Por Clóvis Gruner
É ilegítimo, mas não é golpe – O
governo Temer não nasceu de um golpe. Ainda que o impeachment de Dilma Roussef
seja uma verdadeira chicana conduzida para atender os interesses escusos
justamente daqueles que a julgam – e que, não por coincidência, compõem o novo
governo –, nem por isso o termo “golpe” serve para definir o processo movido contra a presidenta, e que culminou com seu afastamento no último dia 12. Não
serve do ponto de vista estrito, como algo desferido de fora e cuja força é externa, já que a articulação para derrubar Dilma foi urdida principalmente desde dentro do governo e de sua base
aliada. Mesmo depois da decisão de romper com um governo
do qual fez parte por mais de uma década, tomada em míseros três minutos, o
PMDB manteve, além do vice, um bom punhado de ministérios. Já que estava em
curso um golpe, seria coerente a demissão dos ministros dissidentes pela
presidenta, o que não aconteceu.
Mas mesmo se a tomarmos em um
sentido mais amplo, a ideia de golpe também é problemática. E não porque o rito seguiu a Constituição, garantindo ao menos formalmente ampla defesa do governo; nem tampouco porque a decisão pela abertura do processo foi votada por ampla maioria na Câmara dos Deputados: quem acompanhou o processo sabe que sua base jurídica, no mínimo frágil, foi ofuscada pelos arranjos e interesses políticos em jogo. Arranjos e interesses de que o governo participou, ao passar meses tentando construir alternativas à sua queda, incluindo negociações
com os mesmos agentes políticos que hoje chama de “golpistas”. E continuariam a
governar com eles se tivessem algo vantajoso a oferecer em troca do voto.
Por outro lado, a narrativa do
golpe traz inúmeras vantagens, a começar pelo fato de que não é necessário um
exame crítico das próprias condutas: um governo e um partido vítimas de um
golpe, afinal, não precisam prestar contas de seus erros. E eles são muitos, a
começar pela forma como o PT não apenas manteve, mas reproduziu as mesmas
práticas fisiologistas de coalizão, incluindo a aliança com o PMDB e o PP (que
já foi PPB, PPR, PDS e, em um passado nem tão longínquo, Arena). Ao mesmo
tempo, foi em
parte para minar o poder peemedebista que PT e governo incentivaram Gilberto
Kassab a fundar o PSD, hoje também um dos principais articuladores do
impeachment. E se hoje há quem se horrorize com os encontros de Temer com
Malafaia, é recomendável não olvidar que a IURD já ocupou acento nas reuniões
ministeriais do governo Dilma, e que a aproximação do PT com as igrejas
evangélicas começou com Lula, que chamou José Alencar para seu vice.
Em 13 anos os governos petistas não avançaram o suficiente, ou
simplesmente não avançaram, em temas fundamentais: o imposto sobre grandes
fortunas; o marco regulatório dos meios de comunicação; a descriminalização do
aborto, a criminalização da homofobia e a legalização das drogas são apenas
alguns deles. A política desenvolvimentista (não confundir com
desenvolvimento), de que Belo Monte tornou-se símbolo, foi priorizada a um
custo social altíssimo, especialmente para aquelas comunidades que vivem à
margem dela. E há as inúmeras
denúncias de corrupção. Se, por um lado, pode-se dizer que as investigações foram
politizadas e espetacularizadas ao extremo, por outro é difícil apostar na
inocência do PT e de algumas de suas lideranças, e acreditar que tudo não passa
de uma grande conspiração da justiça, da mídia e da oposição, quiçá com apoio e
participação internacionais, para perpetrar um “golpe” e voltar a ser governo.
A
meta é não ir pra cadeia – O Ministério de Temer é constituído, à exceção de alguns quadros
do PSDB e DEM, pelos mesmos partidos e políticos que em algum momento dos
últimos trezes anos estiveram no governo ou próximo a ele. Em uma entrevista
concedida quando a palavra impeachment saiu das ruas e adentrou os gabinetes e
articulações políticas da base aliada e da oposição, o agora chanceler José
Serra disse que Temer precisaria montar uma “equipe surpreendente”. O problema
é que, fora Henrique Meirelles (aliás, um dos “homens fortes” da economia na
gestão de Lula), um nome técnico, todos os demais são escolhas políticas, verdadeiras
nulidades nas áreas que irão comandar e, não poucos, estão envolvidos em
escândalos de corrupção, incluindo a Lava Jato.
Não há nada de surpreendente nisso: o governo Temer surgiu para
frear as investigações de corrupção e assegurar a impunidade aos que sempre se
souberam impunes. É um governo feito para livrar criminosos da cadeia e, nesse
sentido, o impeachment foi, fundamentalmente, uma garantia de sobrevivência
política. Os
arranjos começaram a aparecer cedo. Na segunda seguinte (18/4) à vergonhosa
votação na Câmara dos Deputados, o ministro do STF Gilmar Mendes sugeriu, em
entrevista concedida ao programa “Roda Viva”, que Michel Temer poderá ser
absolvido no TSE agora que Dilma, a cabeça de chapa, estava virtualmente
deposta. Trata-se do mesmo ministro que na semana passada, em 24 horas,
autorizou e depois suspendeu o pedido de abertura de inquérito contra Aécio
Neves, do PSDB, pela Procuradoria Geral da República. Há alguns dias a Folha de
São Paulo alertou para o fato de que a meta do PMDB é neutralizar e reduzir os
danos da Lava Jato. Do PMDB e dos tucanos, eu acrescentaria.
