quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Pinheirinho e o conto de fadas da Constituição Federal

POR GUILHERME GASSENFERTH



A ação de desocupação da posse ou invasão de Pinheirinho, em São José dos Campos, fez-me refletir sobre algumas coisas. E embora alguns possam dizer que minha posição política centrista seja simplesmente uma indefinição entre direita e esquerda, afirmo que deste ângulo é possível ter uma visão menos viciada da política, aliando elementos de ambas na análise.

Primeiramente, é preciso dizer que sou a favor da desocupação, não só neste caso, mas no geral. Creio que o direito da propriedade privada é um dos alicerces de nossa democracia. E invasão depõe contra este direito constitucional. Portanto, as famílias que ocuparam devem sair. Sim, isto poderia ter sido feito já no início da ocupação, quando ainda poucos morassem por lá, mas de todo modo, um erro não justifica o outro.

Alguns veículos de mídia questionaram como pode a justiça determinar a desocupação de um imóvel de Naji Nahas, um malfeitor consolidado, com vários crimes na bagagem, inclusive a sonegação de uma pequena fortuna, pela qual pagamos eu e você. Oras, não importa se é do Nahas ou da Madre Teresa, mas todos estão sujeitos à lei, nos seus direitos e deveres. O fato de ele ser um criminoso não significa que seus direitos de cidadão estejam todos cassados. Não é por ter cometido crimes contra o erário que os cometidos por outrem contra seu patrimônio serão perdoados.

Digo ainda que a ordem judicial deve ser cumprida pela Polícia Militar. Se uma juíza deu ordem de desocupação do imóvel, a PM deve fazer desocupar o imóvel. Não acatar a decisão da magistrada seria também incidir em crime.

Mas há algumas reflexões que desejo fazer sobre estes três itens pontuados nos últimos parágrafos.

A Constituição Federal é nossa lei maior, a que está sobre todas as outras. Contudo, um artigo não tem superioridade ou prioridade sobre outro da mesma lei. Já no artigo primeiro, a CF reza que a República brasileira tem como fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A forma como a PM tratou algumas pessoas na invasão foi digna? Para mim, parece que houve novamente abuso de força policial. Quando vejo fotos de crianças sendo presas, ou ainda leio uma denúncia publicada no UOL de que há vítimas, inclusive crianças, parece-me que a PM foi truculenta e atentou contra o primeiro artigo da CF. Da mesma forma que a propriedade deva ser defendida, também deve ser a dignidade.

Por outro lado, a Carta Magna propõe como direitos sociais do brasileiro, entre outros, a moradia. E prevê um salário mínimo que permita o atendimento das necessidades inclusive com moradia. E onde está a polícia e a justiça para fazer valer, com a mesma intensidade e esforço, o direito do José da Silva de ter sua casinha, previsto na mesma Constituição que dá o direito de propriedade ao Naji Nahas? Nunca vi a polícia invadindo um gabinete de um prefeito ou governador e exigindo com balas de borracha o imediato investimento em habitação.

Há ainda que se pensar que a ordem judicial dada à polícia foi de desocupação, não de brutalidade. Há pessoas justificando os abusos da PM sob a questão do cumprimento da decisão. Repito: sou a favor da desocupação, mas jamais a qualquer custo. Esta deveria ter sido feita com o máximo possível de paz e respeito às partes. Porque a grande maioria das famílias que viviam no Pinheirinho só estava ali porque não lhe foi dada a oportunidade de ter sua própria casinha. Então, assim como houve crime por parte das famílias, há também a culpa do Estado em não ter provido habitação. Ou seja, o Estado além de não prover o que é obrigado ainda pune os oprimidos pela falta de moradia com mais repressão.

Deste modo, soa para mim que existem dois Estados. O da Constituição Federal, ideal e ótimo, e o da realidade, que na inviabilidade de integral cumprimento da CF e tendo que optar por beneficiar uns em detrimento de outros, subjuga-se aos interesses do capital. O Nahas roubou dinheiro suficiente pra comprar galinhas para alimentar uma São Paulo. E tá solto. Mas se o José da Silva roubar uma galinha pra dar de comer pros seus filhos, ele apanha da PM e vai pro xilindró. Por que o direito de propriedade do Nahas prevalece ao de moradia e dignidade do José da Silva? Porque o Nahas tem dinheiro, e o José da Silva não.

