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quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Anatomia de um desastre

POR CLÓVIS GRUNER
Na última sexta (28), José António Baço, meu colega de blog, publicou texto onde, sob o título “10 razões para o fracasso de Bolsonaro”, defende que a candidatura do deputado fascista está, como o título sugere, “condenada ao fracasso”. E vaticina: “Perdendo ou ganhando, o fato é que o candidato nada tem a oferecer ao país. Não tem uma proposta. Não tem um programa. Não tem uma orientação”.

Tudo isso é verdade. Mas se concordo com Baço no varejo, discordo dele no atacado: independente do resultado das urnas, Bolsonaro é o grande vitorioso dessas eleições, e por diferentes razões. Uma mais imediata: mesmo que não se eleja presidente, sua candidatura mobiliza votos suficientes para garantir bancadas parlamentares numerosas e fortes o bastante para barganharem, com os governos, cargos e retrocessos.

Além disso, levaremos anos para reconquistar o mínimo de civilidade, se é que conseguiremos, no debate público, depois que naturalizamos excrescências até há pouco tratadas como exceção. O estrago que uma campanha movida à  fake news, disseminação do ódio contra minorias, intolerância à democracia, às liberdades individuais e aos direitos humanos os mais elementares causa, não pode nem mesmo ser mensurado no curto prazo.

Bolsonaro é, de fato, um fenômeno: na história política recente, apenas Eduardo Cunha rivaliza com ele quando se trata de comparar políticos que, oriundos do chamado “baixo clero”, ascenderam tão rapidamente a posições de prestígio. Mas, diferente do antigo aliado, Bolsonaro disciplinou a sede com que foi ao pote e sobreviveu ao tsunami que, em graus variados, atingiu parte do “alto clero” nos últimos dois ou três anos.

Foi isso, e não sua suposta honestidade (e quem o diz não sou só eu, mas o próprio, em entrevista ao Jornal Nacional), que o manteve longe das manchetes policiais. Por outro lado, ele foi hábil o suficiente para se descolar rapidamente tanto de seu passado próximo ao PT – ele pertenceu à base de sustentação dos governos Lula e Dilma –, quanto de sua aliança e de seu partido, o PSL, com o governo Temer.

Há muitas, inúmeras razões, para temer Bolsonaro. Democratas à esquerda e à direita, têm alertado para os constantes ataques do candidato às minorias, seu desprezo às liberdades individuais e aos direitos humanos, e do quanto isso, entre outras coisas, compromete a imagem do país entre as nações desenvolvidas. Mas boa parte de seu eleitorado parece disposto a votar nele, não apesar, mas justamente por isso.

Como na Venezuela – Talvez porque se sintam desconfortáveis em viver em um país onde, como em sociedades de democracia mais estável, mulheres, negros e LGBTs têm seus direitos os mais básicos garantidos – por exemplo, o de perceberem salários iguais ou de não serem agredidos e assassinados em função de sua etnia e orientação sexual. É possível que vejam em Bolsonaro a possibilidade de voltarmos a algum estágio anterior, mais próximo da sociedade do século XIX, época em que, acreditam, a família tradicional brasileira não era ameaçada pelas minorias.

Mas Bolsonaro não representa apenas um atraso civilizacional, nos costumes e liberdades. Um passeio por suas declarações e de alguns de seus principais assessores, como o candidato à vice, o general Mourão, e o pretenso futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, além de uma leitura atenta de seu programa de governo, sinalizam mais claramente que o retrocesso será muito mais amplo. E nem seus eleitores mais devotos escapam dele.

O general Mourão, por exemplo, já falou em “autogolpe” e em “Constituição sem constituinte”, redigida, de acordo com ele, por um grupo de “notáveis” e submetida depois ao crivo de um referendo popular, sem a interferência da oposição. Uma proposta semelhante ao processo que culminou, na Venezuela chavista, com a promulgação da Constituição bolivariana que vigora por lá atualmente.

Em entrevista recente, o próprio Bolsonaro afirmou não reconhecer outro resultado que não a sua vitória, e já defendeu também a ampliação de 11 para 21 o número de ministros no STF, para que possa nomear a maioria dos juízes durante seu mandato. Não sei se os comentaristas anônimos sabem, mas foi o que fizeram os generais brasileiros e também Hugo Chávez, na Venezuela, e por uma razão: controlar o judiciário é um dos princípios elementares de qualquer ditadura, à direita e à esquerda.

Mas talvez você seja daqueles que acredita na existência de ditaduras do bem, as de direita. E não se importa com porões clandestinos funcionando, quem sabe para eliminar de vez os tais 30 mil que a ditadura brasileira deixou de matar, desde que o Estado seja eficiente e o mercado, livre. Bom, nesse caso, sugiro revisitar urgentemente o histórico de votações de Bolsonaro em seus pouco produtivos 30 anos como deputado federal.

Ele pode ter mudado, é verdade. Mas temo que não para melhor. Mourão já vociferou contra o 13º, essa “jabuticaba” paga aos trabalhadores brasileiros – ele não parece incomodado com os cerca de 5 bilhões gastos anualmente em pensões a filhas solteiras de militares. Bolsonaro votou a favor da reforma trabalhista e defende a criação da carteira de trabalho verde-amarela, que não garante os direitos da tradicional carteira azul, e que costuma vender como solução ao desemprego.

Uma singular noção de eficiência – Sabemos no bolso de quem tais medidas impactarão mais drasticamente: nos mesmos que pagarão mais com a alíquota única do Imposto de Renda. A proposta de Paulo Guedes e Bolsonaro, de um percentual único de 20%, favorece quem tem renda maior e pagará menos imposto, e obriga os de baixa renda a desembolsar mais. Traduzindo: ganham os mais ricos, perdem os mais pobres. E há o retorno da CPMF; Guedes o defende, Bolsonaro diz que não. Mas como se trata de um mentiroso contumaz, não há porque acreditar nele.

Tem mais? Tem. Bolsonaro é contra o Bolsa Família; acha que a “molecada” tem “tara pelo ensino superior”, e por isso quer limitar o acesso dos menos favorecidos às universidades públicas extinguindo as cotas; defende o ensino à distância desde a alfabetização; e aposta na disciplina espartana do ensino militarizado, alheio ao fato de que qualidade em educação depende principalmente de investimentos que, entre outras coisas, valorizem os professores, suas carreiras e seus salários.

A única novidade do programa de Bolsonaro naquilo que ele afirma ser especialista, a segurança, é garantir que o cidadão comum, sem nenhum tipo de preparo ou treinamento, seja responsável direto pela sua proteção e do seu lar. Afinal, para que política pública se o “cidadão de bem” está disposto a morrer defendendo ele mesmo as fronteiras do lar e, de quebra, armar o bandido, só pelo prazer de portar e exibir um segundo falo?

Antes de levar um “cala a boca” e ser obrigado a cancelar suas aparições públicas, Paulo Guedes, cuja carreira era obscura até encontrar um beócio para chamar de seu, defendeu zerar o déficit público em um ano vendendo todas as estatais e todos os terrenos do governo federal – a proposta está no programa de governo de Bolsonaro. A expectativa, afirma, é conseguir arrecadar até 1 trilhão de reais aos cofres públicos.

Não sei dizer se por “todos os terrenos” devemos entender também os que incluem prédios públicos, e se Bolsonaro pretende transferir a estrutura governamental para imóveis alugados. Mas economistas sérios já alertaram para o fato de que a participação do governo nas estatais passa longe do trilhão – gira em torno de 140 bilhões. Além disso, não é possível privatizar todas as estatais em apenas um ano – vender empresas públicas não é como ir à feira no final de semana.

Anti-petistas, o grosso do eleitorado de Bolsonaro, costumam acusar quem votou em Dilma Rousseff na última eleição, de sabermos o que estávamos a fazer e que, por isso, não há motivos para reclamação. Na devida proporção, eles têm alguma razão. Mas devolvo a provocação: o desastre social, político e econômico de um governo Bolsonaro está devidamente anunciado. E demasiadamente explicado para desautorizar dizer depois: “eu não sabia”.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

E se fosse #ElaSim?


POR CLÓVIS GRUNER
Mereceria uma leitura mais cuidadosa o fato de que, mesmo entre setores da esquerda que atentam para a urgência das pautas identitárias, a candidatura de Marina Silva não tenha sido nem mesmo cogitada como uma alternativa ao segundo turno. Não bastasse serem três homens a protagonizarem as candidaturas de centro esquerda, dois deles, os que disputam nominalmente o voto – Ciro e Haddad – têm vices mulheres relegadas a um papel coadjuvante.

Os argumentos mais comuns contra Marina são simplistas, quando não desonestos. Pesa contra ela o apoio a Aécio no segundo turno de 2014, um equivoco, já que ela podia simplesmente não apoiar nenhuma das candidaturas, como Luciana Genro. Mas a atitude não me parece mais grave que as alianças que o PT fez com quase toda a banda podre da política brasileira, incluindo Michel Temer, escolhido a dedo por Lula para vice de Dilma, por exemplo.

Ela é acusada de ser de direita, mas nada em sua trajetória passada e presente sustentem isso. Sua aproximação a economistas liberais como Eduardo Gianetti é supostamente a prova de seu neoliberalismo, dizem os petistas, olvidados de que Henrique Meireles foi o homem forte da economia nos governos Lula, que Dilma nomeou Joaquim Levy seu Ministro da Fazenda, e que Fernando Haddad, mal subiu nas pesquisas, já acena ao também liberal Marcos Lisboa.

Um debate não polarizado – A lógica vale para a acusação de que, evangélica, Marina fará um governo “conservador nos costumes”, como se as administrações anteriores, incluindo e principalmente as do PT, tivessem assegurado a plena laicidade do Estado. Até prova em contrário, o Estado laico está menos fragilizado com a orientação religiosa de Marina, do que estava quando Lula nomeou pastores da IURD como ministros ou Dilma rifou a Comissão de Direitos Humanos, abrindo as portas para que Marco Feliciano assumisse sua presidência.

O seu programa de governo, por outro lado, reafirma o que Marina efetivamente representa: uma candidatura de centro esquerda, com as pautas, os limites e as possibilidades atinentes a uma candidatura de centro esquerda. Suas propostas em áreas como educação, cultura e direitos humanos, por exemplo, não diferem substancialmente do que propõem Lula/Haddad e Ciro, e mesmo avançam em alguns pontos.

