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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A meritocracia é uma utopia


POR CLÓVIS GRUNER

Há algumas semanas, José António Baço escreveu aqui no blog sobre meritocracia. Volto ao assunto, mas para abordá-lo sob outro prisma e motivado por um comentário ao texto do Murilo Cleto, publicado no final de semana. Eis o comentário, reproduzido apenas parcialmente:

(...)

Na sociedade de mercado não há essa utopia, há diferenças de classes (como também há nas ditaduras ditas comunistas), porém, quando a sociedade aceita meritocracia e a enxerga com bons olhos, TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de vida.
A ideia de que a riqueza se resume a um bolo fatiado é estapafúrdia! Riqueza produz mais riqueza, a população não tem de se contentar com aquele pedaço do bolo, pois ele se multiplica, basta o cidadão estudar, se qualificar, trabalhar... mas isso poucos querem, então, para muitos, sobra a utopia do comunismo.

Se o autor realmente acredita no que escreveu, e a seguir seu raciocínio, os milhões de corpos que diariamente agonizam de fome são, não em última, mas em primeira instância, os responsáveis pela sua própria miséria. Se “TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de vida”, bastaria ao indivíduo “estudar, se qualificar, trabalhar” e melhorar de vida. Afinal, se a meritocracia provou que “TODOS tem condições” de viver dignamente, é óbvio que o gajo só continua a fuçar no lixão ou a viver em um campo de refugiados porque quer – e porque, no fim das contas, ainda lhe “sobra a utopia do comunismo” a compensar o mau cheiro e a condição degradante de refugiado.

Minha fé na humanidade anda quase no negativo, mas mesmo assim me choca a ideia de alguém expressar em tão poucas linhas tanto desprezo e insensibilidade pelo sofrimento alheio. Quero acreditar que não foi intencional: ele apenas repetiu o que deve ter lido em algum lugar – uma página do Facebook, algum blog de direita, talvez um artigo assinado por um dos profetas do neoliberalismo que pipocam nas colunas de opinião. Nesse caso, o problema não é a indiferença, ou não só ela, mas a ignorância conceitual e histórica. E para isso há chance de cura: basta o cidadão estudar e se qualificar. O que, no fim das contas, dá sempre um pouco de trabalho.

MÉRITO PARA QUEM? – A ideia de “meritocracia” tem sua história, e ela é mais ou menos recente. Filha dileta e direta do liberalismo iluminista, ela surge em um contexto onde imperavam o privilégio dinástico e hereditário, em detrimento dos valores e qualidades individuais. Falo das chamadas “sociedades de corte”, com sua hierarquia social no limite da imobilidade e onde se decidia, desde o berço, quais as posições e funções sociais a serem ocupadas e exercidas. No Antigo Regime, e quem passou por um banco escolar sabe disso, imperava o “privilégio” em detrimento do “mérito”.

Os liberais dos séculos XVII e XVIII teceram severas críticas a uma sociedade que produzia permanentemente as condições – culturais, sociais, políticas, econômicas – de sua própria reprodução, privilegiando sempre os já privilegiados. Um dos alicerces dos seguidos ataques desferidos contra a aristocracia e a nobreza, a meritocracia surge radicalmente subversiva: por meio dela, não apenas se defendia o valor individual em detrimento das posições nobiliárquicas, como ao fazê-lo se asseverava a possibilidade de mobilidade e ascensão daqueles indivíduos dispostos a fazer um bom uso de sua inteligência (a expressão é kantiana) para ascender e conquistar, por merecimento, melhores e mais vantajosas posições sociais e econômicas.

Mas há um elemento fundamental que não escapou à sensibilidade dos primeiros liberais: o mérito, por individual que seja, não aflora senão em uma sociedade de igualdade; igualdade não ontológica, mas de condições e de oportunidades para todos os homens diferentes entre si. A meritocracia, noção tão castigada pelos liberais de internet, é produto de uma utopia, a do liberalismo, que opõem a uma sociedade atravessada por muitas desigualdades, a promessa de uma isonomia necessária para que os indivíduos pudessem exercer seus talentos sem que as condições desiguais entre eles favorecessem uns em detrimento de outros.

