O whataboutism é uma das coisas mais irritantes nestes tempos de redes sociais. E o pior é ser uma tática usada tanto pelo pessoal de esquerda quanto de direita (porque, afinal, a chatice não tem lado).
Não sabe o que é? Ora, o whataboutism é uma técnica de “argumentação” usada para desviar a atenção de um assunto em discussão. Ou seja, a ideia é mudar o foco da conversa, tentando apontar uma hipocrisia do interlocutor.
Como funciona? Através da introdução de um contra-argumento relacionado a outro tópico, com o objetivo de descreditar ou desviar a crítica original. Para trazer o tema mais para perto da nossa realidade, podemos lembrar o célebre “e o PT?”.
A expressão tornou-se um meme popular no Brasil durante o período eleitoral de 2018 e ainda persiste. Os opositores do Partido dos Trabalhadores (PT) respondiam a críticas usando essa caricatura de argumento.
O problema é maior. Se o “e o PT?” é uma expressão ligada à direita brasileira, também a esquerda tem a sua quota-parte na difusão do whataboutism. É só ver o caso da guerra na Ucrânia. Você diz:
- A Rússia de Putin é o estado invasor.
Ao que os defensores do ditador russo respondem:
- E a OTAN, hein?
Aliás, isso remete para a etimologia da palavra. Ao contrário do que muita gente pensa, o termo é antigo e não surgiu com as redes sociais. Apenas foi intensificado. O whataboutism surgiu durante a Guerra Fria como uma crítica aos argumentos da União Soviética que consistiam em responder às acusações ocidentais com perguntas como “e sobre...?" ou “e quanto a...?".
O fato é que essa tática tem o poder de matar o debate logo à partida. É a ferramenta dos intelectualmente despreparados. O mais trágico é que, pela baixa qualidade de pensamento nas redes sociais, é impossível escapar ao whataboutism.
O aparecimento da tal “escola sem partido” (em
minúsculas) deve ser um dos episódios mais sombrios da história recente do
Brasil. E olhem que o páreo é duro, porque nos últimos tempos o país tem
caminhado a galope para o obscurantismo. Os conservadores alegam a existência
de uma suposta “doutrinação ideológica” de esquerda nas escolas. E o que
propõem em substituição? Ora, uma doutrinação ideológica da direita mais
atrasada.
Os conservadores vivem um transe que os leva rejeitar
tudo o que aponte para a razão, para as luzes, para o esclarecimento (por
iliteracia política, confundem pensamento racional com “esquerda”). Não vamos
esquecer que os modelos de ensino atuais são, em grande medida, herdeiros do
ideário do Iluminismo, que, no seu momento original, falava no uso da razão
para fazer evoluir a vida das pessoas. “Tem coragem para fazer uso da tua
própria razão”, disse Kant.
Há muita gente a rejeitar a proposta de “escola sem partido”, sob
o argumento de que é uma tentativa de impor o pensamento único. Discordo. O que
está em jogo é a simples rejeição do pensamento. Ou, passe o trocadilho, a
tentativa impor um único pensamento: atacar o que consideram ser a tal
doutrinação de esquerda. Mas não estamos a falar da esquerda corporificada num
conjunto de ideias. A esquerda dos conservadores é apenas um monstro criado
pelas suas mentes supersticiosas.
O “escola sem partido” tem um site muito completo. Não
é preciso aprofundar a navegação porque as coisas saltam aos olhos. Há uma
rubrica chamada “flagrando o doutrinador” que, com quase duas dezenas de
“ensinamentos”, estimula o espírito delator dos estudantes. Ou seja, ensina a
ser dedo-duro. Mas quem pode criticar algo que está em plena sintonia com a
realidade brasileira? A delação é premiada e os delatores viram heróis
nacionais. Faz sentido. É quase um ensinamento de carreira.
Mas não estamos a falar de dedos-duros quaisquer. O
site tem outro link chamado “planeje sua denúncia”, onde ensina uns
truquezinhos que permitem aos alunos denunciar professores com método. E o mais
importante: em segurança e sem correr riscos de passar por um acareamento. “Esperem, se necessário, até sair da escola ou da faculdade. Não há
pressa”, ensina o site. O dedo-durismo é um prato que se come frio.
Enfim, a “escola sem partido” parece propor uma versão tupiniquim da Caça às
Bruxas.
