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sexta-feira, 18 de março de 2016

A história não nos absolverá *















POR SALVADOR NETO


Vivemos tempos tumultuados, agitados. Tempos em que o ódio vem superando a razão e a tolerância. A crise política chega a temperaturas altíssimas com uma sucessão inimaginável de fatos estapafúrdios em um estado democrático de direito. A investigação da corrupção via Operação Lava Jato, que parecia ser um serviço de limpeza das instituições do país, saiu de um roteiro de descobertas dos cartéis de empreiteiras para seguir um enredo de partidarização da justiça. Um perigo para a nossa jovem democracia.

Quem estuda um pouco de história sabe que a “luta” contra a corrupção foi usada sempre que interesses escusos foram contrariados por governos legitimamente eleitos pelo voto. Foi assim com Getúlio Vargas (1954), e não por acaso já na ocasião o nosso petróleo estava ao fundo da tal luta. Todos sabem como acabou a história. Em seguida, JK teve que suar para disputar a eleição, ganhar e tomar posse. Mesmo assim construiu Brasília, a capital onde dizem, nasceu o “modelo” empreiteiro de fazer política.

A corrupção, ela novamente, ajudou a eleger o udenista Jânio Quadros em 1960 com a sua “vassourinha”, que ia varrer a bandalheira do Brasil. JK foi tachado como o mais corrupto homem público pelos grandes conglomerados de mídia da época. Nada mais atual. Jamais provaram nada contra ele, que teria morte estranha após longo exílio por conta da tão saudosa – ainda bem que para poucos – ditadura militar (1964-1985). Também Jango, que assumiu com a renúncia de Jânio Quadros, sucumbiu aos brados da união entre tradição, família e propriedade contra a corrupção e o tal “comunismo”.

Por incrível que pareça, há quem acredite que no regime militar não houve corrupção. Como saber se a livre manifestação, as liberdades individuais e de reunião, a censura, encobriam o país com o manto do terror, da perseguição a quem pensasse diferente? Sugiro a quem duvide disso estudar... história do Brasil, ou vá neste link para começar a pesquisa. Durante o regime militar foram realizadas obras gigantes como a Transamazônica, Ponte Rio Niterói, Usinas de Itaipu e Tucuruí, entre outras. Quem as construiu? As famosas empreiteiras, praticamente as mesmas que você sabe envolvidas na Lava Jato.

Após a redemocratização, que é bom que se repita, foi conquistada com a luta de muitos brasileiros e brasileiras contra as arbitrariedades e torturas do regime militar – e com a concessão de uma anistia geral até hoje contestada – construímos uma Constituição Federal de 1988. Ela é a lei maior do país, que devolveu aos brasileiros e brasileiras os seus direitos individuais, a cidadania, e direitos que foram negados por séculos ao povo trabalhador. Até hoje essas conquistas ainda são implementadas lentamente, pois são discutidas e aprovadas – ou não – no Congresso Nacional. E lá, o conservadorismo permanece forte, até hoje.

Hoje ao ver o atual quadro de pré-convulsão social provocado por uma ação sincronizada entre parte do MPF, Justiça, Polícia Federal e a grande mídia que já comandou os golpes e tentativas de golpes já citados, tomando por base a “corrupção”, temo pelo futuro do meu país. Como jornalista não posso me furtar a opinar sobre o que vejo, pelo que estudei, e por ver tamanha manipulação midiática que joga irmãos contra irmãos. Quando o maior grupo de mídia do país passa quase 10 horas ao dia divulgando situações somente contra um grupo político, e apenas contra a presidente Dilma e o ex-presidente Lula, não há como disfarçar. O modelo do passado voltou a agir. E sem o menor constrangimento.

Mesmo contra a maré odiosa que só repete o que vê na grande mídia como verdade sem a necessária reflexão, comparação e estudo, é preciso denunciar esses atos que são vendidos como normais. Não, não é normal e tampouco legal levar um ex-presidente sob coerção a um depoimento em um aeroporto sem que ele tenha se negado alguma vez a isto. O ex-presidente não está indiciado, é investigado com toda a força, e até sua prisão preventiva sem qualquer prova já foi pedida. Aos olhos da massa pode ser o máximo. Mas sempre há um detalhe, ele já foi condenado pela mídia.

Não, não é legal, e tampouco natural, que um juiz de primeira instância determine grampos à advogados e seus clientes, à Presidente da República, a Ministros de Estado (todos com foro privilegiado pela CF e Código Penal), os divulgue diretamente à mídia sem o devido processo ao STF. É uma afronta ao estado democrático de direito que conquistamos a duras penas. Atos como esse podem ser a fresta que promove um estado de exceção.

Não, não é natural que enquanto a Câmara dos Deputados é comandada por um denunciado por corrupção, Eduardo Cunha do PMDB - que deveria estar fora do cargo exatamente por isso - o próprio coloca um processo de impeachment da presidente Dilma para tramitar com “urgência” sem qualquer base legal, sem provas, apenas por vingança política e interesses de quem o financiou até aqui. Para lembrar, o processo contra Cunha no Conselho de Ética está paralisado há quase seis meses.