ASPIRAR A IGUALDADE – Diferente do comentário que motivou esse texto, a meritocracia não é uma panaceia a justificar a desigualdade social apelando à competência de alguns poucos enquanto acusa, irresponsavelmente, a indolência da maioria. Ela contém, desde o berço, a possibilidade utópica de que as condições objetivas mínimas de igualdade serão asseguradas para que os indivíduos possam, livremente, exercer seus talentos. Daí o projeto, acalentado pelos iluministas do setecentos, de uma educação universal, entendida como condição primária à aquisição das habilidades necessárias para que se pudesse, efetivamente, falar em uma sociedade baseada no mérito.

E não é preciso devorar tratados filosóficos, porque tudo isso está nos documentos fundadores do liberalismo político e da noção moderna de democracia: a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; e as Constituições americana e francesa, ambas de 1791. Em que pese as diferenças, há neles alguns conceitos chaves firmemente reiterados: todos os homens nascem e são iguais, e a cada um deles deve ser assegurado o direito à liberdade, a propriedade e a busca da felicidade.

Poucas ideias trazem uma energia tão utópica quanto essas. E poucas doutrinas aspiraram tanto à igualdade quanto o liberalismo. E é lamentável que o que sobrou foi pouco, tão pouco, ao ponto de poder-se  hoje resumir ideias e projetos políticos tão engenhosa e criativamente urdidos em meia dúzia de sentenças doutrinárias infelizes, que cabem na caixa de comentários de um blog.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A monotonia conservadora

POR CLÓVIS GRUNER

Foi um bom ano para a direita conservadora. Nos últimos meses, Reinaldo Azevedo passou a destilar seu ódio em coluna semanal na Folha de São Paulo, além de manter seu blog na Veja; esta, por sua vez, contratou de uma tacada só Rodrigo Constantino, Lobão e Felipe Moura Brasil. Na coluna de estreia do último, entre felicitações e elogios, alguns leitores iniciaram uma campanha para que a revista contrate também Olavo de Carvalho (em tempo: eu não sabia quem era Felipe Moura, mas o Google me informa que ele foi idealizador e organizador do livro “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, de Olavo de Carvalho, título tão megalomaníaco quanto o autor das nada minimalistas 616 páginas).

Fora da constelação Abril, outros nomes conservadores já assinavam colunas periódicas em títulos distintos: Luis Felipe Pondé e Demétrio Magnolli são colunistas também na Folha; o imortal Merval Pereira assina semanalmente coluna em O Globo; Pedro Bial apresenta anualmente o Big Brother Brasil, e assim por diante. Trata-se de um cardápio variado de nomes e trajetórias: há nele jornalistas, dois professores universitários, um economista, um roqueiro, um astrólogo e um mau caráter. Com tamanha diversidade, seria legitimo supor igual variedade de ideias. Não é o caso.

A ofensiva conservadora é monotemática: não importa quem ou onde escreve, os conteúdos orbitam em torno a alguns lugares comuns, a maioria deles de uma inatualidade de dar dó. Invariavelmente o roteiro é mais ou menos o mesmo: um texto conservador que não denuncia o perigo do gramscismo, por exemplo, não é digno do nome. Outro item obrigatório é insistir que vivemos em uma “ditadura cubana” ou, na melhor das hipóteses, muito próximos de nos tornarmos uma Venezuela, ainda que a esmagadora maioria desses autores não titubeie em tecer elogios a outras ditaduras, a brasileira e a chilena, por exemplo. Nem reclame da chinesa, desde que ela continue a lhes fornecer bugigangas. Além de Gramsci, Cuba e Venezuela, coisas e expressões como Foro de São Paulo, FARCs, patrulhamento politicamente correto ou petralha, entre outros, sempre agregam valor ao camarote.

