sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O perigo oculto de Joinville

POR GUILHERME GASSENFERTH

Joinville parece viver dias de notícias gloriosas em vários campos, notadamente o econômico. A revista Exame noticiou que a região polarizada por Joinville terá um dos maiores crescimentos econômicos do Brasil nos próximos anos. Recebemos notícias de novos investimentos com freqüência, quiçá até a vinda de uma famosa e importante montadora de veículos alemã! Nosso IDH é um dos melhores do Brasil, embora não sejamos na prática uma “Nossaville” plena.

Na área de educação, igualmente boas notícias se repetem. As escolas de Joinville destacam-se em premiações e índices de qualidade na educação, em âmbito estadual e até nacional. É claro que há também muito por fazer, a exemplo das escolas interditadas. No ensino superior, há vagas sobrando, novos cursos e novas instituições de ensino chegando à cidade, algumas renomadas, a exemplo da PUC e da UFSC, que se somam a outras boas universidades e faculdades de Joinville. Numa análise superficial, parece que estamos bem supridos! Quem debruçar-se com mais cuidado nesta seara verá que a situação pode não estar tão confortável.

Cursos ligados à gestão, engenharia e direito pululam das fileiras acadêmicas. Há mais vagas que alunos. É bem verdade que a necessidade de engenheiros e técnicos é maior que o número previsto de formandos, e certamente Joinville viverá um apagão de mão de obra qualificada em contraste ao boom econômico que se prevê. Por outro lado, parece-me que passaremos também por uma escassez de pensadores, intelectuais, estudiosos dos seres humanos e suas representações sociais, culturais e artísticas.

Naturalmente, não é necessário freqüentar os bancos universitários para ser um pensador ou um artista. Mas o fato é que Joinville está incipiente e muito aquém do necessário no que tange a cursos superiores na área de humanas ou artes e cultura.

Temos um sítio arqueológico privilegiadíssimo, com um museu de referência mundial, mas por que não um curso de Arqueologia? Somos a “capital mundial da dança”, ou qualquer seja a esfera da megalomania, mas não temos graduação na área. Não há cursos de Cinema, Artes Cênicas, Música, História da Arte, Artes Plásticas... apenas um curso de Artes Visuais, que provavelmente luta para se manter aberto.

Imaginar um curso de Museologia seria piada de mau gosto numa cidade cujos museus são interditados pela Vigilância Sanitária. A Secretaria municipal de Educação, em iniciativa louvável, quer fazer de Joinville a Cidade dos Livros, mas se a própria biblioteca pública é provisória, o que dizer de um curso de Biblioteconomia?

Não há graduação convencional em Ciências Sociais, Sociologia ou Antropologia numa região onde vivem mais de um milhão de seres humanos. Está sobrando o objeto de estudo e faltando estudiosos! Ciência Política e Administração Pública viriam a calhar na Prefeitura, Câmara de Vereadores e outros órgãos públicos. E o que dizer do Serviço Social? Será que estamos tão bem assim para não precisarmos de um curso importante como este?

Há uma lógica perversa que alimenta esse abismo de humanidade que nosso ensino superior vive (se é que se pode usar uma palavra como “viver” para descrever nossa situação): a mercantilização acadêmica. Curso bom é curso que dá lucro ou alimenta a mão de obra que as empresas precisam. O curso da UFSC foi definido em parceria com entidades empresariais. O resultado não poderia ser outro: engenharia.

Entendo que as faculdades privadas tenham no lucro sua finalidade, mas o que dizer da UFSC e UDESC, públicas, e da Univille, comunitária? Sei que esta última já tem dificuldade de manter alguns cursos pouco comerciais, como as licenciaturas, mas está na essência do ser comunitário possuir cursos voltados à área de humanas e artes!

No caso da UFSC e Udesc, não há justificativa para não termos por aqui cursos que são oferecidos em Florianópolis, como Artes Cênicas, Cinema, Filosofia, Ciências Sociais, Serviço Social, Música, Biblioteconomia etc. Nossa vocação é tecnológica, compreendo. Todavia é preciso lembrar que por trás de qualquer tecnologia há o ser humano, e com ele, há relações sociais.