Não, brasileiros e brasileiras, não é legal nem natural que estejamos à beira de uma guerra civil por manipulações midiático-oposicionistas/oposicionistas/judiciais que inflam a massa popular, que emanam uma cortina de fumaça que esconde interesses inconfessáveis pelo poder, pelo nosso petróleo, sem que pelo menos desconfiemos de tudo que se lê, vê, ouve, e claro, compartilha.

Não é razoável que joguemos nossos direitos e garantias fundamentais nas mãos de qualquer pessoa do poder após uma longa luta para tê-los!

Hoje você pode achar legal o espetáculo midiático, a espetacularização dos fatos (?!) veiculados. Mas pense, amanhã podem estar atrás de você, com ou sem provas, com escutas, transcrições pela metade, manipuladas.

Aí você pode pensar: mas depois você se defende. Quem não deve, não teme. Será? É tempo de frear os sentimentos, de pensar muito antes de atacar alguém, um amigo, uma outra pessoa. De acusar sem provas. Você pode estar cometendo uma injustiça gigante, que poderá jamais ser reparada.

E mais: você poderá ser também a vítima, jogando os seus direitos conquistados via democracia, na vala comum que muitos desejam que você jogue. Construir uma sociedade democrática, com todos os vícios e erros que ela tem é muito difícil. Agora, destruir é fácil. Pense nisso. Pense no país. Pense em você. Pense nos seus. Se errarmos mais uma vez, a história não nos absolverá.


É assim nas teias do poder...


Em 16 de outubro de 1953, o jovem advogado Fidel Castro pronunciava a sua autodefesa, após ser preso pelo assalto ao quartel Moncada, em Cuba, – quando tentou derrubar o então presidente e ditador Fulgêncio Batista. “A história me absolverá”, foi a última frase proferida pelo líder da Revolução Cubana e como ficou conhecido o documento que reúne este célebre discurso, que completa 60 anos . Título adapta a frase histórica a esse momento histórico que vivemos.

* Sugiro também a leitura do texto "A culpa é das estrelas?", que escrevi aqui no Chuva há pouco mais de um ano falando sobre essa força propagandista que levou ao nazismo, clique aqui para ler.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Os anônimos e contribuição ao diálogo

POR JORDI CASTAN




Escrever no Chuva Ácida é um exercício semanal de tolerância. No período eleitoral os ânimos têm ficado mais exaltados e sempre há os que, escondidos sob o anonimato, vociferam baixarias e agridem desde a covardia.

Tenho por princípio publicar todos os comentários. Não recordo ter censurado algum (a menos que não tivesse a ver com o tema do post ou contivesse agressões ou ameaças). Ontem tive o desprazer de receber o comentário que publico aqui e que hoje é o tema deste post.

Enquanto houver no país uma minoria de trogloditas que ainda vivem no neolítico da democracia, correremos o risco de ser agredidos em nome da própria democracia e do estado de direito.


"Anônimo2 de novembro de 2014 00:22
Jordi,...desde que vc. chegou em Joinville assumiu prontamente a função de "capacho pseudo-intelectual "da burguesia local e agora se tornou também um "lambe-botas" da ditadura, insinuando um golpe na democracia. Já passou da hora de vc. ler uma bíblia e tentar salvar a sua alma, porque sua mente e seu coração já estão totalmente podres pela arrogância !" 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O horror à política

POR CLÓVIS GRUNER

Em um texto escrito em 1950, “O que é política?”, a filósofa Hannah Arendt define a política como um lugar de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem. Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer explodir singularidades. A multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos: a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que constituem relações naqueles interstícios e intervalos que os aproximam sem, por isso, anular-lhes a diferença. “A política”, diz ela, baseia-se na “pluralidade dos homens”; ela deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes, não de iguais. Razão porque, para Arendt, o “sentido da política é a liberdade”.

Outro alemão, Jürgen Habermas, criticou em Arendt o que considerava uma concepção idealizada de política. De acordo com ele, Arendt a concebia tomando como modelo uma experiência, a da polis grega, impraticável nas sociedades contemporâneas, não apenas mais populosas como também mais complexas. A filósofa temia o que ele chamou de “midiatização da população” pelas instituições políticas, preferindo a estas a democracia direta e imediata. Diferentemente, Habermas reafirma a pertinência das democracias modernas e representativas, criticando em sua interlocutora a “estilização da polis grega” que está no cerne de suas formulações.

Pois penso que equivocado estava Habermas. Primeiro, acerca de Hannah Arendt, que tinha suficiente sensibilidade histórica para não usar o passado senão como meio para afirmar a possibilidade de pensar diferentemente a política no presente. Nela, a polis não é um lugar ideal ao qual se pretende retornar, mas uma referência necessária para compreender a historicidade da própria política, bem como denunciar os riscos e os limites do modelo representativo. Riscos e limites aos quais Habermas parece, afinal, pouco atento. Sem tensionar a democracia representativa, questionando por outros meios a eficácia da representatividade, sem construirmos outras vias de participação na vida pública além da mediação institucional e burocrática, talvez o que sobre seja, justamente, a despolitização da política.