Mesmo quem, pela trajetória intelectual, poderia imprimir um tom dissonante à monofonia conservadora, escolheu reproduzi-la. Leia um texto assinado por Pondé e Magnolli, dois acadêmicos com trajetórias respeitáveis, farta e variada publicação intelectual, estágios no exterior (provavelmente com bolsas pagas a soldo público; afinal, achincalhar o Estado e a universidade pública é uma coisa, mas recusar uma temporadazinha europeia com dinheiro da CAPES, aí já é vandalismo). O nome deles está lá, mas se os trocássemos pelos de Rodrigo Constantino, Lobão ou Olavo de Carvalho, não faria a menor diferença. Como a nivelação se fez por baixo, não apenas inexiste diferença significativa entre eles, mas impera o apelo fácil aos medos e ressentimentos de uma parcela das camadas médias que se sentem ameaçadas por esse “Isso” que os porta vozes do conservadorismo afirmam ser “a esquerda”.

SANHA PERSECUTÓRIA – O segundo aspecto nada tem de caricatural. A perseguição, o achincalhe, a desqualificação, a destruição de reputações, a calúnia, tornaram-se o desdobramento algo lógico de um estado de coisas onde sobra paranoia e falta bom senso, quando não simplesmente escrúpulo. O episódio mais recente é desta semana. Em seu blog, Rodrigo Constantino “denunciou” o caráter doutrinador da IV Jornada de História da Historiografia, que acontece na UFRGS. Com base apenas no cartaz, repetiu a ladainha de que o evento “sobre Che Guevara” era mais um exemplo da catequização marxista e esquerdista que grassa nas universidades brasileiras, notadamente nas chamadas ciências humanas. E vaticinou: “a imagem de um facínora assassino estampada em um evento sobre o uso político da história? O que os alunos vão aprender? Como transformar um assassino frio e sedento por sangue em um herói da justiça social?”.

A afirmação de Constantino seria uma estultice se a jornada tratasse de Che Guevara - um evento sobre o nazismo, por exemplo, não pretende ensinar os alunos a serem nazistas nem tecer o elogio a Hitler. Mas não é o caso. O evento aborda as muitas maneiras pelas quais o passado é permanentemente revisitado e, neste sentido, o cartaz é um primor de comunicação visual. A poucos rostos do século XX foram atribuídos tantos e tão distintos significados quanto o de Guevara: do revolucionário que inspirou a luta contra o “imperialismo ianque” até a sua “mcdonaldização”, suas muitas faces sintetizam o objetivo do evento, que não trata dele, não falará dele, não pretende fazer dele nem apologia nem elegia simplesmente porque... não é um evento sobre Che Guevara.

O caso de Constantino não é único. Há algumas semanas o site “Escola sem Partido” empreende verdadeira campanha difamatória contra uma professora paulista, campanha que encontra eco e repercute em outros blogs conservadores e nas redes sociais. Em comum nestas e em outras ocorrências, há a recusa ao debate, substituída pela sanha inquisitorial. Tenho algumas hipóteses para este gesto. Há a sedução midiática, primeiro. A maioria dos hoje alçados à condição de oráculo vivia há até pouco tempo em um relativo ostracismo. Rodrigo Constantino, por exemplo, escrevia artiguetes no Orkut onde defendia a privatização dos tubarões e era ridicularizado até por liberais de direita. Uma maior visibilidade conservadora é, sob certo ponto de vista, reação ao avanço de forças, movimentos, grupos, ideias, pautas e indivíduos à esquerda, cuja simples existência é lida como uma ameaça.

Em tempos onde o ressentimento e o ódio tornaram-se dois dos principais afetos políticos, não espanta que seja assim. O outro não é um adversário a ser confrontado, mas um inimigo a ser eliminado. A caracterização homogênea da esquerda, beirando ao caricatural e que recupera alguns conteúdos típicos da Guerra Fria é, neste sentido, bastante reveladora. Ela aponta, entre outras coisas, para a dificuldade dos conservadores de conviver em um ambiente democrático e de livre circulação de ideias. Não é coincidência que sua prática reproduz justamente aquilo que eles pretendem denunciar como comum à esquerda: a ira persecutória, entre outras coisas, coloca em risco a democracia ao fragilizar ainda mais um já frágil espaço público, porque não reconhece no outro nem legitimidade nem o direito de dizer e pensar diferentemente.