13 comentários:

  1. Caro Guilherme, concordo com você na essência, mais precisamente quando avoca o cuidado com a isonomia da interpretação do texto constitucional na aplicação da lei e quando observa o cuidado que deve ser tomado na ação policial. Menciono alguns pontos, entretanto, que acho, devam ser avaliados com cuidado.

    Primeiro, o caso do Sr. Naji Nahas: Ao que me consta, as suas empresas declararam falência e o terreno em questão é propriedade da massa falida, sob a responsabilidade do Estado, e não mais, pelo menos diretamente, do Sr. Naji Nahas. A desocupação, portanto, é de interesse prioritário do Estado em relação aos credores, e não de Nahas, aliás, como já declarou o representante da Justiça - não me lembro o cargo.

    Segundo, o papel do Estado: Não se pode condenar os atores responsáveis pelo efeito, antes de responsabilizar aqueles que foram os verdadeiros causadore do problema. Novamente, estamos diante de uma omissão criminosa de administradores públicos irresponsáveis, especialistas em bombas políticas de efeito retardado, que transigiram, provavelmente por comodismo político, ou puro populismo, quando deveriam ter agido firmemente cortando o mal já na raiz. Onde está o "clamor" pela sua responsabilização?

    Terceiro, o papel da Polícia Militar: À PM cabe fazer cumprir decisão judicial. Não lhe cabe questionar ordens judiciais no mérito de sua conveniência ou legalidade. Pode-se discutir a qualidade da sua ação, coisa, aliás, que o próprio porta-voz da corporação já declarou que vai ser objeto de investigação e punição, se constatado que houve excessos.

    Quarto, o papel do "José da Silva" na questão: Apesar de reconhecermos, todos, que a situação é triste, os invasores, de boa ou má fé, sabiam da condição precária de uma ocupação daquele tipo, portanto, não cabe relativisar a sua parcela de responsabilidade - volto a sublinhar, sem entrar no mérito da qualidade da ação policial, já mencionada acima.

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    1. "(...) os invasores, de boa ou má fé, sabiam da condição precária de uma ocupação daquele tipo, portanto, não cabe relativisar a sua parcela de responsabilidade (...)".

      Como já disse o Felipe em outro post: você realmente não decepciona, Nico.

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  2. O direito à propriedade privada foi defendida (de forma desumana, brutal e ilegal, vamos lembrar) em detrimento do direito à moradia. Qual é mais importante?

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    1. O mais importante é cumprir a lei... quem invade terra não pode reinvindicar "direito de moradia", já que o "direito à propriedade" é anterior. Pode até não parecer justo, mas, em uma sociedade que se quer democrática é o certo.

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    2. Certíssimo. Devíamos começar um movimento para revogar a Lei Áurea. Afinal, ela também feriu de morte o direito sagrado à propriedade.

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  3. O direito a propriedade é a base de nossa sociedade e origina o próprio direito a moradia.

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  4. Eu gostaria que algum dia a justiça mandasse executar, e a PM cumprisse, ato de desapropriação em algum condomínio de luxo construído em área de preservação ambiental e em flagrante ilegalidade. Um só, unzinho, já me bastaria para acreditar na tal isonomia tão propalada quando se defende a desapropriação, violenta, em Pinheirinhos.

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    1. Ok, Clóvis, então vai a pergunta: o que justifica o que? Acho que você deveria exemplificar com um caso concreto. Eu, pelo menos justifico a minha posição com a lei. Como devo entender a tua posição? Que não se cumpra a lei no caso do Pinheirinho porque não se viu aplicá-la em "condomínios de luxo"?