Precisamos ser uma cidade onde as máquinas estejam a serviço dos homens e onde haja uma sociedade saudável. É aqui que mora o perigo: as relações sociais e humanas desequilibradas geram violência, pobreza, marginalidade, desestruturação familiar e outras mazelas que ninguém quer para sua cidade.

Talvez o primeiro curso dentre os que certamente faltam à nossa Joinville é o de Filosofia. Quem sabe assim formaremos o “amigo do conhecimento” que vai perceber que a situação aparentemente confortável é traiçoeira e pensará como mudar o rumo.

"Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade". Albert Einstein

12 comentários:

  1. Concordo com tudo o que foi escrito. E o pior é que uma grande quantidade dos cursos oferecidos são de má qualidade. Eu sou joinvilense, vivi minha vida toda, mas pra entrar na Academia tive de ir pra Curitiba, pois aqui não existe 1 curso de Direito com padrão fora de série.

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  2. Caro Guilherme, fico com a minha velha e surrada opinião. A falta de interesse/qualidade/mercado, gera a falta de oferta. O lucro tem que existir, por uma questão conceitual. Universidade privada deve gerar superávit para reinvestimento (caso o risco compense) e distribuição aos sócios. Universidade pública também deve gerar superávit, para reinvestimento e financiamento de bolsas (lucro social). Uma coisa é certa: se não gerarem lucro, as duas não se sustentam. A primeira quebra e, a segunda, começa drenar recursos públicos de outras áreas vitais.
    Finalmente, a frase que você usa para arrematar o teu texto explica tudo. Não a vejo como uma crítica à sociedade, muito pelo contrário. Aliás, Einstein, como humanista, serviu-se otimanente bem do sistema universitário capitalista, que o acolheu até o fim da vida - que fique bem claro, não tenho nada contra!
    Não tivesse "a nossa tecnologia" excedido "a nossa humanidade", provavelmente ainda estaríamos perambulando pelo mato catando frutinhas, caçando "politicamente incorretamente" e dormindo em cavernas.

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  3. Guilherme, passo algo que acredito com outras palavras concordar com seu artigo.
    Extraído do livro "Cities fit for people"- algo como: Cidades aptas ou apropriadas para pessoas - (1997) de Üner Kirdar, p.8:
    "Cada cidade precisa de um eficiente processo social, em todos os níveis, para resolver seus conflitos.Esse processo precisa ser holístico, integrativo e participativo porque a cidade é o foco dos fenômenos sociais em todos os níveis e - sobretudo - porque a cidade não é apenas o que nela está construído. Uma cidade são as pessoas - e o habitat das pessoas. As cidades, portanto, devem ser uma fonte de visões positivas das pessoas - onde todos tenham segurança, saúde e desenvolvimento sustentável; serviços básicos e culturais; direitos democráticos e deveres; possibilidade livre de emprego; participação nas decisões públicas. Nenhuma reconstrução de uma infraestrutura decadente será suficiente para assegurar que as cidades sejam seguras, saudáveis, e habitáveis até que as idéias, alma e espirito daqueles que nelas residem floresçam."

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  4. Em uma cidade considerada com "Cidade Alemã" não tem o curso de letras - Alemão.

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  5. Oi Nico!
    Primeiramente, obrigado pela leitura e comentário.

    A universidade privada tem como fim o lucro, é verdade. Mas também tem como fim o ensino, pesquisa e extensão, os pilares que necessariamente sustentam uma organização que possa carregar o título "universidade". As empresas são abertas tanto para atender a uma demanda social (uma loja de roupas abre porque se precisa comprar roupas) bem como dar lucro ao seu acionista. É a lógica que nos rege. Em sendo também o ensino, pesquisa e extensão o fim da universidade, nem sempre estes três pilares gerarão lucro pra instituição. Numa empresa às vezes há produtos que individualmente são deficitários, mas no todo contribuem para o resultado positivo da empresa. Pensemos no supermercado que vende um produto abaixo do preço do custo pra atrair clientes, que comprarão outros produtos por impulso - e no todo, gerarão lucro. É a estratégia.
    Por outro lado, para as próprias universidades privadas, deve ser difícil encontrar profissionais da área de humanas, que lhes são obrigatórios em muitos casos. Então, ter um curso que formasse essa "mão-de-obra" para elas também pode ser parte da estratégia - não dá lucro diretamente, mas é parte do todo.