Há quem defenda a necessidade de uma direita conservadora afirmando que faz parte da democracia o confronto de ideias, o debate aberto e público. Concordo. Mas qualquer debate público deve ancorar-se em princípios que são os da razão e o do respeito ao outro. E há exemplos de sobra de que racionalidade e respeito não fazem parte da postura da maioria dos conservadores, que não raro recorrem à desqualificação, ao desrespeito, à agressão e à humilhação pública, quando não a mentira pura e simples, como estratégias de um debate que, sob estas bases, não pode existir, não existirá, porque efetivamente não é o que eles desejam.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Desmilitarizar a polícia e a política



POR CLÓVIS GRUNER

Na mesma semana em que as imagens da polícia carioca reprimindo violentamente professores em greve correram o país, confirma-se que Amarildo foi torturado e assassinado por policiais da UPP da Rocinha, onde morava. Ambas as notícias reforçam a sensação de desacerto entre uma polícia militarizada e violenta e uma sociedade que se pretende democrática. Como já disse em outro texto, as instituições prisionais e policiais funcionam como imensos reservatórios da arbitrariedade e da violência cultivadas durante a ditadura civil militar. O gradual desmonte do aparato repressivo não alcançou o interior das penitenciárias, presídios, delegacias e quarteis de polícia, sinalizando o antagonismo entre as políticas de segurança pública e os esforços pela consolidação da democracia iniciado há quase três décadas.

Tal contradição é estrutural e consagrada pela Constituição de 1988, que prevê em seu artigo 144 a divisão de tarefas entre as polícias Militar (a quem cabe realizar o policiamento ostensivo) e Civil (responsável pela investigação policial). Trata-se de uma verdadeira distorção dos modelos que, supostamente, inspiraram a organização da polícia brasileira. Ainda que muitos países europeus possuam forças militares com funções de polícia – como são os casos da Gendarmerie Nationale, na França; dos Carabinieri, na Itália; da Guardia Civil, na Espanha; ou da Guarda Nacional Republicana, em Portugal –, sua estrutura e funcionamento são diferentes da nossa Polícia Militar, a começar pelo fato de serem nacionais, e não estaduais. Além disso, as atribuições de policiamento destas forças se restringem prioritariamente às áreas rurais; os policiamentos ostensivos e investigativos nas áreas urbanas são de responsabilidade das polícias civis. As gendarmarias europeias são, ainda, de ciclo completo, no que se assemelham às polícias americanas e inglesas. Nestes dois países, aliás, as polícias são exclusivamente civis.

REPENSAR E REESTRUTURAR A POLÍCIA – No Brasil, o treinamento militarizado é um dos responsáveis pela criação de uma das mais violentas polícias do mundo. Os números são assustadores. Em São Paulo, cerca de 2.200 pessoas foram mortas em supostos confrontos com a PM entre 2006 e 2010. No Rio de Janeiro, foram mais de 10 mil mortes entre 2001 e 2011. A atuação dos policiais nas manifestações iniciadas em junho evidencia uma cultura de confronto que está arraigada na PM e é velha conhecida dos moradores das periferias, historicamente os mais sujeitados à violência policial – e é sintomática a declaração do ex-membro do BOPE, Rodrigo Pimentel, ao ver um policial descarregar uma metralhadora para o alto durante um dos confrontos: “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano…” [os grifos são meus].

O recrudescimento da violência e o aumento de sua percepção (coisas próximas, mas ainda assim distintas) por um público mais amplo – o que se deve em parte à mobilização virtual nas redes sociais –, tirou das margens da agenda política o debate sobre a desmilitarização da polícia. No âmbito mais estritamente institucional, no começo desta semana um passo importante foi finalmente dado, com a apresentação da PEC 51, já batizada de PEC da Desmilitarização (clique no ícone "Texto inicial"). O projeto é extenso e não cabe aqui comentá-lo step by step. Mas há alguns pontos centrais que merecem ser destacados. 