Seu alegado liberalismo não a impede de defender os investimentos públicos como um dos fatores para alavancar a economia, ou a não privatização da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica. Além disso, ela mantém uma relativa autonomia frente aos grupos políticos que disputam hoje a presidência baseados na polarização extrema, uma maldição que não poupou o PSOL e, tampouco, Ciro. Com Marina, penso que teríamos a chance de algum debate racional, e poderíamos fazer nossa escolha baseados em outros critérios que não o ódio ou o medo.

***

Post Scriptum: Braziliansplaining – Na semana passada, ainda com o 7 a 1 da Copa de 2014 atravessado na garganta, brasileiros decidiram acertar as contas numa seara onde somos craques: a história alemã. Um vídeo publicado pela Embaixada da Alemanha mobilizou nossos melhores atletas, que entraram em campo decididos a explicar aos alemães que o holocausto não existiu e que o nazismo é, sim, de esquerda.

Como aparentemente nem a Alemanha é suficiente para convencer nossa direita pouco esclarecida, vou tentar com o próprio Adolf Hitler. Em entrevista concedida em 1923 ao escritor alemão George Sylvester Viereck, publicada anos depois pela conservadora “Liberty”, e acessível aos leitores coevos no site do inglês “The Guardian”, Hitler explica o que entende por socialismo, sua relação com a noção de raça ariana e porque o nazismo não era um movimento de esquerda.

Em um dado momento, para enfatizar seu ponto de vista e o que o separava do marxismo e dos bolcheviques, o líder alemão sentencia: “Nós poderíamos ter nos chamado de Partido Liberal”. Como historiador, posso assegurar que Hitler estava equivocado: não há muito de liberal ou do liberalismo no Partido Nazista. Por outro lado, e os comentaristas anônimos desse blog não cansam de me lembrar, a palavra de um historiador, no Brasil de hoje, não vale nada. 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Não há o “melhor dos mundos”

POR CLÓVIS GRUNER
Uma prisão em Curitiba talvez tenha, nas eleições presidenciais, repercussão equivalente ao de uma facada em Juiz de Fora. Me refiro, obviamente, à prisão do ex-governador Beto Richa ontem pela manhã (11), em ação conjunta dos Ministérios Públicos estadual e federal, e ao atentado contra o candidato a presidente e fascista de estimação dos comentaristas anônimos do blog, Jair Bolsonaro, na quinta última (06).

A quantidade e a variedade de investigações envolvendo Beto Richa são tantas, que até pra quem vive aqui foi difícil entender. Ele foi preso, provisoriamente, pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), suspeito de fraude em licitações de obras públicas do Programa Patrulha do Campo. A Lava Jato pegou carona – a coincidência não foi por acaso – e deflagrou a “Operação Piloto”; Richa aparece nela como suspeito de receber propinas da Odebrecht.

É bastante provável que a prisão de Richa repercuta eleitoralmente também fora do Paraná, onde ele é um dos favoritos a uma das vagas para o Senado. Considerado há até pouco tempo, junto com Aécio Neves, uma das principais vitrines do PSDB e promessa de renovação do tucanato, sua prisão pode sepultar de vez as chances de Alckmin, cuja candidatura já se encontrava relativamente estagnada, disputar o segundo turno.

De certo até agora, é que Jair Bolsonaro vai mesmo para o segundo turno, ao menos de acordo com as pesquisas Datafolha e Ibope divulgadas, respectivamente, na segunda (10) e ontem. O levantamento do Ibope, embora divulgado depois, foi realizado antes – nos dias 8, 9 e 10 de setembro –, e seus resultados podem estar influenciados mais diretamente pelos ânimos eleitorais imediatamente após o atentado.

A pesquisa Datafolha, realizada no dia 10, parece representar melhor o ambiente em que a facada contra Bolsonaro, e a comoção que ela provocou, tende à acomodação. De todo modo, em ambas, Bolsonaro mantém uma dupla liderança: a de intenções de voto (26% no Ibope e 24% na Datafolha) e a de rejeição (41% e 43%, respectivamente). E embora os resultados não sejam tão dispares, uma nova pesquisa oferecerá um retrato mais preciso do quanto os últimos eventos podem influenciar nas eleições. 

Diferentes fatores podem ter colaborado para, apesar de vítima, Bolsonaro não ter ampliado ainda mais sua vantagem. Uma facada, afinal, não muda o caráter e o programa de um candidato. Mesmo hospitalizado, Bolsonaro ainda é o presidenciável que quer trabalhadores escolhendo entre ter empregos ou direitos, ou seus eleitores expostos à violência ao defender que não cabe ao poder público, mas ao cidadão, a responsabilidade pela sua segurança, por exemplo.

Auto golpe e voto útil – Os usos políticos da facada também não colaboraram. O senador Magno Malta compartilhou uma montagem grotesca onde o autor do atentado aparece em um comício de Lula; Silas Malafaia afirmou que ele era assessor da campanha de Dilma Rousseff; Janaína Paschoal o associou ao “Lula Livre” e acusou a imprensa de esconder o fato. Foram coerentes, porque não se esperava nada diferente. Mas é possível que tenham perdido a chance de ampliar a penetração do candidato junto aos eleitores ainda indecisos.

Persiste a dúvida sobre quem será o nome a disputar com ele o segundo turno, e também nisso as pesquisas reforçam alguns medos e sugerem possíveis tendências. Cresce o temor de que Haddad, ungido ontem candidato por Lula, seja prejudicado pela alta rejeição dos eleitores ao PT. Em ambas as pesquisas, Bolsonaro perde em todos os cenários, menos com o petista, de quem ganha na pesquisa Ibope, e empata tecnicamente na do Datafolha.

Como reação, já se discute abertamente, em grupos de eleitores à esquerda, a possibilidade do voto útil em Ciro ainda no primeiro turno. Uma disputa entre ele e Bolsonaro evitaria, entre outras coisas, que se repetisse, ainda mais violenta, a polarização de 2014, cujos resultados conhecemos: a vitória apertada de Dilma, um governo fragilizado ante uma oposição fortalecida e com medo da cadeia, e a turbulência dos meses seguintes até o “grande acordo” e o impeachment.

A estratégia, obviamente, depende em parte do PT, que durante anos defendeu o “voto útil” para evitar o “mal maior”, como em 2014, inclusive. Quer dizer, para dar certo, o PT precisaria provar que a tal Frente Antifascista, anunciada ano passado, foi mais que uma bravata eleitoreira e aceitar avaliar a sério quais as chances e os riscos de Haddad, e pesar na balança se as chances compensam os riscos. Pessoalmente, acho improvável que isso aconteça.

Nos últimos dias, por exemplo, os mesmos militantes que não viram problema em ter Kátia Abreu como ministra e aliada de Dilma, lembraram repentinamente que a candidata a vice de Ciro é representante do agronegócio, e passaram a usá-la como pretexto para anunciar um futuro sombrio em caso de vitória da chapa. O argumento central é que um segundo turno entre Bolsonaro e Ciro “não é o melhor dos mundos”. Concordo.

Mas em uma eleição onde a chapa que lidera em todas as pesquisas fala em “auto golpe” e em “declaração de guerra” contra adversários políticos, e cujo candidato dissemina e alimenta um ódio contínuo contra a democracia, os direitos e liberdades individuais, soa temerário esperar “pelo melhor dos mundos”. Se Ciro não convence inteiramente, a imagem de Haddad abraçado com o “golpista” Renan Calheiros e seu filho, tampouco inspira confiança. Nenhum deles é o “melhor dos mundos”. Mas, convenhamos, não podemos nos dar a esse luxo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Bolsonaro, a facada e as eleições

POR CLÓVIS GRUNER
Em março desse ano, quando a vereadora Marielle Franco, do PSOL carioca, e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados, ela com três tiros na cabeça, o deputado Jair Bolsonaro, à época já presidenciável, silenciou. Um de seus assessores justificou o silêncio alegando que “a opinião de Bolsonaro seria polêmica demais”. Dois outros membros da família, no entanto, se manifestaram.

O deputado estadual pelo Rio, Flávio Bolsonaro, chegou a prestar condolências à família em um tuite para, logo depois, apagá-lo. Já Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo, tuitou: “Se você morrer seus assassinos serão tratados por suspeitos, salvo se você for do PSOL, aí você coloca a culpa em quem você quiser, inclusive na PM. Eis o verdadeiro preconceito, a hipocrisia”. E compartilhou outro, de um ferrenho seguidor do clã: “O assassino da vereadora Marielle Franco, se for um PM guilhotina, se for um traficante é vítima da sociedade. Assim é a esquerda”.

Quase seis meses depois, o assassinato de Marielle Franco continua impune, apesar dos alegados esforços da polícia para elucidá-lo. E mesmo sendo um candidato supostamente preocupado com a segurança pública, Bolsonaro segue silente sobre o crime. Mas se não sabemos até hoje sua opinião polêmica sobre os três tiros que executaram Marielle e Anderson, sabemos o que o candidato pensa a respeito de outras violências.

Sabemos que ele sugeriu terem sido os petistas que atiraram contra a caravana de Lula no interior do Paraná. Sabemos, também, que ele prometeu – em uma de suas típicas “brincadeiras” – fuzilar os mesmos petistas em um comício, semana passada. Sabemos ainda o que ele pensa de mulheres, negros, quilombolas e LGBTs e, finalmente, de seus muitos elogios e homenagens a um torturador, estuprador e assassino, o coronel e chefe do DOI-CODI, Brilhante Ustra. A lista é grande, mas paro por aqui.

Minha reação imediata quando soube do atentado, no final da tarde de ontem, foi de ceticismo. Na minha página do Facebook, escrevi: “Se não for um novo Riocentro, algum imbecil escolheu uma péssima hora pra brincar de Justiceiro”. A desconfiança era mais que legítima: aí estão, além do Riocentro, o incêndio ao Reichstag como evidências históricas de que fascistas, sempre que lhes convém, mandam os escrúpulos às favas.

Violência e oportunismo – As informações nas horas seguintes desfizeram as suspeitas e confirmaram que Jair Bolsonaro foi vítima de um atentado à faca, e que deve ficar de fora da campanha eleitoral – o que inclui os debates, no que a agressão foi providencial – até o fim do primeiro turno. À direita e à esquerda, analistas parecem não ter dúvidas de que, se as chances de um segundo turno com Bolsonaro eram significativas, desde ontem a questão é saber de quem será a outra vaga.

A tendência é que os usos políticos que ele e seus seguidores farão do acontecimento, sigam na direção de apresentá-lo como vítima porque ameaçava “tudo que está aí”, num esforço narrativo que pretende consolidar sua imagem como aquilo que obviamente não é: um candidato antissistema. A estratégia é aproveitar a violência contra Bolsonaro para diminuir a enorme rejeição contra ele e, ao mesmo tempo, inflar ainda mais o ódio contra seus adversários e a esquerda.