Mas o ponto alto do site é mesmo o filme apresentado
como o “tema musical da educação brasileira” (no final do texto). E qual é a música? Uma paródia de
“A Banda”, de Chico Buarque (ironia das ironias). Mas a coisa fica ainda mais
emocionante. Porque o argumento é de autoria do grande pedagogo Danilo Gentili.
O refrão é suficiente para mostrar o que se passa pela cabeça desses grandes
intelectuais: “estava
à toa na classe o professor me chamou, pra me lobotomizar, me transformar num robô”.
A
coisa continua, com frases que servem apenas para ironizar – e rejeitar – nomes
como Marilena Chauí, Mikhail Bakunin, Michel Foucault, Paulo Freire ou o
próprio Chico Buarque, que não levou nada de direitos autorais (“o autor da
paródia se isenta de qualquer remuneração sobre os direitos autorais da mesma”,
explica o texto). Enfim, é um daqueles casos em que só cabe uma definição: é a
ignorância petulante em ação. O problema é que muita gente leva a sério.
O CASO FROTA - A desgraça nunca acaba. Eis uma prova factual – e
cabal – da rejeição do pensamento no Brasil. Em que sociedade civilizada Alexandre Frota poderia ser considerado conselheiro
para a área da Educação? É uma descarada tentativa de doutrinação. Só que a doutrina é
o que há de mais atrasado.
O leitor e a leitora já devem ter visto acontecer aqui no blog (e não só). Tem gente a defender que, por viver em outro país, uma pessoa não pode opinar sobre o Brasil. Mesmo que esteja muito antenada. É uma atitude provinciana e um erro crasso. Maspor sorte há outras pessoas, em número significativo, que aproveitam para a troca de ideias e de intercâmbio de narrativas.
Aliás, no que toca à organização social, política e econômica, por exemplo, as experiências vividas em outras sociedades deveriam servir como alerta para os brasileiros. Porque há situações que vão além do plano teórico e estão a ser vividas pelos analistas nos seus lugares de origem. É o caso do europeus, que neste momento enfrentam a lógica desumanizadora do neoliberalismo.
Quer dizer, os europeus sabem o quanto as políticas neoliberais podem ser ruinosas para os povos. Os brasileiros escaparam disso nos últimos 12 anos. No entanto, há muitos entre os mais velhos que parecem ter esquecido. E os mais novos ainda não sentiram as presas do neoliberalismo na jugular. É por isso que muitos ainda se deixam seduzir pelo canto da sereia neoliberal.
Austeridade. Desemprego. Empobrecimento. Precariedade. Ruína. Desespero. Essas palavras são a luz no fim do túnel neoliberal. É assim na Europa e quem tem noção desse fato – e dois dedinhos de testa – só poder rejeitar essa lógica. Aliás, é algo que venho repetindo aqui, mas que hoje reforço através do sociólogo Boaventura Sousa Santos, outro português (neste caso um português ilustre).
É caso para dizer: faço minhas as palavras do professor da Universidade de Coimbra. Em especial no que se relaciona à candidata Marina Silva, apontada por ele como um desvio da direita para voltar ao poder, uma vez que ela será manipulável. E também quando fala na proposta de independência do Banco Central, que é a regra de ouro do neoliberalismo. "A independência do Banco Central é a regra de ouro de todo o neoliberalismo. Esqueçam políticas sociais, esqueçam educação, esqueçam saúde, esqueçam o que for. A ideia de que há uma independência do Banco Central significa efetivamente que a lógica dos mercados financeiros vai regular as políticas públicas", diz Sousa Santos. E arremata ao analisar a candidata Marina: "A direita não pode voltar ao poder diretamente. Tem que usar um desvio de esquerda. Tem que instrumentalizar alguém para chegar ao poder. O desvio é a Marina, claramente". E mais não digo. O filme com Sousa Santos é suficientemente esclarecedor. Assista, porque são três minutos que valem a pena.
Sou a favor de conviver com pessoas que pensam
diferente. O dissenso é sempre mais instrutivo que o consenso, porque obriga a
considerar o interlocutor. Nunca me importei de partilhar espaços de discussão com quem
pensa diferente. Mas há limites. O problema é que há por aí muita gente que não
simplesmente não pensa.
Tem uns caras que, pela falta de leitura e
incapacidade de sistematizar pensamento, simplesmente limitam-se a repetir
slogans mal-amanhados. E aí não há diálogo possível. Porque o embate entre
argumentos articulados e clichês papagueados é uma injustiça para quem se dá ao
trabalho de pensar.