GARANTIR DIREITOS – O primeiro é a definição e a função da polícia como instituição cujo propósito não é garantir a segurança do Estado, nem fazer a guerra contra suspeitos ou criminalizar movimentos sociais, mas promover e garantir os direitos dos cidadãos. Com a desmilitarização, a PM (hoje, força de reserva do Exército, “formada, treinada e organizada para combater o inimigo”) deixa de existir e cria-se uma polícia unificada e com carreira única. Além disso, toda polícia deve realizar o ciclo completo, exercendo o trabalho preventivo, ostensivo e investigativo e colocando fim ao fracionamento hoje característico da atividade policial. São os estados que definem o formato a ser adotado por suas polícias, bem como o grau de responsabilidade dos municípios na manutenção da segurança pública. Na prática, rompe-se com o modelo centralizado hoje previsto na Constituição e confere-se maior autoridade e autonomia aos estados e municípios na implementação de políticas de segurança pública. Não menos importante, aumentam os mecanismos de controle social, com a extinção, por exemplo, da Justiça Militar, e a criação de Ouvidorias externas.

Não apenas o trâmite da PEC será certamente demorado como, provavelmente, ela enfrentará a oposição de setores corporativos e de conservadores em geral, para quem pouco importa uma polícia democratizada e menos violenta e uma política de segurança realmente pública. Ciente desta e de outras dificuldades, o próprio texto prevê uma “implementação cuidadosa”, caso aprovado. Sua efetivação depende agora da mobilização daqueles realmente interessados em romper o ciclo de violência de nosso passado autoritário tão recente e hoje ainda presente nas instituições militares. Pessoalmente, acredito que poucas causas merecem tanto nosso engajamento.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A plutocracia de Joinville

POR CHARLES HENRIQUE VOOS


plutocracia
plu.to.cra.ci.a
sf (gr ploutokratía) 1 Influência preponderante dos ricos no governo de uma nação. 2 Classe influente ou dominante de homens ricos. 3 Sociol Dominação exercida por uma classe que deriva seu poder da riqueza material. (Fonte: Dicionário Michaelis)
 Deparei-me com esta palavra recentemente, e ao procurar seu significado, relacionei com várias situações que já convivi ou escrevi sobre, até mesmo aqui no Chuva Ácida. É impressionante como a nossa democracia, tão exaltada, está se tornando uma plutocracia em tão pouco tempo, considerando a aprovação da Constituição de 1988. E este é o mais perverso dos poderes.

No caso de Joinville, a democracia dificilmente será plena, aquela com influência de todos os cidadãos na hora da participação e deliberação sobre a coisa pública. A riqueza sustentada pelo trabalho, e as relações de poder que emanam do dinheiro, comungam juntamente com aqueles que necessitam destas para sobreviver, principalmente entre a maioria dos políticos partidários. A plutocracia joinvilense não é algo recente, mas advém das raízes da cidade. Para piorar, no século XXI o desenvolvimento de um grupo social que domina de acordo com seus interesses econômicos está cada vez mais claro, agudo e materializado em discussões específicas. É o caso da gestão democrática da cidade.


O Estatuto da Cidade, lei regulamentadora da política urbana brasileira e que foi uma vitória (mesmo parcial) dos movimentos populares pela reforma urbana desde os anos 60, exalta a participação de toda a população nas discussões que envolvem a cidade e suas políticas, de modo a garantir o pleno exercício da cidadania. Os artigos 2 e 45 são muito reveladores neste sentido:

Art. 2o. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.
 Entretanto, a obrigatoriedade de um CNPJ ou Estatuto Social para a eleição dos conselheiros do Conselho da Cidade de Joinville, garantida na justiça pela prefeitura (após decisões contraditórias de um mesmo magistrado), colocou em xeque toda a democracia de um processo. Ou seja: a lei garante a participação de todos (população e associações representativas), mas o poder executivo e judiciário flexibilizaram o Estatuto da Cidade para atender a demandas específicas de entidades empresariais da cidade (e da própria prefeitura), restringindo o debate a poucos movimentos, ao mesmo passo que cidadãos "com CPF" estariam excluídos do processo. Alguns dos atuais conselheiros (membros de entidades empresariais), antes das eleições, defendiam o CNPJ para "qualificar" o debate, pois o "cidadão com CPF" não seria capaz de participar das discussões.

