhos e filhas nada que contrarie seus próprios valores. Mas eles não tem. Pais e mães tem o direito de exigir a qualidade no ensino, o acesso universal à sala de aula e de que a educação seja, de fato, um direito de todos e todas, por exemplo. Pais e mães tem o direito de reivindicar e exigir escolas estruturadas, equipadas e habitáveis; profissionais (professores, pedagogos, técnicos, pessoal administrativo e de apoio) valorizados e bem pagos; uniforme, material escolar e merenda garantidos pelos governos; esportes e atividades culturais no espaço escolar; escolas em período integral e abertas à comunidade nos finais de semana, etc... 

Mas não, pais e mães não tem o direito de exigir que a sala de aula seja uma extensão do espaço doméstico e por uma razão, entre outras. As escolas, mesmo as privadas, são parte da esfera pública, e seu papel, além de apresentar o aluno ao chamado saber formal, é ampliar o conhecimento e a compreensão que ele tem do mundo, complexificar e não simplificar a sua existência. O convívio no espaço público favorece e estimula a interação e a sociabilidade com indivíduos, grupos, valores e crenças que não os familiares, e isso é fundamental para o amadurecimento ético, o desenvolvimento intelectual e a um exercício mais pleno, livre e crítico da cidadania.

Não é casual que nenhuma das exigências acima está na pauta da ESP. À entidade, seus ideólogos e defensores a precarização da escola e do ensino nunca foi um problema a ser denunciado e combatido. Mas a ampliação dos direitos, liberdades e igualdade civis, sim. Eles temem uma sociedade mais plural e sensível às diferenças e a diversidade, sejam elas étnicas, religiosas, de classe ou gênero, e sabem que uma escola e uma educação de qualidade são condições imprescindíveis para a construirmos. Por isso a Escola sem Partido, seus ideólogos e defensores, querem uma escola precarizada, sucateada, abandonada e “neutra”. A ideologia por trás desse discurso é perversa, autoritária e violenta. A quem preza e deseja a democracia e a liberdade, resta resistir a ela. 

17 comentários:

  1. Para saber se sua ideia é adequada e vai funcionar faça um teste simples, lance-a aos “intelectuais” de esquerda: se houver contestação por parte deles, não se preocupe está seguindo o caminho correto.

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  2. Muito bom que os professores ativistas se sentem incomodados com isto :)

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  3. Interessante o argumento (sic) dos anônimos. Estupro me incomoda. Violência contra a mulher me incomoda. Racismo me incomoda. Homofobia me incomoda. Pobreza e miséria me incomodam. Corrupção e impunidade me incomodam.

    Mas, segundo os ilustríssimos 09:11 e 09:59, como sou de esquerda, tudo isso é joinha, joinha, e o pessoal está no caminho correto.

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    1. Errado Clovis, ele falou ntelectuais..

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    2. O comentário se refere a "intelectuais" assim, entre aspas, e acrescenta: de esquerda. Não vejo onde o erro.

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  4. Para muitos brasileiros é "inaceitável" que o ensino escolar público ou privado acolha e expresse a real diversidade da sociedade brasileira, promovendo maior conhecimento e respeito por aquelas classes de pessoas historicamente escravizadas, oprimidas, excluídas, humilhadas, discriminadas, violentadas, ofendidas, ou simplesmente "esquecidas". Dizer que fazer isto nas escolas é coisa da "esquerda" ou política educacional de algum "partido" em particular, é o mesmo que dizer (e confessar) que a "direita" e "outros partidos" não têm nenhum interesse em promover maior conhecimento e respeito por estas "classes" pessoas. Muito interessante esta confissão, implícita em alguns comentários. Muito interessante.

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  5. Para quem argumenta daquela maneira pedestre, é apenas coerente que apoiem esses temas que nos incomodam.

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  6. Como é cômodo esconder-se no anonimato. A maior parte dos defensores dessa ideia bizarra não tem base empírica nenhuma para falar. Não frequenta o chão de sala de aula, desconhecem a realidade escolar. Sou professor contratado há alguns anos e isso tem me proporcionado passar por inúmeras escolas em Joinville. já dei aulas em dezenas de escolas municipais e estaduais. Esse projeto é mais um atentado contra a nossa profissão. Abaixo a lei da mordaça! E parabéns pelo primoroso texto. Há muito pouco a acrescentar.

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    1. Ops. O comentário ficou sem perfil. Prof. Izaias Freire

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    2. Cuidado! Alguns anônimos vão dizer que você é da família do Paulo Freire e apoia a doutrinação marxista do MEC.

      Tem cada um que aparece por aqui...

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  7. Parabéns, Clóvis, pelo excelente texto. Acho primoroso e estimulante a capacidade que algumas pessoas têm de embasar suas idéias a partir de dados técnicos e de realidade. Assim a discussão torna-se construtiva e enriquece as idéias, mesmo que algumas sejam divergentes. Me entristece muito a quantidade de anônimos que, baseados em sabe-se lá o que (talvez interesses pessoais ou uma vida de benesses e privilégios), continuam se utilizando de jargões sem fundamento e sem senso de realidade. Talvez sintam-se perdendo espaço, já que insistimos no desenvolvimento do senso crítico da população que não recebe privilégios... estimulando a ignorância e o pensamento mediano, para não dizer medíocre, estão começando a se sentir solitários, fazendo um grande esforço para o rebaixamento crítico social. Isto é, nivelar por baixo. "Em rio poluído, o que bóia cheira mal, e isso está pra lá de fétido".

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  8. Salve, Zé!
    Obrigado pela leitura. Sim, também acho importante seguir insistindo no desenvolvimento de um pensamento que não seja o de manada, e acho que uma escola plural é uma das condições pra isso.

    Sobre os anônimos, tenho algumas hipóteses sobre a epidemia deles nas caixas de comentários de blogs e sites de notícias. Uma delas concorda com a sua: eles temem o novo, porque de alguma maneira a mudança, qualquer mudança para melhor, os ameaça.

    Abraços.

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  9. Falou e disse, com propriedade e muita lucidez.

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  10. Pode-se usar o verbo "costumar" ao invés do esquisito "soer". Mas se você prefere usá-lo assim mesmo, na terceira pessoa do presente do indicativo deveria ser "Como SÓI acontecer em nosso liberalismo...". Fica a dica.

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