Pode dar certo, o que coloca os demais candidatos, especialmente os de centro-esquerda, em uma posição delicada: se persistem nas criticas, podem ser vistos como insensíveis; se recuam, deixam o campo aberto à militância pró-Bolsonaro monopolizar as narrativas de vitimização do candidato e culpabilização dos grupos adversários, jogados na vala comum da “esquerda” e representados como responsáveis pelo atentado, porque a eles supostamente interessa que ele esteja fora da disputa.

Nessas horas, dizer que Bolsonaro colheu o que plantou, a violência, não faz diferença, embora seja verdade. Desde ontem, da alta cúpula do partido à militância anônima das redes e nas ruas, a narrativa é a mesma, e sua ausência física na campanha não diminuirá o efeito eleitoral do atentado, que torna ainda mais agudo um ambiente político já extremamente polarizado.

E se alguém tinha alguma ilusão sobre a possibilidade de Bolsonaro refletir sobre as consequências de seus discursos de ódio e de sua defesa da violência como método, as declarações do presidente do PSL, Gustavo Bebianno, à Folha – “agora é GUERRA!!” –, e do candidato à vice, o general Mourão – “os profissionais da violência somos nós” –,   trataram de desfazê-la. Estamos lidando com o pior da política, com um fascista, um apologista da tortura que rende homenagens a um assassino fardado. Um atentado não muda o que Bolsonaro é nem o perigo que sua candidatura representa.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

No domingo, um pedaço do futuro ardeu

POR CLÓVIS GRUNER
“O Brasil é um país onde governar é criar desertos. Desertos naturais, no espaço, com a devastação do cerrado, da Amazônia. Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo”. O depoimento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é uma das imagens que melhor sintetiza o significado do incêndio que, no domingo (02), destruiu boa parte da estrutura física e do acervo do Museu Nacional, onde Viveiros de Castro é professor.

A tragédia, que consumiu um dos mais valiosos patrimônios históricos e culturais da América Latina, além de um acervo riquíssimo de ciências naturais, vinha sendo anunciada há muito tempo. Apesar do corte brutal de verbas, fruto das políticas de austeridade praticadas pelo governo Temer e que impactaram negativamente no orçamento do Museu, o descaso com a instituição vinha de longa data.

Em 2004, matéria da Agência Brasil alertava para o risco de incêndio ante as condições precárias do prédio. Nada foi feito. Mais recentemente, em 2014, uma verba de R$ 20 milhões foi incluída no Orçamento da União para custear, entre outras coisas, a modernização de seus espaços e equipamentos culturais. O governo Dilma, no entanto, contingenciou os recursos, que nunca foram empenhados e repassados à direção do Museu Nacional.

As condições de funcionamento se agravaram sensivelmente, ano após ano. Em 2016, ele chegou a fechar as portas para visitação, cuja frequência também diminuiu sensivelmente, em parte por conta da precariedade das instalações. Acompanhando o estrangulamento financeiro das Universidades públicas, – o Museu é subordinado à UFRJ –, o orçamento caiu para menos da metade nos últimos cinco anos; em 2018, a verba de manutenção foi de R$ 98 mil.

Ignorância e má fé – Desde o domingo, o Museu virou objeto de discursos inflamados e escandalizados. O problema é que parte deles está mais empenhado em espalhar boatos baseados em mentiras e desinformação. Uma dessas vozes foi a do Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, que não apenas se mantém no cargo – qualquer governo decente já o teria demitido –, como o usou para desqualificar a UFRJ e fazer jogo político baixo, culpando o reitor da Universidade pelo incêndio.

Entre outras estultices, Sérgio Sá afirmou que a reitoria deveria ter buscado recursos em outras fontes, já que o orçamento público era insuficiente. Nos últimos anos, seis projetos de preservação e recuperação do Museu Nacional foram aprovados pela Lei Rouanet. Mas como os recursos precisam ser captados na iniciativa privada, as verbas não vieram, pois nossos empresários não se importam: dos R$ 17,6 milhões autorizados, a direção do Museu conseguiu captar no mercado, apenas R$ 1,07 milhão.

No primeiro semestre desse ano, um convênio com o BNDES, que o ministro de Temer se jacta de ter intermediado, garantiu ao Museu o repasse de quase R$ 22 milhões. Mas a verba foi contingenciada por conta das restrições do período eleitoral e só seria liberada, parceladamente, depois das eleições de outubro. Ironicamente, uma parte dela seria investida em infraestrutura para a prevenção de incêndios.

Um pequeno cartaz fixado na entrada do “Museo de la Memoria”, em Montevideo, informa aos visitantes: “Más memoria. Más futuro”. A mensagem é clara: sem uma ideia de passado, sem um conhecimento prático do passado possibilitado por instituições como o Museu Nacional, é o nosso horizonte de expectativas que resta vazio. As chamas de domingo destruíram parte de nosso patrimônio passado, mas incineraram também um pedaço do nosso futuro.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Nunca existiu um “kit gay”

POR CLÓVIS GRUNER
A família Bolsonaro nutre uma obsessão patológica pela homossexualidade e os homossexuais. Há quem sugira que Jair Bolsonaro e os filhos, no fundo, odeiam a imagem de si que veem refletidas nos homens gays. Não é uma alternativa a ser inteiramente descartada, porque é lícito supor que alguém que odeia tanto e tão intensamente seja, de algum modo, atormentado por sabe-se lá quais e quantos demônios internos.

A mais recente manifestação da homofobia do candidato foi essa semana, durante a entrevista de Bolsonaro à bancada do Jornal Nacional, na terça (28). Indagado sobre suas muitas declarações homofóbicas, o deputado voltou a falar do “kit gay”. E para provar que era tudo verdade, mencionou a realização, em 2010, do “9º Seminário LGBT Infantil” e a distribuição de um livro às escolas públicas, parte da estratégia da URSAL para desviar “crianças de seis anos” do caminho natural da heterossexualidade.

Vamos por partes. Nunca aconteceu um “Seminário LGBT Infantil”, muito menos nove deles. O livro que Bolsonaro insistiu em mostrar durante a entrevista, “Aparelho sexual & cia.”, de autoria da escritora francesa Hélène Bruller e com ilustrações do suíço Philippe Chappuis, já foi publicado em mais de 10 países e vendeu cerca de dois milhões de exemplares desde seu lançamento, em 2001. No Brasil, saiu pela Companhia das Letras, que negocia seu relançamento – a obra está esgotada há alguns anos.

Mas as duas mentiras “menores” emolduram uma primordial: nunca existiu um “kit gay” e, obviamente, nunca houve a intenção de distribuir cartilhas sobre “ideologia de gênero” (essa excrescência conservadora) nas escolas públicas para “crianças de seis anos”. Bolsonaro mente e, por ignorância, má fé ou simplesmente preconceito, milhares de pessoas passaram os últimos dias compartilhando e espalhando a mentira.

“Escola sem Homofobia” – Em 2011 o MEC criou a campanha “Escola sem Homofobia”, uma iniciativa institucional com o intuito de propor atividades e o debate em torno ao tema da homofobia. Além de três vídeos explicando casos de homossexualidade, bissexualidade e transexualidade entre jovens, aos professores seriam entregues cartilhas e material de apoio para a discussão com os alunos, de acordo com a faixa etária das turmas.

A campanha tampouco era voltada a “crianças de seis anos”, mas à turmas de Ensino Fundamental 2 (6º a 9º anos) e Ensino Médio. Além dos conteúdos mais específicos sobre educação sexual e temas transversais – prevenção de DSTs, gravidez na adolescência, etc.. –, os vídeos (disponíveis no YouTube) e o material destinado a docentes reforçavam a importância de combater as muitas manifestações de preconceito, entre ele os de gênero, comuns entre adolescentes no ambiente escolar.

A campanha, no entanto, nunca chegou a ser desenvolvida porque Dilma Rousseff, para não perder os votos dos deputados conservadores – entre eles, do próprio Jair Bolsonaro, à época parte da base aliada da presidenta na Câmara – dobrou-se à pressão de grupos religiosos e a vetou. Não seria a única vez, aliás, que o governo do PT negociou direitos das chamadas minorias em troca de votos, no parlamento ou fora dele.

O preconceito fere e mata – É lamentável, em pleno ano de 2018, ser obrigado a dizer o óbvio: nenhum vídeo, cartilha ou discussão sobre homofobia no ambiente escolar vai interferir na orientação sexual de alguém. Tampouco está em curso a implantação de uma “ditadura gay” a ameaçar a “tradicional família brasileira”, seja lá o que os reacionários entendem por isso.

Mas discutir e prevenir a homofobia na escola pode contribuir significativamente para melhorar a qualidade de vida de muitos adolescentes. Porque nas escolas há tanto alunos e alunas que se identificam com a heterossexualidade, como há alunas e alunos gays, lésbicas e trans. Mas, diferente de seus colegas, elas e eles não se sentem confortáveis nem seguros em sua orientação, porque diariamente expostas e expostos ao preconceito e às suas muitas formas de violência.

Pesquisas têm mostrado que o bullying homofóbico colabora para elevar os índices de repetência e evasão escolar e de suicídio entre adolescentes – na semana passada, em Denver, nos Estados Unidos, um menino de nove anos tirou a própria vida após ser ridicularizado na escola pelos colegas. A campanha “Escola sem Homofobia” pretendia atacar de frente esses problemas. Jair Bolsonaro e aqueles que corroboram as suas mentiras, colaboram para naturalizá-los.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Meninos não choram

POR CLÓVIS GRUNER
Um edital de concurso público que selecionará 16 cadetes para a Polícia Militar do Paraná virou notícia nacional na segunda (13). É que entre os critérios da avaliação psicológica, responsável por analisar se os candidatos têm o perfil adequado para a função, aparecia “Masculinidade”, entendida como a “capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”.

Ainda segundo o edital, a “masculinidade” do candidato ou da candidata – já que, ironicamente, a seleção é aberta também a mulheres – deveria ser apresentada em grau maior ou igual a regular. Com a repercussão, a PM paranaense decidiu retificar o edital, substituindo o critério por “Enfrentamento”, descrito mais sucintamente como a “capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades e de não emocionar-se facilmente”.

Em “História das lágrimas”, a historiadora francesa Anne Vincent-Buffaut mostra como um certo padrão de masculinidade é forjado e naturalizado principalmente ao longo do século XIX. Em substituição ao aristocrata dos séculos anteriores, de quem se esperava, além de alguma vaidade, a capacidade de externar sentimentos, o homem burguês do oitocentos é duro, frio e refratário às emoções.