A estratégia tem
tudo para dar certo. Além de se apoderar dos mecanismos do Estado, o novo
governo contará com a conivência cínica dos indignados que amassaram suas
panelas e envergaram o uniforme verde amarelo da CBF não contra a corrupção,
mas contra o PT. Além da disposição dos principais setores da mídia a cooperar
com Temer e a nova situação em nome de uma intolerável “conciliação”. Restará,
no parlamento, uma oposição à esquerda minoritária e fragilizada pela derrota,
sem força para fazer frente a um esquema minuciosa e profissionalmente
arquitetado para que tudo volte ao que sempre foi.
Além disso, o novo ministério revela
um governo desconectado não apenas do país, mas do século em que vive. Temer
e seus ministros não se veem à frente nem estão dispostos a governar um país
moderno: plural, multicultural, multiétnico e recortado por diferentes
clivagens (gênero, idade, orientação sexual, etc...). O Brasil do presidente
interino é, fundamentalmente, masculino, branco e hetero, e sua composição diz
muito sobre a sensibilidade social do governo (ou a ausência dela), bem como sua compreensão limitada
do que significa, hoje, democracia. O mais irônico é que, com esse desenho,
estamos mais próximos dos governos ditos bolivarianos, do que dos países norte
americanos e europeus de democracia liberal já consolidada. Mas isso tampouco
importa porque, no fim das contas, a meta não é unificar ou refundar o país: é
simplesmente escapar da cadeia.
A culpa é do PT
e dos “petistas” – A mais nova onda é usar o voto na chapa Dilma
Rousseff-Michel Temer para desqualificar toda e qualquer crítica ao presidente
interino. A lógica do “eu não votei no Temer, vocês sim” não é nova. Ela
atualiza a máxima “A culpa não é minha. Eu votei no Aécio”, corrente antes do próprio
Aécio afundar na lama e os indignados arrancarem os adesivos dos carros e se
justificarem com o bordão segundo o qual eles “não tem bandido de estimação”. Eu
votei em Dilma no segundo turno, e é verdade que
junto com ela ajudei a eleger Michel Temer, candidato a vice em um programa de
governo que a 54 milhões de eleitores pareceu a melhor opção ou, como foi o meu
caso, a menos pior.
Mas
há nessa acusação de “culpa” alguns problemas. Dois mais imediatos. Primeiro, confunde
propositalmente os eleitores de Dilma com “petistas”, como se voto e militância
fossem equivalentes. O segundo: Temer, como acabei de dizer, era o candidato a
vice em um programa de governo com o qual, supostamente, estava comprometido. Caso
assumisse o governo, esperava-se que ele continuasse a implementá-lo. Que ele não
o esteja, reforça o caráter oportunista, desonesto e ilegítimo de seu governo,
além de dar munição a quem defende que o impeachment é, na verdade, um golpe de
Estado encoberto com o manto da Constitucionalidade.
Mas
não é só. Não foram, basicamente, os eleitores de Dilma que tensionaram para um
impeachment que, embora legal, é ilegítimo. Não
foram os eleitores de Dilma, basicamente, os que foram às ruas gritando que
eram “milhões de Cunha” e que permaneceram indiferentes, às vezes
agressivamente indiferentes, sempre que alguém alertava para os riscos de uma
transição abrupta e, insisto, ilegítima como a que está a ocorrer. Então, vamos
deixar claro: nós elegemos Temer. Mas não o fizemos presidente de um governo
que fragilizou ainda mais nossa democracia para, unicamente, proteger e
garantir a sobrevivência política da velha elite.
A falsa polêmica, entretanto, expõe problemas crônicos de nosso sistema político e, mais
particularmente, de nosso modelo eleitoral que, entre outras coisas, promove
uma política de alianças espúria que faz do fisiologismo a regra. Uma das
consequências diretas é, justamente, a ausência de critérios partidários e
programáticos na escolha dos candidatos a vice. Agrava esse quadro o fato de
que no Brasil o voto não é baseado em critérios públicos, mas privados –
vota-se na pessoa, não no partido ou no programa –, o que colabora ainda mais
para não se discutir o lugar e o papel do vice na candidatura e em um eventual
governo.
Em um editorial
bastante duro – daqueles que não se costuma ler na imprensa brasileira –,
publicado na última sexta (13), o inglês “The Guardian” afirma, sobre o
impeachment, que o “que deveria estar em julgamento acima de tudo é o modelo
político brasileiro que falhou”, e não Dilma Rousseff que, de acordo com outro
jornal estrangeiro, o “New York Times”, paga um preço desproporcionalmente alto
pelos seus erros administrativos. Para o “The Guardian”, uma reforma política é não
apenas necessária, mas urgente. E lamenta que o governo Temer seja “muito
duvidoso” para dar esse salto. Eu também.