O QUE RESTA DA POLÍTICA – As eleições deste ano encerram de maneira exemplar este risco. Ao longo dos últimos meses assistimos principalmente o ódio e o medo pautarem os discursos, as ações e as escolhas eleitorais. Nada de novo, a rigor: uma coisa e outra são a tônica do debate público – ou a ausência dele, enfim – desde há algum tempo. Mas era fundamental que fosse diferente em uma eleição presidencial. Não foi. O resultado foi a quase total ausência de uma interlocução efetiva entre partidos, seus candidatos e os eleitores.

Principalmente no chamado G-3, reproduziu-se a velha estratégia de destruir inimigos ao invés de confrontar adversários. E como o objetivo da oposição é vencer Dilma, ela apostou principalmente no velho roteiro denuncista, já bastante desgastado. Marina ainda tentou emplacar o discurso da “nova política”, valendo-se de maneira oportunista das manifestações de junho de 2013. Mas suas alianças com Bornhausen em Santa Catarina e Alckmin em São Paulo, além das mudanças recorrentes no discurso sempre que sentia alguma pressão vinda, ora do agronegócio, ora do pastor Malafaia, comprometeram tal pretensão. Pior fizeram os tucanos: tiveram 12 anos para apresentar um projeto alternativo para o país, e o máximo que conseguiram foi lançar Aécio Neves. E não faltaram previsões catastróficas e gente a defender um “corpo a corpo encarniçado e sangrento” passadas as eleições. Tudo muito patético.

A presidenta Dilma Rousseff teve de enfrentar, e nem sempre o fez bem, o desgaste natural depois de mais de uma década do PT à frente do governo. Embora líder nas pesquisas, ela não conseguiu superar uma contradição que atravessa as gestões petistas: os indicativos sociais positivos, a meu ver a principal conquista dos últimos três governos, não produziram um amadurecimento político mais significativo. Parece ter ocorrido justamente o contrário, e é difícil ao PT escapar ao seu quinhão de responsabilidade. Além de se afastaram dos movimentos sociais, contribuindo inclusive para sua criminalização, os governos Lula e Dilma valeram-se de políticas distributivas bem sucedidas para diluir outros temas e travar pautas fundamentais ao avanço da democracia. A capitulação diante da pressão de segmentos religiosos fundamentalistas e as alianças com setores conservadores, ajuda a entender a indiferença institucional para com temas e políticas que deveriam ser fundamentais a uma política de esquerda.

O ESPETÁCULO DO HORROR – Pois é esta indiferença, justificada pela necessidade de assegurar a governabilidade, uma das responsáveis pela reprodução de uma já histórica despolitização de parcela significativa da sociedade brasileira. Danosa para a consolidação de uma democracia efetivamente pluralista e sensível aos direitos humanos mais fundamentais, reforçada por uma investida midiática que não poupou esforços para estigmatizar toda forma de política, com ela chegamos a uma eleição onde a política cedeu espaço a um espetáculo onde o protagonista é, justa e ironicamente, o horror à política.

E ele se manifestou de maneira brutal no debate entre os candidatos à presidente, na noite de domingo, na rede Record. A resposta do candidato Levy Fidelix a uma pergunta de Luciana Genro sobre o casamento homossexual, é o retrato do quão baixo chegamos depois de anos alimentando o ódio, o ressentimento e a intolerância. Ao afirmar que “aparelho excretor não reproduz”; associar a homossexualidade à pedofilia; sugerir que quem é “portador deste problema” deverá receber tratamento médico e psicológico para curar-se, mas “longe de nós” – onde? Internados em um asilo ou hospício; confinados em um gueto ou em campo de concentração, um triângulo rosa costurado na roupa? –; e conclamar a “maioria” a “enfrentar” a “minoria”, Fidelix não apenas vomitou sua monumental ignorância, mas incentivou a violência.

Mas sua barbárie verbal foi potencializada com o silêncio constrangedor dos demais. Nenhum entre os principais candidatos repudiou o posicionamento do “nanico”. Para não perderem um punhado de votos, perderam a oportunidade de fazer a diferença, enfrentando e denunciando a intolerância e a violência que ela estimula e legitima. A movimentação nos dias seguintes foi uma pálida e envergonhada resposta à repercussão nas redes sociais, e uma tentativa de disfarçar o indisfarçável: para o G-3 a política deixou de ter como função organizar e regular a convivência entre os diferentes, assegurando a todos os direitos civis mais básicos, independente da fé que professem, da cor de sua pele, de sua posição social ou de seu gênero. Tornada técnica, distante das e indiferente às vidas comuns, a política foi desinvestida de seu caráter político. Hoje, nenhuma das três alianças e candidatos que aspiram à presidência reúne as condições de reverter isso. E possivelmente tampouco desejam fazê-lo. 

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

PlanMOB Joinville: ouvir não é deixar decidir

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Há alguns meses, quando relatamos aqui no Chuva Ácida os oito motivos para mostrar que a confecção do Plano Setorial de Mobilidade e Acessibilidade (batizado de "PlanMOB") seria em formato "express", sem debater com a sociedade, creio que acertamos em cheio. Apesar dos números apresentados nesta semana parecerem animadores, o processo de construção do PlanMOB apresenta falhas e ignora princípios básicos estabelecidos pelo Estatuto das Cidades.