Não se interessar por “histórias românticas e de amor”, leituras por demais femininas, era parte desse novo padrão de masculinidade, talhado para um espaço público representado como um lugar de disputa e de constante concorrência. Mas essa associação obtusa entre masculinidade e agressividade, ainda que grave, me parece o menor dos problemas. Mais delicada é a concepção de polícia que ela revela e, por consequência, aquilo que o governo espera dos novos policiais.

Precariedade e desumanização – Nesse sentido, tão significativa e preocupante como a “masculinidade”, é a baixa exigência para critérios como “Amabilidade” (“Capacidade de expressar-se com atenção, compreensão e empatia (...) buscando ser agradável, observando as opiniões alheias, agindo com educação e importando-se com suas necessidades”); “Liberalismo” (“Capacidade de abertura para novos valores morais e sociais”) ou “Busca por novidades” (“Capacidade de vivenciar novos eventos e ações”), por exemplo.

A rigor, o edital de agora reverbera a intenção, que não é nova, de que policiais militares sejam focados em seguir comandos sem considerar a natureza da ordem – como, por exemplo, massacrar docentes e discentes em praça pública: em 2012, ao rejeitar a exigência de curso superior para ingresso na PM, o governador Beto Richa associou a formação universitária a um possível aumento na insubordinação. Estamos a falar de um governante que já manifestou inúmeras vezes seu desprezo pela educação, mas sua fala encontrou resistência mesmo entre alguns oficiais.

Não se trata, obviamente, de uma concepção restrita ao governo paranaense. O modelo militarizado, herança da ditadura e consagrado pela constituição de 1988, é um dos responsáveis pela criação de uma das mais violentas polícias do mundo. Uma truculência, inclusive, que não se traduz em resultados: apesar dos gastos exorbitantes em segurança pública – em 2016 foram 81 bilhões de reais investidos –, seguimos assistindo a escalada enorme das muitas formas de violência.

A policial é uma delas. E não há sinais de recuo, entre outras coisas porque os governos e muitos eleitores, além de um certo candidato, esperam da polícia que ela defenda, principalmente, a segurança do Estado e promova uma guerra constante contra direitos e liberdades que deveria, justamente, garantir. A desumanização dos policiais, que começa com os baixos salários e as condições precárias de trabalho, e se desdobra na exigência de que se comportem como sociopatas, não é acaso ou deslize. É um projeto.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Abortar não é crime; é saúde pública

POR CLÓVIS GRUNER
Encerrou na segunda (06) a audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber, do STF, para discutir a ADPF 442, ajuizada pelo PSOL em novembro de 2017, que descriminaliza o aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gestação. Durante dois dias – a audiência começou na sexta-feira (03) –, representantes de 50 entidades apresentaram argumentos favoráveis ou contrários à descriminalização.

Uma das principais referências sobre o tema no Brasil e coordenadora da Pesquisa Nacional do Aborto, a antropóloga Débora Diniz (que chegou ao Supremo com escolta policial depois de ser ameaçada de morte pelos defensores da vida) fez uma das falas mais contundentes. Ancorada nos dados da pesquisa que coordenou em duas ocasiões – 2010 e 2016 –, ela apresentou um perfil minucioso do aborto no Brasil, uma prática recorrente, mas que, ilegal, é responsável pela morte de inúmeras mulheres e motivo ou ameaça de prisão para outras tantas.

De acordo com a PNA, cerca de 15% das mulheres entre 18 e 39 anos já fez pelo menos um aborto. O índice é maior – aproximadamente 18% – se tomadas como referência apenas as mulheres entre 35 e 39 anos. Na média geral, uma em cada cinco mulheres já fez aborto. O índice é maior nas regiões Norte e Nordeste – 15% e 18%, respectivamente, contra 11% e 6% no Sudeste e Sul. O corte étnico, de classe e nível de escolaridade também é significativo: 22% das mulheres que cursaram até a quarta séria já fizeram aborto, o dobro daquelas com nível superior.

O fenômeno se repete se tomada a renda familiar: 16% das mulheres com renda de até um salário mínimo já abortaram, contra 8% das com renda acima de cinco salários. Algo em torno de 25% de mulheres pretas, pardas ou indígenas já abortaram, índice bastante superior aos 9% de mulheres brancas. Ou seja, mais que uma excepcionalidade, o aborto é uma prática comum entre mulheres comuns. O incomum é sua criminalização, e é sobre ela que precisamos falar.

Um debate público – Um dos argumentos favoráveis à descriminalização, é de que não se trata de uma decisão simples, que acarreta quase sempre danos físicos e emocionais a quem o faz. A premissa é verdadeira e bem intencionada, mas incorre em um equívoco fundamental. Ela mantem na esfera pessoal e privada, um debate que precisa ser travado na esfera pública. Na prática, reitera em outra chave as razões alegadas pelos que são favoráveis a que mulheres sejam encarceradas ou morram por realizarem um aborto.

Quase sempre de fundo moral ou religioso, os argumentos favoráveis à criminalização tendem a reproduzir, tomando como verdadeiro, um cenário que não encontra sustentação em qualquer dado do real: descriminalizar o aborto não é obrigar mulheres a fazê-lo; nem se formarão filas em hospitais, clínicas e postos de saúde de gestantes ávidas por abortar. Não estamos falando de um “genocídio”, como defendem alguns, perversamente.

Na prática, a descriminalização, além de tratar o tema como um direito fundamental, em consonância com a Constituição 88, retira da esfera jurídica e policial o que não deveria ser um crime, e o desloca para o seu lugar de direito: o da saúde pública. E não se trata apenas de defender a vida e a liberdade de mulheres, especialmente mulheres negras e pobres, por muitas e óbvias razões as mais expostas e vulneráveis seja à prisão ou à morte em uma clínica clandestina.

Descriminalizar o aborto e tratá-lo como um tema e um problema de saúde muda, principalmente, a competência do Estado. Podendo falar dele abertamente, pode-se desenhar políticas públicas para, além de proteger, prevenir e mesmo evitá-lo, o que vimos acontecer em países onde ele já foi descriminalizado, caso do vizinho Uruguai. Tema sem dúvida controverso e delicado, o aborto demanda inúmeras formas de tratar as mulheres que a ele recorrem. A cela de uma prisão não é uma delas. A morte tampouco.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Precisamos falar sobre o Bolsonaro

POR CLÓVIS GRUNER
Não sou daqueles que acham que não se pode falar de Bolsonaro. Aliás, acho que precisamos falar mais dele, e basta uma razão: ele é líder nas pesquisas, aquelas que valem alguma coisa, já que Lula, na prática, não é candidato nem será. Isso pode mudar? Espero que sim, porque Bolsonaro é a maior ameaça à democracia brasileira desde que a restabelecemos. E isso depende, em grande medida, de falarmos dele todos os que, das esquerdas aos liberais de direita, acreditamos que dar as costas à democracia não é alternativa para superarmos nosso momento de crise.

A questão é com quem e como falamos. No universo de seus eleitores, há aqueles sinceramente atraídos pela truculência, o autoritarismo, o racismo, o machismo e a homofobia. Trata-se daquela parcela do eleitorado que vota em Bolsonaro não apesar dos elogios que fez e faz a um torturador, estuprador e assassino como Ustra, ou pelo seu profundo desprezo pelas liberdades individuais e os direitos humanos, mas justamente por causa disso.

Não é difícil identificá-los: são aqueles comentaristas de portais e blogs que conseguem falar de Venezuela e Lula em um texto sobre Portugal, ou que defendem, sem corar, que elevadores de serviço existem para transportar animais de estimação. Com esses, não há diálogo possível. Mas há uma parcela disposta a acreditar nas suas falsas soluções, que votam nele por alguma motivação pragmática. E há os indecisos, mais de 50%, segundo as últimas pesquisas. É com eles que precisamos falar sobre Bolsonaro.

Com parcos oito segundos no programa eleitoral, é quase certo que uma das suas estratégias será continuar a apostar nas redes sociais. Como a linguagem do Facebook e dos grupos de Whatsapp facilita a disseminação de fake news, da desinformação e de lugares comuns, onde o candidato transita com tranquilidade, e dificulta aprofundar o debate, parece pouco proveitoso tentar trazer eleitores e indecisos para nossas trincheiras na guerra cultural. É tentador, mas é uma batalha que estamos fadados a perder em um ambiente polarizado como é o eleitoral.

Não se trata de deixar de lado temas ligados aos direitos humanos, caros a qualquer democracia que ambicione ser tratada como tal. Mas se a intenção é enfraquecer a candidatura de Bolsonaro, alguns desses temas passam muitas vezes ao largo das preocupações de quem convive diariamente com o fantasma do desemprego e a insegurança, por exemplo, e quer ouvir de seu candidato o que ele tem a oferecer como alternativa para seus problemas cotidianos. É um caminho mostrar que Bolsonaro não tem absolutamente nada a dizer ou propor sobre esses assuntos, e seu desempenho no Roda Viva fornece bons elementos para isso.

Um pouco do possível - Em quase 30 anos como deputado, Bolsonaro não apresentou um único projeto para a segurança pública, área em que afirma ser especialista. Perguntado sobre o aumento nos índices de mortalidade infantil por diarreia, doença diretamente relacionada à pobreza e a condições sanitárias precárias, entre outros absurdos responsabilizou diretamente a mãe, “que não dá bola para sua saúde bucal ou não faz os exames do seu sistema urinário com frequência”. Há outros exemplos, no mesmo Roda Viva.

Bolsonaro defendeu a redução da porcentagem das cotas, uma proposta baseada unicamente no seu racismo. Ele ignora, entre outras coisas e desconsiderando a sua matemática tortuosa, que as elas são antes de tudo sociais, ou seja, 50% das vagas nas instituições públicas são para candidatos egressos exclusivamente do ensino público, e é dentro dessa porcentagem que são alocadas as chamadas “cotas raciais”. Em outras palavras, ele mente.

E mente também sobre negros “tirarem as vagas” de candidatos brancos: desde que a política de cotas foi instituída, o número de ingressantes nas universidades federais passou de 100 para 230 mil. Ou seja, a política de cotas acompanhou um crescimento no acesso, democratizando, e não cerceando o ingresso no ensino superior. Além disso, estudos mostram que o desempenho de discentes cotistas, brancos e negros, uma vez na universidade acompanha o de não cotistas, confirmando que, no caso brasileiro, as políticas afirmativas têm produzido resultados positivos.

