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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A “ideologia de gênero” e a legitimação da violência

POR CLÓVIS GRUNER
A América Latina, de acordo com relatório da ONU Mujeres, é o local mais perigoso para as mulheres fora de uma zona de guerra: em 2017 foram cerca de 2,5 mil mortes causadas por violência de gênero. Com 1.133 assassinatos – uma média de três por dia – o Brasil contribuiu com quase metade dessa cifra. Poucos desses crimes mereceram alguma cobertura midiática; a maioria ficou relegada às estatísticas.

O mesmo levantamento reitera o que já é de conhecimento mais ou menos comum: na maioria dos casos de violência física ou sexual contra mulheres, o responsável é alguém conhecido ou mesmo íntimo – vizinho, namorado, noivo, marido, padrasto, pai – e o abuso acontece dentro de casa ou em ambientes familiares, não raro com a conivência de pessoas próximas.

É o caso, por exemplo, do estupro. No Brasil, foram mais de 60 mil registrados no ano passado, uma média de 164 por dia, um a cada dez minutos. Mas é bastante provável que a incidência seja maior porque, por diferentes razões, o estupro é um dos crimes com o maior índice de subnotificações, e boa parte deles nem mesmo chega ao conhecimento das autoridades policiais.

Não é muito diferente quando o assunto é pedofilia. Em 2016, cerca de 13 mil menores foram vítimas de abuso sexual, a maioria, como nos casos de estupro, dentro de casa ou em ambientes conhecidos, perpetrados por familiares ou pessoas próximas. Apesar da campanha de difamação promovida pelos milicianos do MBL, o senador Magno Malta e por pastores fundamentalistas, não há registros de pedofilia em exposições, performances artísticas e em museus.

As violências homofóbicas – Além disso, seguimos sendo, entre os países considerados democráticos, um dos que mais mata sua população LGBT. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2011 – ano do último levantamento do órgão federal – cerca de 19 violações aconteceram diariamente em todo o pais. As estatísticas se referem às agressões notificadas, mas é provável que a incidência seja maior.

Os números são também assustadores no que se refere ao assassinato de LGBTs: em 2011, foram registradas 266 mortes; levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia para 2014, registra um aumento significativo, totalizando 326 assassinatos. No ano passado, esse número saltou para 445 vítimas. O número é maior entre a população gay masculina, seguida de perto pelos travestis. Confundidos com gays, nos últimos anos cerca de 20 homens heteros foram assassinados.

Apesar da posição oficial de entidades como a OMS e o Conselho Federal de Psicologia, a homossexualidade ainda é vista e tratada como doença por alguns profissionais de saúde, e não é tão incomum encontrarmos quem faça carreira alardeando e vendendo a “cura gay” em consultórios e clínicas particulares. Não me parece despropositado afirmar que o índice desalentador de suicídios entre jovens gays seja, em parte, resultado dessas muitas formas de violência simbólica.

E elas são, de fato, muitas: LGBTs são preteridos ou demitidos de empregos; constrangidos em lugares públicos e hostilizados quando demonstram afeto; expulsos do convívio familiar e de amigos; ridicularizados por programas de humor e humoristas politicamente incorretos; desrespeitados em ambientes públicos. Pesquisas recentes mostram que o bullying homofóbico nas escolas colabora para elevar os índices de repetência, evasão escolar e suicídio entre adolescentes.

Problemas de gênero – Diminuir essas estatísticas não é tarefa fácil, e demanda um esforço coordenado e articulado de diferentes grupos e instituições, a começar pelo Estado. Um ambiente onde discussões sobre gênero vicejassem de forma aberta e em espaços públicos como as escolas, deveria ser condição fundamental. Mas se avançamos muito pouco mesmo em governos considerados progressistas, com a eleição de Bolsonaro e o fortalecimento de movimentos reacionários como a “Escola sem Partido”, estamos a trilhar o caminho de volta.

Na semana passada, um deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro – o mesmo que, nas eleições, rasgou uma placa em homenagem a Marielle Franco – invadiu uma escola em Petrópolis e ameaçou sua diretora. Em Minas Gerais, a Promotoria de Defesa dos Direitos das Crianças entrou com um processo contra o Colégio Santo Agostinho, de Belo Horizonte, por suposta adoção da “ideologia de gênero” no currículo escolar. Na segunda (26), o MP pediu a suspensão da ação, sob a justificativa de que a atribuição caberia à Promotoria de Defesa do Direito à Educação.

Na prática, a suspensão é provisória, válida até que a Procuradoria-Geral decida se a ação deve ou não ser objeto de intervenção do MP e, se for o caso, qual promotoria será responsável por ela. O texto da PDDC, uma peça em que o obscurantismo e a ignorância caminham juntos, serve apenas como o exemplo mais recente de uma sequência de ataques desferidos contra a escola, a educação e os docentes; mas não será o último.

Contra direitos e liberdades – Mentiras repetidas inúmeras vezes não viram verdade, mas atendem e cumprem propósitos e objetivos perversos. Com a “ideologia de gênero” não é diferente. Ela é o pretexto para desviar a atenção de problemas que de fato afetam a educação e demandam medidas e investimentos urgentes. Com professores equiparados a abusadores e estupradores – a analogia é de Miguel Nagib, criador e ideólogo da “Escola sem Partido” –, não é preciso encontrar outras razões, que não os próprios docentes, para explicar a suposta falência de nosso modelo de ensino.

Mas há outras razões além dessa mais imediata. Surfando na onde do anti-intelectualismo mais grosseiro, e desconsiderando e depreciando estudos científicos e acadêmicos sobre o tema, a propagação da “ideologia de gênero” funciona como uma espécie de slogan que catalisa manifestações contrárias a ações pedagógicas de promoção dos direitos sexuais, ao enfrentamento dos preconceitos, a prevenção de violências e o combate à discriminação de gênero.

Um dos objetivos é recuperar o espaço e o poder das igrejas em sociedades que atravessam processos de secularização, e ao mesmo tempo conter o avanço de políticas de garantia ou ampliação de direitos e buscando restaurar, por um discurso que os naturalizam, os modelos ditos tradicionais de família e sexualidade. Que isso seja feito tendo como base um pânico moral que recrudesce a violência contra grupos socialmente marginalizados, pouco importa. A ordem, afinal, é que eles se submetam à maioria. Ou desapareçam.