Existem na cidade, portanto, dois conselhos: o Conselho da Cidade democrático, onde todos podem participar, e o Conselho da Cidade flexibilizado, com participantes escolhidos através de representatividades indiretas, graças ao CNPJ. O democrático está apenas na lei. O flexível é o que está discutindo as nossas políticas urbanas, colocando de forma prioritária (e apressada) a nova Lei de Ordenamento Territorial como pauta, conforme pediram, novamente, as entidades empresariais!


Os críticos a esta flexibilização são categoricamente desqualificados em redes sociais, jornais locais e em outros meios de comunicação. Uns acusam de serem especuladores (sic!), míopes, defensores de grandes industriários, donos do atraso, pessoas que não gostam de Joinville, e até mesmo de delinquentes e burros. O ataque sai do mundo das ideias e dos posicionamentos políticos, para se transformar em pessoais. Se não há argumentos...

Para finalizar, vale lembrar que esta desqualificação a pessoas e grupos contrários, bem como o uso de simbologias ligadas ao empreendedorismo e à importância da classe empresarial, considerando-a uma espécie de "salvadora da pátria", não são nada mais do que ficções para se preservarem privilégios (conseguidos através de flexibilizações) de uma minoria em detrimento do bem comum. A consequência disto para a gestão democrática da cidade de Joinville vai de encontro a tudo o que conhecemos como "o direito à cidade". Ou você acorda e começa a criar um senso crítico sobre as coisas, ou a plutocracia vai encontrando formas para se realinhar e sublimar sistemas democráticos conquistados perante muita luta popular.

A escolha é sua.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Não subestimem os jovens!

POR CLÓVIS GRUNER


Conheço e respeito a trajetória de Marilena Chauí, sua contribuição e importância na vida intelectual do país. Foi principalmente por isto que achei frágil sua análise das manifestações, compartilhada pelo Felipe em seu post da semana passada. Filósofa experiente, nem todo o Spinoza do mundo foi suficiente para compreender a nervura do real dos acontecimentos recentes. Se acerta no diagnóstico da causa – o “inferno urbano” e a necessidade urgente de repensar o transporte público e democratizar o acesso à cidade –, a filósofa uspiana se equivoca em quase todo o resto.
 
Há, por certo, seu petismo militante, a limitar sua interpretação: afinal, as manifestações afetaram os índices de aprovação da presidenta Dilma Rousseff e do prefeito Fernando Haddad. Informada por uma concepção de política que parece encerrá-la nos limites partidários, a leitura de Chauí chega a descaracterizar o próprio MPL, segundo ela “composto por militantes de partidos de esquerda”, o que não é exatamente correto. É esse mesmo critério que aparece na verdadeira inquirição feita aos manifestantes, como se fossem legítimas apenas aquelas movimentações conduzidas pelas bandeiras partidárias, com pautas e lideranças definidas em assembleia e com direito à questão de ordem.
 
Quando se propõe a analisar o papel das redes sociais, Chauí não se equivoca apenas. Não acredito que para falar de internet seja necessário ter uma conta ativa no Facebook ou no Twitter e manter um blog sempre atualizado no ar. Mas também não acredito que se compreende o seu funcionamento recorrendo ao bom e velho frankfurtês. Se já é complicado valer-se de Adorno para analisar, por exemplo, manifestações como o cinema, músicas populares como o jazz ou o rock (na verdade, qualquer outra que não a clássica) e a televisão, ainda mais difícil é tentar compreender fenômenos como as redes sociais por meio exclusivamente da “teoria crítica”.
 