Ainda sobre educação, defendeu maiores investimentos no ensino fundamental, quando nossos maiores problemas estão no ensino infantil (o número de creches é insuficiente para atender as famílias de trabalhadoras e trabalhadores que dependem delas) e no ensino médio – no caso desse último, um problema agravado com uma reforma irresponsável e inviável aprovada pelo governo Temer. As propostas para diminuir o desemprego ou alavancar a economia talvez agradem os donos do agronegócio, os industriais e os banqueiros, mas nada dizem para quem depende de salário e carteira assinada.

Mais? Bolsonaro diz que é honesto e vai combater a corrupção, mas de partido em partido, esteve na base aliada de todos os governos desde FHC, incluindo Lula e Dilma, e só não firmou aliança com o Centrão, composto pela fina nata do fisiologismo brasileiro, porque o PSDB de Alckmin tem mais valor no mercado de troca que o PSL de Bolsonaro. Ele não é um outsider, como tenta fazer crer. Aliás: se ele não aprova seus projetos porque os colegas parlamentares o boicotam e não votam propostas que sabem ser suas, como pretende negociar com o Congresso se eleito presidente?

Meu ponto é simples: Bolsonaro deixou de ser apenas uma caricatura à medida que sua candidatura tornou-se eleitoralmente viável. Por isso, desconstruí-la se tornou uma tarefa democrática fundamental. Mas para isso, é preciso mostrar suas fragilidades programáticas (passe o exagero), porque tem se revelado cada vez menos produtivo apostar em um discurso “humanista” contra um candidato que se notabilizou, justamente, por desdenhar de qualquer “humanismo”. A saída, se há, é mostrar que, além do ódio, ele não tem nada a oferecer ao país.

sábado, 28 de julho de 2018

Moçambique importa. Nicarágua também

POR CLÓVIS GRUNER
Na quinta-feira (26), desde suas trincheiras lusitanas, José António Baço repercutiu um “ligeiro desaguisado” que começou nas redes sociais e veio parar no Chuva. As razões e o roteiro da pequena desavença já foram contadas em seu texto, por isso as resumo brevemente. Em suma, Baço credita minha preocupação com a crise na Nicarágua – e também na Venezuela – ao que chama de uma “indicação midiática”.

Trocando em miúdos, e um pouco grosso modo, o país latino e os quase 400 cadáveres – um deles de uma brasileira, a estudante de Medicina Rayneia Gabrielle Lima – produzidos desde abril pelo governo de Daniel Ortega e Rosario Murillio, esposa de Ortega e sua vice-presidente, nos interessam (supondo que não seja apenas eu o interessado) tão somente porque estamos a seguir o que a mídia indica – e, é lícito supor, não exatamente qualquer mídia.

A atestar sua tese, Baço cobra a pouca repercussão entre nós do ataque em Moçambique, há algumas semanas, perpetrado por extremistas islâmicos, com um saldo de 20 mortos. Ante o silêncio do Brasil – que, como Portugal e Moçambique, é parte integrante da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – e dos brasileiros, pergunta: “Se é para propor uma reflexão, que tal refletir sobre uma ação conjunta dos países da CPLP em Moçambique?”.

Embora não tenha ficado claro porque ele pede que deixemos de nos ocupar com a Nicarágua para nos preocuparmos com Moçambique quando, me parece, o desejável seria nos preocuparmos com os dois, ele está certo ao chamar a atenção para nossa indiferença. Uma pesquisa breve nos sites noticiosos é suficiente para mostrar a desproporção entre os portais de Portugal e Brasil, com uma vergonhosa desvantagem para nós, na cobertura dos ataques terroristas em Moçambique.

Talvez o fato do país ter sido colônia portuguesa até meados dos anos de 1970, ajude a entender o interesse maior, em Portugal, pelo que acontece na região. Mas é igualmente correto, que um dos motivos a explicar esse descompasso é nossa óbvia ignorância em relação a quase tudo que diz respeito ao continente africano. Uma ignorância que é, em certa medida, alimentada pela pálida presença da África e seus países, mesmo os de língua portuguesa, na mídia brasileira. E também nisso Baço tem razão.

Esse outro continente, a América Latina – Mas não me parece estranho, nem apenas fruto de algum interesse escuso das mídias tradicionais, que dispensemos uma atenção maior à Nicarágua ou Venezuela e à crise política que atravessa os dois países. Crise que, entre outras coisas e mais especificamente no caso venezuelano, repercute diretamente no Brasil, que já recebeu cerca de 50 mil refugiados do regime de Maduro nos últimos dois anos.

Diferente do que sugere Baço, um posicionamento menos conformista em relação à escalada do terror de Estado na Venezuela e Nicarágua não é inócuo do ponto de vista prático. Entre outras razões, porque parte importante da legitimidade de Maduro e Ortega advêm justamente do apoio de partidos e lideranças de esquerda, que insistem em ignorar o caráter autoritário assumido por ambos os governos e o desrespeito sistemático aos direitos humanos.

O desgaste dos dois regimes não é novo, bem como os movimentos contestatórios duramente reprimidos pelas forças militares. Na Venezuela, protestos e denúncias de abuso, como prisões arbitrárias e torturas, remontam a 2014, pelo menos. Mais de 100 pessoas já foram mortas e outras tantas continuam presas. A tentativa de nivelar toda a oposição à direita comandada pelo opositor Henrique Capriles, homogeneizando-a, peca por transformar em caricatura um movimento, além de legítimo, bastante diverso em sua formação.

A situação é mais grave na Nicarágua: desde a “piñata sandinista”, a relação com a outrora revolucionária FSLN entrou em uma espiral descendente de que os protestos dos últimos meses são apenas a face mais trágica e visível. Em ambos, boa parte da oposição e das críticas parte, justamente, de grupos, intelectuais e lideranças de esquerda, incluso antigos colaboradores de Hugo Chavez e ex-guerrilheiros que participaram ativamente da revolução e do primeiro governo sandinista, após a queda do ditador Anastasio Somoza – com quem Ortega é comparado.

“Liberdade é a liberdade de quem pensa diferente” – Talvez porque esteja a pensar apenas na esquerda brasileira – o que já seria um equívoco –, Baço trata como “fazer um frete para a direita”, “lançar a esquerda num processo de autoflagelação” e “dobrar a coluna aos ditamos dos conservadores” cobrar dela uma reflexão e uma postura mais críticas. Aliás, diz, não é uma reflexão, mas uma inflexão. Acho que reside especialmente aí o cerne de nosso “ligeiro desaguisado”.

Na terça-feira da semana passada (17), o Senado uruguaio aprovou, por unanimidade, uma declaração que condena a violência e a repressão na Nicarágua. O ex-presidente José “Pepe” Mujica – principal protagonista de uma experiência democrática de esquerda e preso político durante a última ditadura uruguaia –, é um dos seus signatários. Com o título “Declaración urgente por Nicaragua”, uma carta assinada por inúmeros intelectuais e ativistas de esquerda – entre outros, Beatriz Sarlo, Alberto Acosta e Edgardo Lander – manifesta repúdio à violência estatal e os abusos cometidos contra os direitos humanos.

Menciono esses casos porque envolvem figuras públicas, algumas delas – como Mujica – bastante conhecidas. E é improvável que ao manifestarem preocupação e recusarem o autoritarismo, elas estejam a se dobrar à direita, ou simplesmente seguindo uma indicação midiática. Mas com alguma boa vontade, é possível encontrar outras inúmeras reflexões à esquerda, que sem desconsiderarem contextos e interesses geopolíticos mais amplos, escapam ao lugar comum de atribuir ao “imperialismo ianque” ou a “ditames conservadores” a crise em que os dois países estão mergulhados.

Em seu discurso no Senado no dia 17, Mujica disse que se sentia mal “porque conheço gente tão velha como eu, porque recordo nomes e companheiros que perderam a vida na Nicarágua lutando por um sonho. Sinto que algo se foi, como em um sonho, se desviou, caiu na autocracia, e entendo que aqueles que antes foram revolucionários perderam o sentido de que há momentos na vida para dizer `vou embora´”. Não é quando reivindica sua tarefa crítica, mas quando se recusa a denunciar a violência e opta por legitimar a barbárie em nome de um “bem maior”, que a esquerda “faz frete para a direita”. E convenhamos, a gente tem feito isso com uma irritante frequência ultimamente.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Fake news, a mentira e a homofobia

POR CLÓVIS GRUNER
Um tuite do vereador carioca Carlos Bolsonaro, publicado no dia 13 último, devolveu às redes sociais uma fake news que vem sendo compartilhada desde 2017, sugerindo que homens gays são pedófilos. Avisado que se tratava de um material comprovadamente mentiroso, Bolsonaro não apenas manteve a postagem, como publicou novos posts associando a homossexualidade masculina e a pedofilia (você pode ler a história aqui).

No mesmo dia, Danilo Gentili usou sua conta na rede para alertar seus seguidores que, em breve, eles verão as “Folhas e UOL da vida manchetando que vc é um monstro preconceituoso se não aceitar a pedofilia”. Isso porque, há uma “geração sendo doutrinada nas universidades para defender isso quando subirem aos postos de editores, agentes da mídia e políticos”. Alertado da mentira, também manteve o post e publicou outro de igual teor, compartilhado um dia antes no Twitter de Voldemort.

Não tenho dúvidas que Gentili e Bolsonaros sabiam o que faziam mesmo antes de serem alertados da mentira, e terem continuado a disseminá-la é um claro indício disso. Associar a homossexualidade masculina à pedofilia é tão falso quanto falar em “ditadura gay” ou, variações do mesmo tema, que “gays querem impor seu estilo de vida” e que o movimento LGBT reivindica “privilégios jurídicos”, mais ou menos como as igrejas.

Mas a disseminação de inverdades, nesse caso, esconde dramas e problemas reais para os quais – e também não tenho dúvidas disso – nenhum deles está realmente preocupado. O primeiro deles é, justamente, o da pedofilia. O último levantamento sobre o tema, de 2016 e divulgado recentemente, revela números assustadores: cerca de 13 mil menores foram vítimas de algum tipo de abuso sexual naquele ano, a maioria perpetrados por familiares ou pessoas conhecidas.

É dentro de casa – e também em alguns templos e sacristias –, portanto, que reside o perigo maior. Apesar disso, a CPI dos maus tratos, liderada pelo senador Magno Malta, e os milicianos do MBL, preferiram atacar museus e artistas, escolas e professoras/es, em um discurso agora reiterado pelos tuites de Gentili e Bolsonaros, que estigmatizam, no limite da criminalização, as práticas e relações homoeróticas, colocando-as no mesmo nível da pedofilia e do abuso infantil.