As oito oficinas públicas realizadas durante o período da Copa do Mundo (onde reconhecidamente o ambiente social é alterado) reuniram cerca de 590 pessoas. Pode parecer um número expressivo, mas não é. Não chega a atingir nem 0,15% da população de nossa cidade. Um município próximo, como Itapema, atingiu mais de 500 pessoas nas mesmas oito consultas públicas para a revisão do Plano Diretor local. E Itapema tem um pouco mais que 50 mil moradores.

Depois, comemora-se o fato de mais de 12000 formulários serem respondidos pela internet e em pontos estrategicamente colhidos pela cidade. Além do formato ser insuficiente, pois é frio e não gera nenhum tipo de debate, também é insignificante quanto ao índice de pessoas atingidas (considerando a facilidade de uma pessoa entrar na internet e responder um formulário ou pegá-lo na padaria da esquina): 2,16% da população. Pífio.

Para piorar, um relatório síntese divulgado pelo IPPUJ nesta semana, diz que


O 3º Workshop do PlanMOB de engajamento social ocorrido em 18 de agosto contou com 
105 participantes, conduzido pela Embarq Brasil tendo como público alvo representantes 
de organizações sociais, instituições civis, conselhos profissionais e municipais, 
universidades, órgãos financiadores e administrativos, empresas, sindicatos e outros.

Sem contar o fato de que

A Leitura Técnica ocorreu de 1º a 12 de setembro, com 18 reuniões formadas por 9 grupos 
temáticos de trabalho – GTs, com a participação de cerca de 70 convidados voluntários 
que apresentam grande conhecimento e envolvimento com os temas tratados e teve a 
atribuição de aprofundar e discutir questões específicas de mobilidade com os temas: GT1 
- Transporte a pé; GT2 - Transporte por bicicleta; GT3 - Transporte coletivo; GT4 - 
Transporte de cargas; GT5 - Saúde e meio ambiente; GT6 - Circulação nas áreas centrais; 
GT7 – Financiamento; GT8 – Mobilidade regional considerando áreas conurbadas; e GT9 – 
Mobilidade e Ordenamento Territorial. 

Por duas vezes, o órgão responsável pela gestão do PlanMOB (neste caso, o IPPUJ), demonstra que não parece muito preocupado com a ampla divulgação dos fatos e a abertura dos processos decisórios para a população. Digo isto por a) o workshop não ser, diante do exposto no documento, um evento direcionado à população em geral e sim às entidades organizadas; b) esconder o nome dos 70 "convidados voluntários que apresentam grande conhecimento e envolvimento com os temas", pois não há nenhum decreto nomeando-os ou evento para elegê-los, caracterizando uma escolha unilateral e antidemocrática; c) uma leitura técnica da mobilidade de uma cidade de 554 mil habitantes ser realizada com 18 reuniões em míseros 12 dias e d) tudo isso ser divulgado através de "um banner" no dia mundial sem carro, sobretudo pela Prefeitura de Joinville ter um orçamento bem gordo para publicidade.

Este ato de escolher 70 pessoas com notório saber sobre o tema, é um recado dado para a sociedade civil num geral: somente técnicos e especialistas sabem debater o que acontece na cidade. É um discurso muito parecido com o período da ditadura, onde somente arquitetos, urbanistas e engenheiros decidiam o futuro da cidade, sem ao menos deixar a população participar dos processos decisórios. Penso que os gestores das políticas urbanas de Joinville confundem as coisas. Ouvir a população é uma coisa, e deixar ela participar das decisões é totalmente diferente. E além disso, qual o problema em manter escondido durante tanto tempo o fato de 70 pessoas serem convidadas sem que a sociedade soubesse? Medo de alguma retaliação dos movimentos populares? Qual foi o critério de escolha? Quem são estas pessoas? Foram registradas atas destas reuniões?

Nada contra os convidados que participaram, porém conheço, no mínimo, umas 10 pessoas de entidades populares ou não que poderiam contribuir mas não foram convidadas e provavelmente nem estavam sabendo deste fato. E conheço outros 554 mil que poderiam ajudar. A pressa em aprovar o Plano de Mobilidade, após anos protelando (falta de aviso não foi), culmina na privação dos diretos já conquistados pela população e, mais uma vez, a gestão democrática da cidade de Joinville é ceifada mediante interesses difusos dos gestores públicos. 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Começou!


POR CLÓVIS GRUNER

Quando a seleção brasileira entrar no Estádio do Itaquerão hoje à tarde, disputando contra a Croácia a partida de abertura da Copa do Mundo 2014, estará em jogo muito mais que o hexacampeonato. Desde o início das mobilizações de rua contra o torneio da FIFA, e apesar do slogan, todo mundo sabia que teria Copa e, penso, nunca foi a intenção inviabilizá-la. Parece-me que se buscou a possibilidade de tecer sobre ela uma outra narrativa, mais aberta e plural e capaz de levar em conta, de atribuir sentido e visibilidade às contradições decorrentes de sua organização.

Uma narrativa que não encobrisse, sob as camadas do ufanismo governamental e publicitário, as muitas formas de violência que compuseram também o roteiro da Copa do Mundo, e sobre as quais, não fossem as mobilizações, restaria um pacto de silêncio e o consequente esquecimento. Como disse em texto publicado há poucas semanas aqui no Chuva, a estimular as manifestações, e descontados os muitos oportunismos e oportunistas de plantão, há um conjunto de demandas legítimas e uma porção mais que justa de indignação pela maneira enviesada como muitas das decisões foram tomadas e executadas.