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  5. Certo, Nico, já que você parece não ver diferença significativa entre o que é legal e o que é justo, vamos a lei: a Constituição garante, em seu artigo 5º, inciso XXII, o direito de propriedade. Mas no inciso XXIII, prevê que a propriedade atenderá à sua função social.
    O princípio da função social da propriedade é reafirmado como princípio da ordem econômica e financeira no artigo 170 e os dispositivos constitucionais que tratam da política urbana – artigos 182 e 183.
    Com base na Constituição, portanto, pode-se afirmar que

    a-) a função social remete à própria estrutura da propriedade, e não é apenas um limite ao direito do proprietário.
    b-) o proprietário não deixa de ter o direito ao seu bem, já que a própria Constituição o garante. Mas ela prevê, igualmente, que o interesse público predomina sobre o interesse particular – afinal, nunca é demais lembrar que vivemos em uma república – e o proprietário deve assim utilizá-lo
    c-) se não prevelace o interesse público, o proprietário perde seus direitos como tal, recebendo em troca indenização.

    Trocando em miúdos, Nico: direito à propriedade e função social da propriedade são elementos indissociáveis, de acordo com a Constituição.

    Sobre o caso Pinheirinho, duas coisas ainda:
    a-) interesses privados e do Estado se sobrepuseram aos interesses e necessidades coletivas e sociais, contrariando portanto determinações legais, porque constitucionais.
    b-) a reintegração, violenta, não era nem de longe a única solução ao problema; entre outras possíveis, a União tinha o poder de desapropriar a área, indenizando seu proprietário e dando ao terreno e seus moradores outro fim que não o horror que se viu. Faltou vontade político do governo federal, que se omitiu, e é quase tão responsável pelo horror que assistimos em nome da lei, quanto os governos paulista e o de São José dos Campos.

    E enfim: houve um tempo em que eramos mais discretos. Hoje, defende-se o horror, a violência, a barbárie e a injustiça como se a vida de milhares não valesse absolutamente nada. Bom, dependendo do ponto de vista, talvez não valham nada mesmo. Tempos sombrios este em que vivemos.

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  6. Reproduzo o comentário de Daniel Campos, no blog do Nassif sobre o caso do Pinheirinho, que é muito oportuno sobre a Justiça no Brasil:
    Justiça - a genuína justiça - não é aplicar cegamente as leis em uma visão preto-e-branco do mundo.
    Não, justiça de verdade é ponderar sobre cada decisão, para isso que serve um juíz.
    Dando um exemplo da forma mais clara que for possível: Digamos que tenho dois casos aonde devo decidir se devo ou não aplicar a lei de reintegração de posse.
    No primeiro, depois de escutar as partes descubro que o "invasor" é um sujeito que decidiu tomar posse da casa de um terceiro, e ao obter os detalhes vejo que o invasor não teria nenhuma justificativa para fazer isso.
    E no segundo caso, depois de escutar as partes descubro que o "invasor" é um sujeito que decidiu ocupar um terreno aonde não tinha nada, e ao obter os detalhes vejo que ele fez isso por não ter para onde ir.
    Porquê eu deveria aplicar a lei de reintegração de posse da exata mesma maneira nos dois casos?
    No primeiro há uma evidente má fé do "invasor", enquanto que no segundo o "invasor" o fez por não ter opção. Porquê eu deveria tratar os dois da exata mesma forma?
    Juíz existe exatamente para isso: Para ser JUSTO ao aplicar a lei. E nem preciso mencionar o caso sempre esquecido mas fundamental de que muitas das nossas leis são inerentemente injustas, e aplicá-las ao pé da letra é que seria a verdadeira injustiça.
    E porquê a nossa "casa grande" tão raivosamente insiste que as leis devem ser seguidas à ferro e a fogo, ao pé da letra? Porquê - surpresa! - elas são feitas para beneficiar a "casa grande" e manter a "senzala" na linha.

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  7. A má fé é ponto chave em situações do tipo.

    Fora isto, a eterna questão do positivismo jurídico, que, na prática, ante delineamentos jurisprudenciais até mesmo do STF (guardião da Carta Magna), faz com que a visão/interpretação do Clóvis, embora bela, seja ingenua e infantil.

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  8. Pois é, nada ingênua é a secretária estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania (puta ironia isso) do estado de São Paulo, Eloísa Arruda. Perguntada por um repórter do Estadão se houve excesso policial, ela respondeu simplesmente: “Não estou lá para saber”. Taí um realismo que a "direita clássica" brasileira respeita e muito.

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    1. Muito idiota esta secretária se disse isto. Os idiotas, por sinal, não brotam a partir do credo, da ideologia ou algo que o valha. Estão por toda a parte.

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