Na prática, nossos conservadores e seus porta-vozes nas mídias e parlamentos não se importam em manipular um problema real, como a pedofilia ou o abuso infantil, se isso servir a um propósito: atacar e desqualificar LGBTs e seus movimentos, mantendo-os à margem de quaisquer direitos, autorizando e legitimando a violência, física e simbólica, sistematicamente praticada contra eles.

Um ódio fundamental – Somos, entre os países democráticos, um dos que mais mata sua população LGBT. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2011 – ano do último levantamento do órgão federal – cerca de 19 violações contra LGBTs aconteceram, em todo o pais, diariamente. As estatísticas se referem às agressões notificadas e, levando-se em conta a precariedade, as inúmeras dificuldades e mesmo o medo de registrar agressões sofridas, é provável que a incidência seja maior.

Os números são também assustadores no que se refere ao assassinato de gays, lésbicas, transgêneros e travestis: no mesmo ano da pesquisa realizada pela SDH, foram registrados 266 mortes; levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia para 2014, registra um aumento significativo, totalizando 326 assassinatos. No ano passado, esse número saltou para 445 vítimas. O número de mortos é maior entre a população gay masculina, seguida de perto pelos travestis.

Confundidos com homossexuais, nos últimos anos cerca de 20 homens heteros foram assassinados. Em 2014, Alex, de apenas oito anos, foi espancado até a morte pelo pai, que o achava “afeminado” e queria que ele “andasse como um homem”. No ano passado, Itaberlly Lozano, de 17 anos, foi morto a facadas pela mãe e o padrasto que esconderam o corpo, depois de carbonizado, em um canavial. O índice de suicídios entre adolescentes e jovens gays é igualmente desalentador.

Mas a violência não é apenas física. A homossexualidade ainda é vista e tratada como doença, inclusive por profissionais da saúde. Gays são preteridos ou demitidos de empregos por serem gays. São constrangidos em lugares públicos e hostilizados quando demonstram afeto (um simples andar de mãos dadas pode gerar reações violentas imprevisíveis); expulsos do convívio familiar e de amigos; desrespeitados em ambientes públicos, inclusive em escolas, espaços de formação de cidadanias e cidadãos; ridicularizados por programas de humor e humoristas politicamente incorretos.

Militantes denunciam isso há muito tempo. Conseguiram poucos, tímidos avanços, mas esbarram na indiferença, inclusive de governos de esquerda: em 2011, Dilma Rousseff mandou suspender a distribuição do “kit anti-homofobia” (que os detratores chamaram, pejorativamente, de “kit gay”), cedendo às pressões da bancada conservadora. Uma esfera pública não inteiramente laicizada e atravessada pela vontade religiosa corrobora para perpetuar um estado de coisas, que trata alguns indivíduos como subcidadãos em função de sua orientação sexual.

Apesar disso, Bolsonaros, Gentili e seus milhares de seguidores insistem no discurso cretino e mentiroso de uma “ditadura gay” e ousam falar em “privilégios”, enquanto mentem sobre homossexualidade e pedofilia. E mentem porque eles sabem o tipo de efeito que essa associação produz. E porque não suportam que LGBTs tenham acesso e assegurem mesmo os direitos mais elementares. Às vezes, um tuite não é só um tuite. É um reservatório inteiro de ódio.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Uma patacoada jurídica

POR CLÓVIS GRUNER
Há um trecho quase sempre esquecido da famosa conversa telefônica entre Romero Jucá e o ex-diretor da Transpetro, Sérgio Machado. Refiro-me, vocês sabem, ao diálogo em que ambos combinam o “grande acordo com o Supremo com tudo” que culminaria no impeachment de Dilma e na posse do presidente que, parece, só consegue apoio acima de um dígito entre os comentaristas anônimos desse blog e milicianos do MBL.

Voltemos ao telefonema. Lá pelas tantas, como parte da definição da estratégia de colocar Temer na presidência para “delimitar tudo onde estava”, Machado defende que um “governo de união nacional”, possível apenas com a saída de Dilma, “protege o Lula, protege todo mundo”. Se em algum momento proteger o Lula esteve mesmo nos planos da quadrilha que chamamos de governo, parece que, passados dois anos, ela mudou de ideia.

E se para isolar e inviabilizar a candidatura do ex-presidente os signatários do acordo não mediram esforços no aparelhamento das instituições, incluindo o Poder Judiciário, o outro lado decidiu ver até onde chegava jogando nas mesmas regras – ou na ausência delas. E o resultado foram os eventos patéticos de domingo (08),  resultado da extrema politização das nossas cortes, ao menos teoricamente, responsáveis por zelar pela normalidade jurídica.

A sequência de acontecimentos é de conhecimento público, e análises jurídicas pertinentes e bem fundamentadas circulam amplamente desde o final de semana (recomendo particularmente o artigo “Politização com esteroides”, de Conrado Hübner Mendes, professor de Direito e colunista da revista Época). Vou arriscar alguns pitacos sobre as motivações e os possíveis desdobramentos políticos do imbróglio.

Mídias e desespero - Se a intenção era manter Lula nas mídias e visibilizar os interesses políticos nebulosos por trás da cruzada pessoal e partidária de Moro, a estratégia dos deputados petistas e advogados Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous foi impecável. A apresentação do habeas corpus, depois de encerrado o expediente normal do tribunal, em um final de semana onde o plantonista, o desembargador Rogério Favreto, é um conhecido crítico da Lava Jato, não foi mera coincidência.

Se como plantonista Favreto não extrapolou suas obrigações legais, o bom senso e o respeito à “normalidade” sugerem que ele deveria ter se manifestado impedido de julgar o pedido, em função de sua proximidade com o PT. Ao mandar às favas os escrúpulos, já que isso se tornou prática comum nos tribunais superiores – e aí estão Gilmar Mendes e Alexandre Moraes, no STF, além do próprio Moro, a dar provas fartas de que já não importa manter mesmo a mais remota aparência de isenção –, o desembargador não contribuiu para melhorar a imagem da toga.

A insubordinação do juiz de Curitiba, que não encontrou tempo e alegou excesso de trabalho para não julgar o conterrâneo e companheiro Beto Richa, mas despachou de férias em Portugal, e a atitude destemperada dos desembargadores Gebran Neto e Thompson Flores, tampouco. Afinal, se o fundamento da decisão era frágil e juridicamente insustentável, bastaria seguir o procedimento normal, esperar a segunda para derrubá-la e Lula voltar à sua cela na Polícia Federal.

Um cenário incerto - O desespero de Moro e dos desembargadores de Porto Alegre para impedir a sua liberdade, mesmo que por poucas horas, desequilibrou momentaneamente o jogo político, e a favor de Lula e do PT. A dúvida é sobre quais os efeitos desse desequilíbrio no médio prazo. Se a intenção é insistir na tese da candidatura de Lula, o tiro talvez saia pela culatra e repercussões de domingo escampem ao planejado.

É verdade que o ex-presidente segue liderando todas as pesquisas, mas também o é que o voto em Lula tem algo de messiânico, radicalizando uma característica do eleitorado brasileiro, a desconfiança em partidos e programas e a aposta em lideranças carismáticas, como Lula. A estratégia de fortalecer o nome do ex-presidente, mantendo-o em evidência ao mesmo tempo em que reforça a imagem de um líder popular perseguido por forças antidemocráticas, não garante que seus votos serão automaticamente transferidos ao candidato ungido por ele.

O melhor, e venho insistindo nisso há alguma tempo, era as esquerdas oferecerem uma alternativa programática a Lula, o que nem o PT nem nenhum outro partido o fez até agora – à exceção, talvez, do PSTU, mas sem chance alguma de prosperar eleitoralmente. Mesmo fora da órbita petista não há nome viável que inspire segurança, seja Ciro ou Marina. A direita liberal, ao apostar em nomes como Alckmin ou Amoedo, também arrisca nadar e morrer antes de chegar à praia.

O risco é de que o descontentamento e a desconfiança dos eleitores com a política e os partidos tradicionais inflem a única candidatura identificada, hoje, como alternativa a “tudo o que está aí”, e quem capitalize os votos principalmente indecisos nas eleições de outubro não seja um candidato ou partido comprometido com a democracia. É possível, embora não seja certo, que a geleia geral de domingo também sirva para recrudescer a opção pelo fascismo e fortaleça a candidatura daquele que não se deve nomear.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O PCC agradece

POR CLÓVIS GRUNER
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, em junho, o Projeto de Lei 580/2015, do senador Waldemir Moka (MDB/MS). O texto, que agora segue para o plenário, altera a Lei de Execução Penal e obriga presos a ressarcir o Estado pela sua manutenção no sistema prisional. Para o senador Moka, a principal razão da crise que assola o sistema penitenciário brasileiro é a “falta de recursos para mantê-lo. Se as despesas com a assistência material fossem suportadas pelo preso, sobrariam recursos que poderiam ser aplicados em saúde, educação, em infraestrutura etc.”.

A justificativa é hipócrita, além de mentirosa. Ela surfa no sentimento algo generalizado de insegurança, medo e indignação, na percepção de que estamos fragilizados frente à violência. Afinal, a posição de um energúmeno truculento como Jair Bolsonaro nas pesquisas, serve como prova de que, em um ano eleitoral, a aposta em mais uma medida populista, a sugerir pela enésima vez que a solução para o problema da criminalidade é o recrudescimento de políticas repressivas, pode render um punhado de votos.

Mas no caso do PL 580/15, a hipocrisia é reforçada com o recurso à mentira. Não são os custos com as prisões que impedem investimentos em “saúde, educação, em infraestrutura etc.”. Quem conhece minimamente a realidade de uma instituição penal, sabe que o custo para mantê-las não chega perto dos alegados R$ 2,4 mil mensais por preso. Nas delegacias, muitas delas utilizadas como cárceres provisórios, a situação é ainda mais degradante. E mesmo esse valor mentiroso, é significativamente menor que os R$ 2 milhões anuais que custam aos cofres públicos um único senador, por exemplo.

A utilidade da falência – Costuma-se dizer que as prisões fracassaram. Mas há utilidade nessa suposta falência, entre outras, a de manter segregados os excluídos de sempre. E como as condições prisionais não recuperam nem ressocializam, as prisões funcionam como verdadeiras fábricas de produção e reprodução da delinquência e da criminalidade O custo social desse ciclo vicioso é altíssimo. Ele reforça nosso apartheid social e racial, produzindo inimigos a serem temidos e ameaças a serem contidas por um Estado que, mínimo onde necessário, deve ser forte no exercício de uma violência institucional nem sempre apenas simbólica.

