quarta-feira, 14 de março de 2012

1.872 quilômetros por um beijo


POR ANA MELO
A escultura da imagem podia parecer pertencer a um museu de arte primitiva africana, mas é uma peça do século XX. Chama-se “O Beijo” e é de 1908, do escultor romeno Constantin Brancusi.
Brancusi nasceu em 1876, numa pequena localidade rural na Roménia e tornou-se carpinteiro e pedreiro. Mas, ao que parece, não estava satisfeito em passar a vida como artesão e pensou em ser escultor. Em 1904, decide ir tentar a sorte em Paris. Para isso tinha que atravessar a Europa. A pé.
De Bucareste até Paris são 1.872 quilômetros. Mas Brancusi conseguiu vencer a longa viagem. E instalou-se no mítico bairro parisiense Montparnasse, onde muitos artistas vindos de todo o mundo tinham os seus estúdios, como Picasso, Duchamp ou Rivera. Este bairro da margem esquerda do Sena era o centro intelectual e boêmio mais fervilhante da Europa. E tudo porque os intelectuais nunca tiveram muito jeito para ganhar dinheiro: os aluguéis muito baratos atraíam os artistas em início de carreira que queriam tentar a sorte. 
É neste ambiente que Brancusi começa a trabalhar, de início como assistente do mais importante escultor da altura, Auguste Rodin. Mas o artista  romeno acaba por se afastar do mestre, falando nestes termos: "à sombra das grandes árvores nada cresce".
“O Beijo” – de que existem várias versões -,  é considerada uma obra germinal para a escultura moderna, por contrariar de forma gritante os corpos modelados de forma fluida e sensual de Rodin. Para se perceberem as diferenças e a ruptura que representa o trabalho de Brancusi, basta olhar para um outro “Beijo”, aquele que Rodin esculpiu vinte anos antes. 
A peça do romeno rompe completamente com a tradição escultórica grega e romana e inicia uma nova era em que a escultura transcende a representação e alcança um estatuto de símbolo. E isto leva-nos a outra ideia importante: o bloco monolítico de Brancusi que forma o corpo dos dois amantes faz recordar a arte dos astecas, e os seus rostos estilizados lembram máscaras africanas.
É uma ironia da história da arte: todos os modernismos da arte europeia do início do século XX olharam para a arte dos povos chamados “primitivos” como uma pista dos caminhos a seguir. O colonizado tem a sua vingança nos museus dos colonizadores, quando Brancusi e os seus pares são catalogados de primitivistas. É caso para perguntar: “Primitivo quem, cara pálida?”


Ana Melo é formada pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e Mestre em Ciências da Comunicação. 

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