Além disso, como bem observou Vladimir Safatle em texto publicado na Folha de São Paulo de terça-feira, as manifestações sinalizaram para um incômodo descompasso entre os estrategistas de marketing – e não só os do governo – e parte da população brasileira. E embora não concorde com parte da abordagem do filósofo, que parece ecoar a ideia de que “o gigante acordou”, porque penso que ele nunca esteve adormecido, estou de acordo quando afirma que o roteiro sempre previamente traçado desde cima para o “povo” – basicamente “celebrar a aclamar” – dessa vez não funcionou: os atores não aderiram ao espetáculo que lhes foi designado e criaram seu próprio cenário. Houveram equívocos e alguns excessos, por certo, mas no âmbito geral o mise-en-scène das ruas foi o necessário e criativo contraponto ao discurso oficial.

FUTEBOL E POLÍTICA – Claro que as implicações políticas disso não podem ainda ser medidas em toda a sua extensão. E elas tampouco são novidade. Os usos políticos do futebol vem de longa data: em 1958, Juscelino Kubitschek, o “presidente bossa nova”, não se furtou a usar a conquista da Jules Rimet para inflar o espírito nacionalista e a adesão da sociedade ao seu projeto desenvolvimentista, os tais “50 anos em 5”. Pouco mais de uma década depois, o general Médici, o presidente assassino, fez do tricampeonato conquistado no México uma de suas cortinas de fumaça a encobrir os muitos crimes praticados pela ditadura – além da corrupção, a censura, as prisões arbitrárias, a tortura e o extermínio de dissidentes. E não se pode negar que, sob certo aspecto, em ambos os casos a estratégia deu certo.

Obviamente os contextos eram diversos de agora. Entre outras coisas, o futebol e a Copa do Mundo não eram ainda essa máquina que movimenta bilhões de dólares mundo afora; tampouco a FIFA era a entidade poderosa que é hoje. Mas talvez justamente o triplo agigantamento ajude a entender porque dois ex-presidentes, FHC e Lula, insistiram tanto em trazer para cá a Copa do Mundo. Lula conseguiu, e certamente quando recebeu a confirmação, em 2007, de que o Brasil seria o país sede do torneio, ele esperava outra coisa que não as ruas tomadas de manifestantes indignados e tanques do exército dispostos a “assegurar a ordem” contra toda eventual desordem.

Vai ter Copa e, particularmente, penso que o prejuízo, tanto econômico como político, será menor do que teme meu colega de blog José António Baço. Não será a “Copa das Copas”, como quer a presidente Dilma Rousseff? Bastante provável. Mas talvez não seja igualmente o desastre desejado pela oposição que, carente de tudo – principalmente carente de um projeto para o país – torce para que tudo dê errado e que as imagens de uma hecatombe possam ilustrar a campanha eleitoral e disfarçar a ausência de ideias. De minha parte, continuo a pensar que o principal legado da Copa é o sempre necessário e bem vindo amadurecimento democrático, com todas as contradições que ele comporta. E se junto vier o hexa, tanto melhor.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Udo Dohler no AN: o prefeito em seu labirinto

POR JORDI CASTAN

O impacto da entrevista concedida pelo prefeito Udo Dohler ao jornal "A Notícia" tem sido maior que o esperado. Dificilmente poderia haver pior momento e a mensagem tem sido recebida pelos leitores do jornal com preocupação. É bom lembrar que uma boa parte do eleitorado natural do prefeito é composta por leitores do maior jornal de Joinville. Os marqueteiros políticos e os bombeiros de plantão tiveram que agir depressa para evitar que o desgaste fosse maior. Mas o estrago já foi feito.

Por que a entrevista repercutiu tão mal entre o joinvilense? Primeiro porque o eleitor está começando a ficar preocupado com o dia a dia da cidade. Nada parece andar e o proposto choque de gestão continua sem chegar ao cidadão. Os que deveriam ser os pontos fortes da gestão Udo não são visíveis. E o tempo passa: praticamente um terço da gestão já se foi e não há sinais no horizonte que prevejam mudanças a curto prazo.

Corrupção – O prefeito diz que há corrupção na sua gestão. É bom lembrar que quando uma fiscal da Seinfra foi detida pela Polícia Federal por corrupção, o prefeito já usou este discurso, mas nada foi feito que mostrasse uma vontade de mudança. Agora volta a falar de corrupção, mas não dá nomes, não diz em que setores e não apresenta alternativas concretas para combatê-la. Lembrando ainda que recentemente veio à luz uma denúncia envolvendo a licitação em andamento da manutenção da iluminação pública e que envolvia um super-secretário municipal.

O tema tem levantado ainda mais dúvidas sobre a imagem de um candidato que fez durante a campanha da honestidade o seu diferencial, quando todos sabemos que honestidade para um homem público deve ser um pré-requisito e não um diferencial. O resultado é descrédito sobre a sua verdadeira vontade de resolver o problema e a animosidade dos funcionários públicos honestos, que se veem colocados na vala comum dos corruptos.