Determinar que presos indenizem o Estado por meio da espoliação de sua força de trabalho – e o acesso ao trabalho é um direito previsto em mais uma lei que o Estado não cumpre –, é outra medida perversa com o selo de qualidade do nosso “liberalismo conservador”: não apenas apela à memória da escravidão, mas vulnerabiliza ainda mais indivíduos já expostos e vulneráveis. Nos últimos anos, essa vulnerabilidade tem sido matizada pela ação de grupos criminosos que disputam, com os governos, o controle das prisões, distribuindo privilégios, impondo a identidade e mantendo, à força, a fidelidade de e entre seus integrantes.

A violência estatal coopera para o fortalecimento das facções, pois na “sociedade dos cativos” elas representam uma forma de “proteção” contra medidas consideradas abusivas. Como, por exemplo, determinar que presos indenizem o Estado pelos custos de seu aprisionamento expropriando  seus bens ou o seu trabalho. Enquete promovida pelo Senado apurou que quase 45 mil eleitores são favoráveis ao projeto, contra ralos 1380 votantes que o desaprovam. Com esses números, não é de espantar que ele seja aprovado no Senado e na Câmara, para gáudio dos parlamentares da bancada BBB. O PCC agradece.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Cultura do estupro e banalização da violência


POR CLÓVIS GRUNER
O cenário é o estúdio de gravação do “Roda Viva”, que segunda (25), na série de encontros com os presidenciáveis, supostamente entrevistou a deputada e candidata do PCdoB, Manuela D’Ávila. E digo supostamente, porque o que se viu passou longe de uma entrevista: a bancada “livremente escolhida” pela produção do programa não pretendia outra coisa além de desqualificar sua candidatura, e levou a tarefa a sério.

Parte da postura agressiva dos entrevistadores, que pareciam ter saído direto da Guerra Fria, se explica pelas posições ideológicas da presidenciável. E digo parcialmente porque, por exemplo, mesmo tensa, na entrevista com Guilherme Boulos o candidato do PSOL teve espaço para responder aos arguidores. Mulher e feminista, a Manuela D’Ávila não foi concedido o mesmo direito. Mas não pretendo analisar o programa ou defender o PCdoB, partido pelo qual não nutro nenhuma simpatia.

Cito o “Roda Viva” por um motivo: o embate entre Manuela D’Ávila e um dos coordenadores da campanha de Jair Bolsonaro e diretor da Sociedade Rural Brasileira, Frederico D’Ávila, em torno ao tema do estupro. Em um movimento mental tortuoso tão comum, por exemplo, entre os comentaristas anônimos desse blog, Frederico começou com a trajetória do avô, sobrevivente do nazismo, e terminou com a defesa da castração química como solução para o estupro. Em uma das muitas vezes que a interrompeu, afirmou que não existe “cultura do estupro” - para, em seguida, voltar ao avô.

Um dos argumentos (passe o exagero) do entrevistador é de que a castração química, ao punir exemplarmente os estupradores, resolveria o problema, argumento (passe, de novo, o exagero) brandido por Bolsonaro e um punhado de homens – e também algumas mulheres. A medida é defendida por quem entende o estupro como sexo, ainda que com violência, bastando para isso restringir, punir ou simplesmente eliminar o “desejo sexual”.

Não é sexo, é poder – Mas estupro não é sobre sexo; é sobre poder, e eles e elas ignoram, propositadamente ou não, que castrar quimicamente o estuprador pode até atacar um dos sintomas mas, fundamentalmente, deixa intocado o problema. Quando feministas enfatizam a importância, por exemplo, de se discutir relações de gênero nas escolas e outros espaços públicos, elas estão afirmando, entre outras coisas, que reduzir o estupro a um ato sexual, silencia sobre e reproduz o exercício de um poder que se sustenta na violência.

A castração química e sua lógica punitivista, nesse sentido, é parte intrínseca da cultura do estupro, razão pela qual Jair Bolsonaro e Frederico D’Ávila defendem a primeira e negam a existência da segunda. Mas o próprio Bolsonaro afirmou à deputada petista Maria do Rosário, que não a estuprava porque ela não merecia, para explicar depois que ela não merecia ser estuprada porque é feia. Alexandre Frota, um de seus cabos eleitorais no meio artístico (sim, estou dado a exageros hoje), contou em rede nacional como estuprou uma mulher, desqualificada ao longo da sua narrativa por ser “mãe de santo”.

Um pouco antes disso, o humorista Rafinha Bastos cunhou a piada segundo a qual mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Na mesma época, uma campanha da Nova Schin levou ao ar uma peça onde um homem invisível ameaça e constrange mulheres, invadindo seu vestiário. Questionado, o Conar respondeu com indiferença, alegando que a propaganda era “baseada em uma situação absurda”: o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando horror e medo, é invisível.

Para alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido. É nisso, parece, que acredita outro humorista, Danilo Gentili; segundo ele, um homem que espera uma mulher ficar bêbada para transar com ela é um “gênio”. Afinal de contas, se algo der errado e ele for denunciado, basta dizer que ela estava vestida de forma inadequada ou sozinha à noite em uma festa e bebeu demais: uma das características da cultura do estupro é responsabilizar a vítima pela violência de que é objeto.

A banalidade do mal – Nada disso é novidade: o estupro, ao contrário do que se afirma correntemente, não é uma aberração anti-civilizatória, fruto exclusivamente de algum comportamento monstruoso. Ele é, antes, uma prática que ao longo da histórica serviu para afirmar e consolidar diferentes experiências de dominação e, como exercício de poder e violência de homens sobre mulheres, é preexistente ao seu enquadramento jurídico moderno. Os exemplos abundam, e em nenhum deles estamos a falar de sexo.

Os conquistadores europeus estupraram mulheres indígenas na conquista do chamado “Novo Mundo”, nos séculos XVI e XVII, e africanas nos séculos XIX e XX. Nos genocídios étnicos, mulheres são estupradas antes de serem assassinadas; militares violentam mulheres quando vencem o inimigo, como foi o caso das alemãs pelos soldados russos; francesas acusadas de colaborar com a ocupação foram estupradas pelos seus concidadãos durante a chamada épuration legale; não muçulmanas são estupradas por fundamentalistas religiosos, etc...

No Brasil, portugueses estupraram índias durante o processo de ocupação da colônia; senhores brancos estupravam escravas nas senzalas; filhos das camadas médias e altas violentavam empregadas domésticas como iniciação à vida sexual. No Código Penal de 1940, o estupro era considerado um crime contra os costumes, a sociedade e seus valores, e não contra a mulher. Mesmo hoje, há decisões judiciais que, amparadas no artigo 59 do Código Penal, levam em conta a vida pregressa da vítima (seu comportamento sexual, por exemplo), para amenizar a responsabilidade do agressor.

É isso que mulheres denunciam como cultura do estupro e é contra isso que lutam. Sua banalização, e a negação é parte dela, corrobora para a naturalização da violência. Discutir e educar principalmente os homens para a igualdade nas relações de gênero pode não ser a única resposta, mas é um caminho necessário e urgente. O punitivismo sexista defendido por Bolsonaro e seu coordenador de campanha, por outro lado, não é a solução para o estupro. Antes pelo contrário, é parte do problema.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

O que resta de Junho?


POR CLÓVIS GRUNER
O Facebook me lembra, domingo último (17), que há cinco anos eu era um em meio a multidão da foto que ilustra esse texto. Em Curitiba, a passeata da noite de 17 de junho, uma segunda-feira, foi a maior. Três dias depois, o frio intenso e a chuva dificultaram a presença nas ruas, justamente a data em que as mobilizações atingiram o ápice: em 20 de junho de 2013, mais de dois milhões de pessoas ocuparam praças e logradouros de cerca de 400 cidades em todo o Brasil.

Cinco anos depois, permanece em aberto a interpretação sobre as “Jornadas de Junho”, um indicativo não apenas da pluralidade do movimento, mas da dificuldade de apreendê-lo e situá-lo. Minha intenção é fazer um balanço daqueles eventos a partir de três perspectivas, que se cruzam: conectá-los a contextos mais amplos; analisar algumas de suas singularidades; e, enfim, um breve exame de seus desdobramentos e das distintas e contraditórias apropriações de seu legado.

O gigante acordou? – Apesar de repetido à exaustão, reafirmando a percepção de que Junho foi uma novidade na história política recente, a irrupção de uma força – uma “potência”, se costuma dizer – recalcada e finalmente liberada, há nisso um certo exagero e, em parte, um equívoco. Entre outras coisas, porque sugere serem as “Jornadas de Junho” um evento único e solitário em sua incompreensível singularidade.

Nada mais enganoso. De diferentes maneiras, 2013 se relaciona com uma miríada de eventos que o antecedem e com os quais partilha similaridades: os motins em Los Angeles, em 1992; os levantes na Grécia e nos países árabes, apenas um ano antes; a revolta nos subúrbios parisienses em 2005; ou a Revolta dos Pinguins, no Chile. Mesmo se olharmos apenas o contexto brasileiro, a imagem de um “gigante adormecido enfim desperto” tampouco se sustenta.

De um lado, penso ser importante ler Junho à luz de algumas mobilizações que o antecederam: 2012 foi o ano com o maior número de greves em uma década e meia – 873 registradas pelo Dieese –, organizadas por um sindicalismo que, agastado depois de cooptado pelos governos de esquerda, tentava uma retomada. É nesse mesmo contexto que surge o MTST, e recrudescem os movimentos por moradias e as ocupações urbanas. Em suma, meu argumento é de que a espontaneidade de Junho precisa ser contrastada a movimentos que, em certa medida, contribuíram para sua erupção.

Além disso, desde pelo menos o começo da gestão Dilma, o modelo desenvolvimentista e redistributivo, tônica dos governos petistas, apresentava sinais de desgaste. Quer dizer, tanto quanto sua espontaneidade, a combinação entre mobilizações sociais pregressas e a corrosão do pacto político que sustentou os governos de esquerda (e de certo modo, toda a Nova República), me parece igualmente significativo para entender as “Jornadas de Junho”.

“Anota aí: eu sou ninguém” – Mesmo a juventude, sua principal protagonista, não despertou do sono repentinamente. Foram os jovens, principalmente, os que se solidarizaram com as comunidades indígenas e quilombolas; denunciaram a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; protestaram contra a homofobia, o racismo e a violência policial e, sem cessar, chamaram a atenção para a precarização das escolas e do ensino público brasileiro, por exemplo. O MPL, que convocou as primeiras manifestações, existe desde 2005 e já havia liderado outras mobilizações e ocupado as ruas antes.