    No que tange às universidades públicas, permita-me discordar de você. O superávit da universidade pública não é gerado pelos alunos, ou seja, o curso não precisa necessariamente ser comercial, vendável. O superávit vem de recursos públicos - seja qual a esfera da universidade. Creio que ambos concordamos que a sociedade precisa de sociólogos, cientistas sociais, antropólogos, músicos, artistas e todas as profissões que eu elenquei no artigo - em maior ou menor número. Então, que sejam as públicas e comunitárias que cumpram essa função social - embora também as privadas possam fazê-lo, pois há inúmeras privadas Brasil afora com os cursos que mencionei.

    Não podemos, é claro, sustentar cursos vazios - uma universidade pública não pode abrir um curso onde ninguém estude. Mas estes profissionais são necessários pro conceito de cidade, de lugar onde vivemos, como bem demonstra o texto que o Arno Kumlehn trouxe (obrigado, Arno).

    Creio que você compreendeu que não faço objeção aos cursos de exatas ou de sociais aplicadas. Como seria nossa economia sem engenheiros? Não haveria a ligação de Joinville com o Planalto Norte, a nossa bela Imperial Estrada da Serra Princesa Dona Francisca, construída pelo teu bisavô ou trisavô e homônimo, Etienne Douat. Só pra citar um exemplo próximo ;)

    Mas a tecnologia EXCEDER a humanidade não pode estar correto. Usarmos a tecnologia ao máximo, em nosso favor, parece-me lógico, óbvio e aceitável. Agora, que sejamos mais tecnológicos do que humanos? Isto parece-me atentar contra nossa natureza.

    Um abraço!

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  6. Uma de minhas metas pra 2012 é "capacidade de síntese". Hehehe

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  7. Texto certeiro, Guilherme. Há tempos a cidade se ressente desta “mercantilização” do ensino superior a que você se refere – fenômeno que, aliás, não é apenas local. Eu leciono em uma instituição particular em Curitiba, e os cursos de Humanas – História (onde ensino), Letras, Artes e Pedagogia – têm enfrentado inúmeras dificuldades para se manter abertos e ativos. Entre outros, acho que há principalmente dois problemas aí:

    1-) O primeiro é interno às instituições. Se são universidades, o “lucro” não se mede a partir do desempenho individual de cada curso. Se há uma demanda de mercado maior pelos cursos técnicos, por exemplo, que cobram mensalidades mais caras e atraem mais alunos, isso não justifica desprestigiar cursos menos rentáveis e condená-los ao ostracismo. Mas é esta lógica – que é, afinal, a lógica competitiva dos mercados – a que prevalece em boa parte das universidades particulares, muitas vezes com resultados duplamente danosos: cursos tecnológicos com qualidade questionável e que formam profissionais mal preparados, mas que precisam funcionar porque geram lucro à instituição; e cursos de humanas e sociais sobrevivendo em condições frágeis, quando não ameaçados de fechamento, porque “deficitários”.

    2-) Mas há outro problema, mais sério até, me parece. Se gestores de instituições acadêmicas privilegiam cursos lucrativos, o fazem movidos em parte pela quase completa desqualificação da carreira docente. Aqui no Paraná, alunos (e bons alunos) que passaram pelas minhas turmas são submetidos a condições vergonhosas e humilhantes de trabalho depois de formados. O desrespeito ao professor construiu e consolidou a imagem que hoje é em grande parte responsável pelo esvaziamento dos cursos de licenciatura: em uma sociedade que incentiva o ganho e que faz da ostentação da riqueza pessoal sinônimo de sucesso e status, como convencer jovens recém saídos da adolescência a abraçarem uma carreira associada ao fracasso e ao insucesso, principalmente financeiro?

    Enfim, não acho que seja caso de “vocação”, porque isso não existe. Joinville foi construída com base no discurso e no imaginário do trabalho, e várias pesquisas historiográficas têm tentado demonstrar isso nos últimos anos. E se é verdade que o desenvolvimento tecnológico foi um dos responsáveis pelo nosso processo civilizacional, nunca é demais lembrar que a tecnologia não se inventou sozinha. Sem a imaginação, o desejo, a criatividade e o esforço e trabalho humanos, ainda estaríamos a catar frutinhas. E me desculpem os tecnólogos, mas não é o tipo de coisa que se ensina nos cursos de engenharia e afins.