Gestão – Definitivamente a gestão municipal patina, patina e não sai do lugar. Sem entrar na discussão das diferenças entre a administração pública e a praticada pela iniciativa privada, o fato é que ambas têm as suas diferenças, mas também seus pontos em comum: a busca da eficiência, os princípios da economicidade e da eficácia, unidos à planificação, controle e a gestão devem ser comuns a ambas. Na administração pública só pode ser feito o que a lei permite, na iniciativa privada o que a lei não proíbe está permitido. Está aí uma grande diferença, não é perceptível ainda a diferença entre uma gestão política e a gestão com uma visão empresarial. Transcorreu tempo suficiente para que as diferenças pudessem ser percebidas pela sociedade. Sem choque de gestão toda a proposta apresentada pelo prefeito na sua campanha é posta em cheque e o custo político é evidente.

Política – Quando eleito o prefeito teve a oportunidade e o crédito para poder fazer uma gestão diferente; para isso precisava tomar algumas decisões que evidenciassem a vontade de fazer um governo técnico e que se diferenciasse das gestões anteriores. Não o fez e optou por uma abordagem mais política. Um empresário que tenha administrado uma empresa com um faturamento superior aos R$ 100 milhões tem melhores condições de entender e administrar uma cidade com um orçamento 10 vezes maior. Saberá ler um balanço e tomar decisões baseadas em critérios técnicos e administrativos.

O problema é quando alguém tenta compatibilizar este perfil com um perfil político. O resultado é que mesmo com uma maioria absoluta na Câmara de Vereadores, o prefeito ainda não está satisfeito e preferiria um legislativo mais submisso e obediente, sem compreender o papel de cada um dos poderes no modelo republicano. Como político, Udo tem ainda muito por aprender. Os seis mandatos como presidente da ACIJ e os quase 20 anos à frente do Sindicato da Indústria Têxtil não proporcionaram o aprendizado político de que tanto precisa neste momento.

Foto: A Notícia
Clientelismo – Por favor, que alguém explique com urgência ao prefeito o que é clientelismo. Porque afirmar que há clientelismo e que esse é um entrave à gestão municipal - em especial vindo dele - parece um contrassenso. A impressão que ficou depois da entrevista é que o clientelismo pernicioso é o dos outros; quando o clientelismo tem como objetivo atender as demandas dos amigos do rei ou dos apoiadores da campanha, além de ser normal, deve ser visto exclusivamente de defender o que é bom para Joinville.

O prefeito parece atolado no tempo em que na ACIJ se dizia em voz alta que “o que é bom para ACIJ é bom para Joinville”. Nos dias de hoje a frase deveria ter outra sintaxe: “o que é bom para Joinville é bom para a ACIJ”, pois assim a frase ganharia um significado e repercussão muito diferentes. É provável, contudo, que o prefeito não tenha deixado ainda de pensar como presidente da ACIJ.

Democracia e participação popular –  O perfil do prefeito Udo Dohler não é e nunca tem sido o de um democrata; pois é conhecido pelo seu perfil autoritário. A frase que melhor o define é a de que é alguém que ouve, mas não escuta. Acostumado a mandar e a ser obedecido, não faz parte do seu quotidiano escutar, reconsiderar, lidar com vozes e opiniões dissonantes ou simplesmente distintas das suas. Quem o conhece melhor sabe o quanto de esforço pessoal deve representar para o prefeito ter de lidar com minorias que, como parte do processo democrático e utilizando-se dos espaços de participação democrática, discordem da sua visão da cidade e do mundo.

Há duas possibilidades: a primeira é que o desgaste político continue aumentando e a sociedade como um todo pague o preço da teimosia ou então que se produza uma mudança radical na forma de ver e entender o papel da sociedade organizada na tomada de decisão. A segunda parece improvável e deveremos ter até o final do mandato uma fase conturbada. O curioso disso tudo é que boa parte dos eleitores do Udo votou nele acreditando nessa imagem de turrão, no seu perfil autoritário, pois imaginavam que Joinville precisava de um prefeito com este perfil. Assim, o futuro das cidades como Joinville, que não podem ser administradas mais no grito ou na vontade, vão precisar de administradores que reúnam ao mesmo tempo a capacidade política de negociar com o conjunto da sociedade e integrá-la num projeto de cidade e capacidade de administrar uma máquina complexa com milhares de funcionários e orçamentos bilionários.

Judicialização - O Prefeito Udo Döhler apontou a “judicialização” como a causa do que chama de problema da tramitação da LOT. Disse ainda que, além de terem refeito tudo ao longo de 2013, estavam em contato permanente com o Ministério Público, a fim de não cometer nenhum descuido. Tais declarações são de causar espanto. O verdadeiro problema não é a “judicialização”, mas, ao contrário, o atropelo implícito ao planejamento do IPPUJ para execução – em rito sumário – de audiências públicas para debater tema fundamental para a vida dos cidadãos, verdadeira maratona de eventos em dias consecutivos e com duração, pasmem, de meras duas horas cada uma.
Foto A Notícia

Essa pretensão provocou reação dos munícipes, que não tiveram outra opção senão recorrer – por meio de oito associações de moradores – ao Ministério Público. Deste receberam apoio, sob a forma de recomendações para que o IPPUJ atue em consonância com a lei, propiciando aos cidadãos, com a devida antecedência, elementos necessários para que formem convicção abalizada sobre as implicações das propostas da nova LOT sobre suas vidas social, econômica e patrimonial.