Sem muito esforço, Chauí poderia evitar bobagens que beiram ao cômico. Dizer que as redes sociais assumem “gradativamente uma dimensão mágica (...) porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer”, revela não apenas sua desconexão com a realidade que procura analisar e entender, mas também seu desrespeito com aquilo que se recusa a compreender: convenhamos, é preciso uma dose generosa de má vontade para equiparar as manifestações chamadas pelo MPL à convocação para um show da Madonna.
 
ALIENADOS?  – O texto de Marilena Chauí revela uma dificuldade que não é apenas dela, mas de uma boa parte da esquerda, embasbacada diante daquilo que não compreende e não controla. Já disse em outra ocasião que não é a postura da direita que me surpreende. Assustada e cansada, a ela não interessa que as mobilizações evoluam para mudanças mais profundas ou para uma reforma política consistente, daí sua urgência em tentar atribuir às manifestações uma pauta genérica e oportunista: sem nem mesmo um rascunho de projeto para o país, há uma década a oposição sobrevive do “combate à corrupção”, como se tal expressão se revestisse, essa sim, de um “caráter mágico”.
 
Incomoda-me é a obtusidade de certa esquerda que, preocupada exclusivamente com as eleições de 2014, é incapaz de reconhecer o que há de singular nas manifestações: não estamos na luta contra a ditadura civil militar, nem na campanha pelas Diretas Já, e mais de 20 anos nos separam da última grande mobilização popular, que foi o impeachment de Fernando Collor. Deveria ser óbvio, mas não é: não se entende a singularidade deste momento se o analisamos à luz daqueles eventos e exigimos de jovens, ainda não nascidos em 1983 e alguns sequer em 1992, que ergam as mesmas bandeiras – que tenham o “mesmo foco” – que eram as nossas quando fomos às ruas há duas ou três décadas.
 
O que para muitos é falta de foco ou de uma bandeira, revela uma sensibilidade e uma inteligência capazes de captar demandas que, por dispersas que pareçam, são parte da experiência de uma geração felizmente desacostumada à ditadura e, por isso, mais atenta às fragilidades e contradições da democracia, bem como à necessidade de fazê-la avançar. Inclusive, construindo alternativas de participação e ocupação do espaço público que não exclusivamente as partidárias, porque sabe que a democracia não se constroi apenas nos limites das instituições formais e dos  partidos, e que nem só nestas esferas podem se produzir as mudanças.
 
Ao contrário do que afirmam, em um estranho uníssono, a mídia conservadora e parte de nossos intelectuais à gauche, uma parcela da juventude brasileira está nas ruas há muito tempo. São jovens, principalmente, os que ocupam as ruas para se solidarizar com as comunidades indígenas vitimadas pela truculência desenvolvimentista do Estado e das grandes empreiteiras; para denunciar a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; para protestar contra o preconceito e festejar a liberdade nas “Paradas da Diversidade”. São jovens, principalmente, os que chamam a atenção para as precárias condições de nossas escolas e de nossa educação; que dão as mãos a trabalhadores de diferentes categorias em seus movimentos reivindicatórios; que acusam o nosso racismo; que sofrem no corpo e denunciam corajosamente as muitas e cotidianas formas de violência policial.
 
As manifestações das últimas semanas só são uma novidade para quem, alheio ao que se passa nas ruas, não consegue perceber a diferença entre elas e um show da Madonna ou, pior, as associam aos movimentos fascistas e à “Marcha da família com Deus pela liberdade”. Quando findaram os eventos que durante semanas paralisaram parte da França, os estudantes parisienses mal e parcamente conquistaram aquilo que os motivou a ir às ruas, a reforma universitária.  Mas, como observou alguém recentemente, o "Maio de 68", se não mudou profundamente as instituições políticas francesas, transformou nossa forma de pensar e fazer política, de ouvir música, de ler, de trepar. Não subestimemos a juventude e sua capacidade de nos chamar a atenção para o que é atual no contemporâneo.