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  8. A parte pública é preocupante, os cursos nessa área são concentrados praticamente nas capitais e grandes centros, com isso perdemos a chance de qualificar nossos servidores que na grande maioria carecem de esclarecimentos em todas os quesitos, já que legalmente não é permitido exigir experiência maior que 6 meses (!) nos concursos públicos. A maturidade demora a vir, conta-se apenas com o calo do dia a dia, muitos se apegam a vícios achando que é o certo, ou no famoso "sempre foi assim". Para minha especialização em Adm. Pública tive que recorrer a Curitiba...

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  9. Particularmente, acho estranho que um estado que teve dois ministros de Estado em governos recentes, Luiz Henrique e Jorge Bornhausen, os mesmos que presidiram os dois maiores partidos de sustentação dos governos anteriores aos do PT - Collor, Itamar e FHC - tenha uma estrutura universitária tão problemática - uma única universidade federal e uma também única estadual. Com o agravante que esta última oferece cursos em campi distintos - e por razões óbvias, para Jville. sobraram os técnicos.

    No Paraná, além das federais a interiorização das universidades públicas estaduais oferece um quadro sensivelmente diferente do catarinense. Claro que o estado também tem problemas e aqui como em SC boa parte das vagas são oferecidas por instituições particulares, nem sempre e nem todas preocupadas com a qualidade.

    Mas o fato de que as instituições estaduais tenham condições de suprir parte da demanda, e o façam oferecendo cursos de diferentes áreas em diferentes cidades do interior, torna mais igualitárias as condições de acesso ao ensino superior público.

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  10. Alô Guilherme. Quanto à "cesta de custos" (1), concordo com você. A lógica do "produto" ensino segue a lógica de qualquer produto. Há cursos que dão prejuíso, mas são "diluídos" no geral. Em alguns casos, servem até de marketing. Devem ter, entretanto, sua margem de contribuição, sem o que não tem razão de existir.
    Acho complicado debitar ao "sistema" certos problemas, caso do baixo interesse por humanas. Você nunca chega a uma conclusão prática. Melhor seria fazer uma pesquisa técnica, buscando a resposta prática para isso. Ninguém é obrigado a não estudar, portanto e provavelmente, isso se deve a alguma deficiência no próprio sistema de ensino, que não está conseguindo atrair interessados (certamente os há) ou atender adequadamente às demandas do mercado.
    Quanto ao desrespeito aos mestres, na minha opinião, resume-se a um problema da discilpina - veja o caso recente da USP. Assim, não cumpriu as regras, rua! É assim em qualquer sociedade/organização que se quer respeitada, no mundo inteiro. Aliás, é condição básica para que tenhamos o direito de ser chamados de civilizados.

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  11. A vocação de Joinville é tecnológica, e a tua vocação e a minha vocação, não conta? Com certeza poucos irão nos ouvir. A sociedade é refém de sua linguagem, do senso comum, afinal para que refletir? É só apertar um botão e a informação está ali, prontinha, redondinha sem muito esforço. Estamos sofrendo uma deshumanização, que ao que parece, poucos estão percebendo, mas tudo bem, este índice - deshumanização - não é medido para avaliar o desempenho das empresas.Desculpe-me Guilherme, voltando a nossa vocação: Vamos agir conforme nossos valores, vamos continuar sendo coerentes em nossas ações, vamos continuar fazendo o que sabemos fazer: agir como humanos.

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  12. Guilherme, ótimo texto, assim com os comentários do Clóvis e Arno. Permita-me só complementar que apesar das ditas ciencias tecnológicas não complementarem de maneira eficiente em seus currículos as tão necessárias áreas humanísticas e sociais, não posso concordar que um profissional que hoje tenha como missão a construção de cidades e estradas, o seu planejamento e a gestão do meio ambiente (só para exemplificar) não possua um mínimo de visão sistêmica sobre o todo, e o comprometimento com isto. Como engenheiro e consultor ambiental, não vejo condições de exercício pleno do meu trabalho se não considerar o patrimonio arqueológico, histórico, arquitetonico, antropológico, entre outros. Acho inclusive que por causa desta carencia de um olhar mais amplo e universal das ciencias muitas obras da nossa cidade (sem falar das políticas públicas) deixam tanto a desejar.

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