A acusação, comum, de que as “Jornadas de Junho” foram a “antessala do golpe”, desconsideram, entre outros, o fato de que, diferente das manifestações pelo impeachment, o perfil socioeconômico de parcela significativa dos manifestantes de 2013 era de jovens estudantes e trabalhadores com renda de até cinco salários mínimos, moradores das regiões periféricas principalmente das grandes e médias cidades, fossem elas São Paulo (onde o movimento começou e ganhou força), Curitiba ou Joinville.

Não surpreende, nesse sentido, que foram o aumento na tarifa do transporte público e a violenta repressão policial que se abateu sobre os manifestantes, os detonadores do movimento. No primeiro caso, os 20 centavos foram o pretexto para exigências maiores – o direito ao transporte público, a mobilidade urbana, a ocupação do espaço público e a humanização das cidades –, com o MPL assumindo uma condição, mesmo provisória, de mediador entre algumas demandas por cidadania e qualidade de vida e as políticas governamentais.

No segundo, a midiatização das mobilizações evidenciou uma realidade vivida diuturnamente por muitos dos manifestantes, militantes ou não: a violência policial, televisionada e flagrada em celulares, cujos vídeos foram compartilhados às centenas, foi a principal responsável pelo repentino e inesperado apoio ao movimento: pesquisa realizada pelo Ibope e publicada no dia 18 de junho, mostrava uma aprovação de 75% dos brasileiros às manifestações. Uma vitória política, mas também uma abertura para entender a emergência das suas muitas contradições.

Nem golpista, mais que potência – No campo da esquerda, principalmente duas interpretações vigoram sobre Junho. Uma delas, já mencionada, vê nas manifestações uma manobra, fruto de uma conspiração intergaláctica cujo propósito final e fatal era o “golpe”. Outra parece acreditar que as mobilizações vagam em um vazio temporal e histórico, pura “potência”.

A primeira defende uma visão teleológica da história no interior da qual, em um tempo homogêneo e vazio, uma linha leva 2013 diretamente para 2016 e o impeachment. Sobra oportunismo político, falta um olhar atento às multiplicidades e contradições. A segunda descola o evento de sua historicidade e evita o olhar ao rés do chão. Nessa perspectiva, ele transita em um vácuo onde, igualmente, não há lugar para desacordos ou ambiguidades. Ambas desconsideram que, a partir de um certo momento, sua apropriação por uma nova multidão, em grande medida avessa inclusive às demandas do MPL, impôs ao movimento uma inflexão em sua trajetória.

Se nos primeiros dias era perceptível uma insurgência de inspiração libertária e anticapitalista contra o Estado, o mercado e as formas tradicionais da política representativa, à medida que as ruas ganham contornos mais difusos, operam-se uma metamorfose e uma ampliação das pautas, que se tornam igualmente difusas. Hoje é difícil negar que, em meio à ruptura ensaiada pelas manifestações, sua apropriação por setores midiáticos e de direita tentou, entre outras coisas, neutralizar as possibilidades de renovação à esquerda que o movimento anunciava. E, ao menos parcialmente, conseguiu.

Um legado contraditório – Nesse sentido, os embates começaram a ser travados no curso do próprio movimento, e as disputas narrativas pelo seu legado são sua continuidade. Se é verdade que são herdeiras das “Jornadas”, por exemplo, as ocupações nas escolas paulistas e paranaenses, também o é que, com muitas mediações, elas franquearam a tomada das ruas pelos grupos que, dois anos depois, pediram o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que suas intenções passassem longe disso – a potência, afinal, não é uma via de mão única.

Em artigo publicado há alguns dias na Folha de São Paulo, Pablo Ortellado observava, acertadamente, que “quase todas as experiências do ciclo global de protestos de 2011-2013 despertaram forças poderosas que abalaram as instituições, mas quase nunca conseguiram lograr as mudanças aspiradas pelos manifestantes”. Junho de 2013 não escapa desse “flagrante descompasso” entre as mobilizações e seus resultados, modestos, afirma Ortellado; contraditórios, completo.

Em alguns países, como na Espanha, o caminho foi construir uma síntese possível entre a utopia libertária gestada pelos movimentos de rua e a institucionalização. No Brasil, estamos imersos em dilemas que impedem mesmo essa alternativa, entre outras razões, porque não há legenda ou liderança partidária capaz de fazê-lo, apesar dos esforços de marinistas. Será preciso, primeiro, superar a turbulência de agora. E ao que tudo indica, isso levará bem mais que os cinco anos que nos separam das “Jornadas de Junho”.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Os homens que não amam as mulheres


POR CLÓVIS GRUNER
Um juiz de Mococa, interior de São Paulo, ordenou judicialmente a esterilização de uma mulher, Janaína Aparecida Quirino, depois que o promotor público Frederico Liserre Barruffini instaurou ação judicial com o intento de constrangê-la a realizar o procedimento compulsoriamente. A alegação da promotoria foi que, moradora de rua, mãe de seis filhos e grávida de um sétimo, ela se recusou a fazer a laqueadura voluntariamente. A história veio à luz sábado último (09), na coluna do professor de Direito Constitucional, Oscar Vilhena, na Folha de São Paulo.

Desde então, o episódio repercutiu em outros veículos que ampliaram a cobertura e revelaram mais detalhes do caso, além de manifestações nas redes sociais, incluindo o apoio inconteste e irrestrito à medida da outrora estelar Janaina Paschoal, e um desmentido do juiz responsável pelo caso, Djalma Moreira Gomes Junior. Segundo ele, o procedimento foi realizado com o consentimento de Janaína Quirino, atualmente cumprindo pena por tráfico de drogas.

A trajetória de Janaína não é única em um país atravessado, historicamente, por contradições e desigualdades aparentemente insolúveis. A decisão do juiz, por outro lado e até onde sei, é inédita. Mas sua novidade, no entanto, está circunscrita ao ato – aliás, inconstitucional, o que tampouco parece fazer diferença em um país onde juízes driblam a legislação para contabilizar ganhos acima do teto constitucional.

No Brasil, a guerra contra os pobres vem de longa data. Mesmo antes de nos tornarmos nação, após nossa independência e durante o século XX, já no período republicano, nossas elites (econômicas, políticas ou intelectuais) não se furtaram a defender medidas drásticas, às vezes com o lastro da ciência, quando se tratou de sujeitar grupos vulneráveis. A decisão do juiz de Mococa é inédita, mas não é nova, porque retoma e atualiza uma ideia que foi lugar comum nas democracias ocidentais há até pouco menos de um século.

Eugenia e políticas de esterilização – Impulsionadas pelas teses naturalistas surgidas ainda nas primeiras décadas do século XIX, as teorias eugênicas se desenvolveram ao longo da segunda metade do oitocentos. Em seu cerne, a concepção da evolução humana como resultado imediato de leis biológicas e naturais que determinam o comportamento humano, sendo as raças constitutivas de um processo evolutivo no interior do qual se configuraram e cristalizaram as desigualdades.

A naturalização das diferenças legitimou um conjunto de proposições com desdobramentos políticos significativos: se as desigualdades são racialmente determinadas e estruturadas na natureza das populações, é possível asseverar a superioridade de uma raça sobre outras, mesmo a um nível mais cotidiano, afirmando a continuidade entre os caracteres racialmente determinados e a conduta moral dos indivíduos, por exemplo. A expansão colonialista levada a cabo pelas potências europeias se assentou, em grande medida, nesses discursos.

Amplamente aceita pela comunidade científica, a eugenia orientou igualmente ações políticas e governamentais dentro dos próprios países em que foi formulada. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente, a esmagadora maioria mulheres, nas primeiras décadas do século XX. Os esforços americanos chamaram a atenção de Hitler, que tratou de aprimorar as tecnologias de eliminação dos indesejados, elevando-as a parâmetros industriais de resultados bárbaros e trágicos amplamente conhecidos.

A política eugenista de esterilização em massa seduziu também cientistas e políticos brasileiros. Uma das bandeiras da Sociedade Eugênica de São Paulo, criada pelo médico Renato Kehl em 1918 e que nos anos subsequentes tornou-se um movimento mais nacional, era a revisão do Código Civil. Ele defendia a inclusão de um dispositivo que autorizasse o Estado a proibir o casamento entre indivíduos que apresentassem algum risco da geração de uma prole com tendência à degenerescência. Em algumas versões, a proibição do casamento foi substituída pela esterilização compulsória.

Guerra contra os fracos – Houve um recuo dos discursos eugênicos depois da Segunda Guerra, por razões óbvias. Mas isso tampouco significou, particularmente no Brasil, um abrandamento das relações tensas e violentas entre o Estado e os grupos dominantes, cujos interesses sempre coincidiram, e as populações fragilizadas. Do golpe de 64 aos esquadrões da morte e à Candelária; dos massacres de Eldorado do Carajás ao Carandiru; de Belo Monte à Maré; da prisão de Rafael Braga ao assassinato de Marielle Franco, o Estado de exceção tem sido a regra.

Não surpreende que o recrudescimento de discursos eugênicos, incluindo a defesa da esterilização compulsória, ganhou novo fôlego com as políticas públicas de inclusão que, nas primeiras gestões petistas, impulsionaram a ascensão social de parcelas da população mais pobre. Misto de desinformação e preconceito, proliferaram desde então discursos que insistem em condenar grupos inteiros a uma espécie de subcidadania. E eles incluem assegurar ao Estado o direito de interferir nos corpos, notadamente naqueles considerados descartáveis, precários, indignos mesmo do luto, na expressão de Judith Butler.

E tem sido sobretudo os corpos femininos o objeto privilegiado desse novo front reacionário. Um exemplo: em 2014, o deputado estadual Carlos Bolsonaro, um dos herdeiros de Voldemort, defendeu que o Bolsa Família fosse concedido apenas às famílias cujas mulheres aceitassem se submeter “às cirurgias de laqueadura”. Como bom “liberal conservador”, Bolsonaro argumentava a favor da “liberdade individual” porque, mesmo garantindo ao Estado normatizar e condicionar o recebimento de um benefício à esterilização das beneficiadas, a cirurgia seria “uma escolha do cidadão”. O pai deve ter se sentido orgulhoso.

Não há nisso surpresa ou coincidência. De um lado, parte dos programas sociais, como o Bolsa Família, transfere a elas responsabilidades e lhes dá maior autonomia, “empoderando” mulheres de extratos economicamente mais desassistidos. De outro, assistimos uma ofensiva que desqualifica as políticas e discussões de gênero, vinda de parlamentares e entidades como o Escola sem Partido. A violência contra Janaína Quirino, nesse sentido, é a expressão de um desejo cada vez menos contido de estendê-la a outros e, principalmente, a outras Janaínas. A guerra contra os fracos não tem fim. Contra as mulheres, tampouco.