Pergunto. É possível debater quando as pessoas
usam este tipo de “discurso”?
-Vai para Cuba.
-Bandido bom é bandido morto.
-Bolsa Presidiário: é você quem
paga.
-Vai para a Coréia do Norte.
-É de esquerda, mas usa iPhone.
-Ficou com com pena? Adota um.
-Esquerda caviar.
-Escreve um texto sobre a Venezuela
(esse é um adiantado mental que infesta os comentários aos meus textos).
-Acorda, Brasil.
-Agora tem até Bolsa Prostituta.
-Esquerda burra é pleonasmo.
-É de esquerda porque é um
fracassado.
Há muito tempo estabeleci uma regra pessoal.
Só vou a debate com interlocutores que respeito e que se esforçaram tanto
quanto eu para formalizar pensamento (e isso, garanto, significa ler muito,
comer mundo, procurar a dialética dos fatos o tempo todo). Mesmo assim ainda
era capaz de admitir o convívio com opositores. Só que encheu o saco.
Qual o objetivo deste texto? Nenhum. É apenas
para dizer que a partir de agora passo a chamar os idiotas pelo nome: idiotas.
Reinaldo Azevedo e Joaquim Barbosa devem ser, neste momento, dois dos ídolos mais queridos da direita hidrófoba. O primeiro por causa de um estilo marcado pela pouca cultura, uma enorme truculência e uma indisfarçável raiva de classe (não dá para chamar ódio de classe, porque é patológico e não sociológico). O segundo - talvez involuntariamente - virou queridinho da Reaçolândia por ter mandado engaiolar os caras do mensalão. A popularidade de Joaquim Barbosa entre os conservadores não para de crescer. O delírio é tanto que, imaginem, o homem já foi comparado ao Batman. Santa loucura! Mas tem explicação. É que a direita hidrófoba está louquinha para ver se ele consegue jogar a tarrafa sobre o ex-presidente Lula. O fato é que essa gente, há muito tempo órfã de resultados nas urnas, move-se pela sede de vingança. E espera que o novo ministro do STF seja o instrumento dessa caça ao homem. A torcida é por uma espécie de duelo entre morcego e molusco. Essa sublimação que os conservadores fazem de Joaquim Barbosa é tão insana que já começam a confundir a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obras. Para a direita, Barbosa é uma espécie de super-homem da moralidade. E agora até surgiu uma campanha nas redes sociais a dizer que ele chegou à presidência do STF sem precisar de cotas. Ok... a questão precisa de um esclarecimento. O fato é que Joaquim Barbosa é a favor das cotas. É aqui que os destinos dos dois heróis da direita hidrófoba se cruzam. Mas a coisa fica estranha. O que move a direita não é um ideário político, mas apenas retaliação: se é contra Lula é meu aliado. Quando manifestou apoio às cotas, Joaquim Barbosa foi alvo de duras críticas de... adivinhem quem? Ora, foi o próprio Reinaldo Azevedo, esse oráculo da direita iliterata, a detonar o ministro do STF. No seu entender, o negro e pró-cotas Joaquim Barbosa dividia o mundo entre bem e o mal. O bem do lado dos defensores das cotas, o mal do lado dos opositores. Foi assim, nas palavras do próprio Tiozinho Rei, num texto com alguns meses : - "É surrealista! Qualquer ministro branco que eventualmente se opusesse às cotas, então, estaria, segundo Barbosa, defendendo um interesse pessoal. Já Barbosa, negro e pró-cotas, só tem esse pensamento porque é um amigo da humanidade. O Bem de um lado, o Mal de outro. Conviva sem reação com esses absurdos retóricos e argumentativos quem quiser. Eu não convivo. E não venham com a história de que Barbosa disse ou quis dizer outra coisa. Está tudo gravado. Está lá. Ele disse e quis dizer o que disse".
Pois é, gente. O problema é que os conservadores gostam apenas da espuma dos fatos. E sofrem de uma espécie de glaucoma político: veem apenas o que querem ver, acreditam apenas no que querem acreditar. Em tempo: Joaquim Barbosa tem muito mérito em chegar ao lugar onde chegou. Mas talvez tenha chegado com um atraso histórico. Porque se o sistema de cotas tivesse sido implantado antes, talvez um negro chegar ao cargo não tivesse sido tão demorado.