O prefeito inverte, assim, a ordem das coisas: não foi a Prefeitura/IPPUJ que se coordenou ativamente com o Ministério Público, a fim de não cometer erros. Foi a partir de um erro que estava, sabe-se lá por que razões, prestes a ser cometido pelo IPPUJ, que o Ministério Público, a pedido de alguns moradores de Joinville, devolveu o assunto aos trilhos, determinando ao Poder Executivo que atue da forma que se espera do administrador público. Ou seja, agindo com transparência e cumprindo o que determina a lei aplicável ao assunto.

E se o Prefeito está insatisfeito com a velocidade de tramitação da LOT, só precisaria comandar seus subordinados do IPPUJ para que ajam nesses termos. Afinal, o cidadão está apenas se defendendo contra a incompetência de uma entidade que se tem mostrado incapaz de cumprir seu papel, abdicando de discussões educativas, abertas e cristalinas com a população, em nome do verdadeiro rolo compressor que até este momento tentou passar sobre pessoas cujo conhecimento sobre o tema beira a inocência. A judicialização é hoje o caminho encontrado pela sociedade para se proteger das arbitrariedades e da falta de participação democrática.

Em resumo, a entrevista do prefeito não foi um tiro no pé. Foi uma rajada. No pé, na perna, no joelho e nas costas. A pergunta que fica é se o prefeito sabia o que ia encontrar? Pessoas próximas a ele asseguram que foi avisado. O próprio ex-prefeito Carlito afirma que o avisou. O prefeito como sempre ouviu, mas não escutou.


Reprodução A Notícia

terça-feira, 1 de abril de 2014

50 anos, hoje


POR CLÓVIS GRUNER

Há cinco décadas o Brasil acordou sombrio. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, um golpe orquestrado por forças militares e civis colocava fim ao breve interregno democrático que se iniciara com o fim do Estado Novo, duas décadas antes. Uma democracia sitiada, é verdade, e em permanente estado de tensão. Frágil e confrontada pelo golpe, a ela se seguiu uma ditadura que se estendeu pelos 21 anos subsequentes, e cuja herança nos assombra ainda, como um espectro não inteiramente sepulto. O jornalista Luiz Cláudio Cunha resumiu assim o período e seu legado:  

“A conta da ditadura de 21 anos prova que ela atuou sem o povo, apesar do povo, contra o povo. Foram 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, cinco mil deles condenados, 1.792 dos quais por “crimes políticos” catalogados na Lei de Segurança Nacional; dez mil torturados nos porões do DOI-CODI; seis mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em dois mil casos; dez mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e manifestação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; três ministros do Supremo afastados; o Congresso Nacional fechado por três vezes; sete assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa, à cultura e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje”.

Desde o começo deste ano não faltam eventos a rememorar a data e avaliar suas muitas implicações: simpósios, colóquios, programas de TV, edições e cadernos especiais na imprensa, títulos memorialísticos, acadêmicos ou grandes reportagens revisitam sob diferentes prismas o período. Não pretendo um balanço exaustivo dessa produção, nem tecer sobre a ditadura algum comentário original. Mas como brasileiro e historiador, creio que é um compromisso, além de profissional, também ético e político, contribuir para que os eventos daquele fatídico 1º de abril não sejam esquecidos. E é nesse espírito que gostaria de retomar três questões sobre o assunto, que considero fundamentais:

Um golpe contra outro golpe – Consagrou-se em alguns círculos, e não apenas militares, a versão de que o golpe de 1964 fez-se para evitar outro. Trata-se, obviamente, de uma narrativa que interessa aos responsáveis pelas mais de duas décadas de ditadura, mas que não se sustenta em nenhuma das muitas evidências históricas sobre o período. Em entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira fala das muitas “provocações” que antecederam o 1º de abril, essenciais para criar um clima de animosidade e conflito necessário para justificar a tomada de poder pela direita civil e militar. E embora admita a tendência à radicalização de algumas lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência de qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo: a principal força de esquerda, o PCB, além de atuar na ilegalidade, tinha um perfil muito mais reformista que revolucionário.

Havia um ambiente de conflito, em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética. Se desde o início da década de 60 falava-se do “perigo comunista”, em um contexto de acirramento das tensões e posições políticas, o “perigo comunista” se transformou na ameaça de um golpe que instauraria uma “república sindicalista” aos moldes da revolução cubana. Mas fora da propaganda que ajudava a alimentar a atmosfera golpista, a realidade era diferente. Se por um lado as experiências de Cuba e da Argélia, ainda recentes, inspiraram parte da esquerda brasileira, essa mesma esquerda não tinha pretensões nem tampouco fôlego para qualquer coisa que, mesmo remotamente, sugerisse a revolução e o golpe.

Insisto: os principais grupos e lideranças de esquerda eram reformistas: falavam e defendiam a reforma agrária e as reformas de base; reivindicavam o nacionalismo contra o capital estrangeiro; produziam uma cultura que se pretendia “popular” como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente influenciadas pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... A ameaça de um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira perpetrada pelos artífices da ditadura. Repetida tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso não a torna uma verdade.

A ditadura não foi apenas militar – Não haveria golpe nem uma ditadura que perdurou por duas longas décadas sem a estreita colaboração de militares e civis. Foi essa aliança que sustentou a ditadura, inclusive financeiramente: hoje sabemos de empresários e grupos empresariais que levaram sua adesão ao regime para além da simpatia, ajudando a financiar a máquina da repressão que começa a funcionar já em 1964.

Também fundamental, e que finalmente tem merecido a devida atenção de pesquisadores, foi o apoio dos meios de comunicação. Desde os pequenos jornais do interior – como a joinvilense “A Noticia” –, até a chamada “grande imprensa” – “O Globo”, “Folha” e “O Estado de São Paulo”, entre outros – raras, raríssimas foram as exceções: os meios de comunicação não apenas ajudaram a fomentar o golpe, colaborando para que se instaurasse no país um ambiente de terror e temor. Consolidado o governo militar, poucos foram os que recuaram efetivamente em seu apoio inicial, declarando abertamente sua contradição. A maioria manteve-se titubeante, em parte pela ameaça da censura, mas também porque continuava a reconhecer a legitimidade do governo militar.

E há, conhecidos, aqueles casos em que o apoio perdurou ao longo dos 21 anos de ditadura, como a Rede Globo, numa relação promíscua em que os sucessivos governos foram beneficiados com o suporte midiático, tanto quanto beneficiaram empresas e empresários de comunicação. Aliás, nunca é demais lembrar que se a cultura da corrupção está, ainda hoje, impregnada na vida política do país, ela encontrou no ambiente instaurado pelo golpe de 64, um terreno fértil. Foram duas décadas de corrupção e impunidade, favorecidas ambas pela certeza arrogante que tem os governos autoritários, que nada nem ninguém os ameaçam.  

Resistências e repressão – A repressão feroz que se abateu sobre toda e qualquer forma de oposição, tem sido recentemente relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores. Mas não há relativização possível quando se trata da garantia dos direitos humanos fundamentais, sucessivamente desrespeitados nos porões e Casas da Morte onde a ditadura humilhou, torturou e assassinou oponentes. Sobre esses, já se falou muita coisa, mas é preciso que se diga uma vez mais: nem toda oposição aos militares pegou em armas. A luta armada, aliás, representou uma ínfima parte de uma resistência que se fez também por caminhos institucionais – com a atuação do MDB, da OAB, de setores da igreja, entre outros –; intelectuais e artísticos, além das muitas tentativas de manter vivos e atuantes os movimentos sociais urbanos e rurais. A ditadura não perdoou ninguém e tratou a todos, indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.

Pode-se dizer, hoje, que a luta armada foi um equívoco, e que aqueles que lançaram mãos às armas não pretendiam, efetivamente, a retomada da democracia, fazendo da oposição à ditadura um meio para se atingir um fim: a instauração do socialismo. Tudo isso pode ser verdade, e ainda assim nada disso justifica a violência do Estado. Primeiro, porque a correlação de forças era absurdamente desproporcional: um punhado de militantes, em sua maioria mal e parcamente armados e treinados, enfrentou o poder e o aparelho do Estado, com seus muitos mecanismos de inteligência e órgãos de vigilância, além das instituições repressivas, parte delas atuando clandestinamente. Não havia ameaça e, mesmo se ameaça houvesse, é terrorista o Estado que trata fora dos limites da lei cidadãos que, uma vez rendidos, já não oferecem nenhum tipo de resistência.

Mas não é só. Não é casual que a ousadia e a violência dos grupos armados e revolucionários aumentaram na proporção da truculência institucional, de que o AI-5, decretado no final de 1968, é o marco histórico definitivo. Nesse sentido, a ditadura não apenas forjou as condições para que parte da oposição optasse pela resistência armada. Ela forneceu as razões políticas para todas as formas de resistência que se opuseram a ela. É preciso que se diga, sem receio: é legítima a insurgência contra governos ilegais que se sustentam na e pela tirania. Sob esse ponto de vista, mesmo a luta armada traz intrínseca, apesar de seus muitos equívocos, uma aspiração que é não apenas legítima, mas democrática, ao se insurgir contra um governo, além de autoritário, ilegal, imoral, ilegítimo e corrupto, constitucional e politicamente.

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Nas últimas semanas li e ouvi inúmeras manifestações a pedir uma “intervenção militar”. O ápice dessa nostalgia autoritária foi a tentativa, patética e fracassada, de reeditar a Marcha com Deus pela Família. Nas cidades onde ocorreram, marcharam lado a lado militares; religiosos exaltados e fundamentalistas; tucanos e demos principalmente do baixo clero; eleitores sem partido descontentes com o governo do PT, a quem atribuem todo o mal que há no mundo; e militantes neonazistas, entre outros. Uma fauna apenas aparentemente diversa, que nas ruas e principalmente nas redes sociais apela pelo retorno ao autoritarismo.

O Brasil vive, principalmente desde FHC e Lula, um processo de aprofundamento e consolidação democráticos. Como toda democracia, a nossa também é frágil e precária, não porque ameaçada, mas porque em permanente construção e invenção. Estar atento às suas fragilidades implica, sim, criticá-la. Mas para fazê-la avançar, não para retroceder. Precisamos de mais democracia. Nunca de menos.